quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Efeito global e a oitava série


Por Flannery O'Connor


Em dois exemplos recentes na Georgia, pais contestaram as indicações de leitura de ficção moderna de seus filhos na oitava e na nona séries. Isso parece acontecer com alguma regularidade em todo o país. O pai desavisado pega o livro da criança, dá uma olhada, chega a passagens com detalhes eróticos ou blasfêmias, e vai imediatamente reclamar com a direção da escola. Às vezes, como num dos casos da Georgia, o professor é demitido e desperta-se a fúria de círculos progressistas por toda a parte.

Os dois casos na Georgia, que envolviam A Leste do Eden, de [John] Steinbeck, e Um sino para Adano, de John Hersey, provocaram considerável repercussão nos jornais. Um colunista, ao elogiar a iniciativa dos professores, declarou que estudantes não gostam de ler as obras emboloradas do século XIX, que é melhor atrair a atenção deles com romances que lidam com a realidade de nosso tempo e que a Bíblia também está cheia de histórias picantes.



 

O próprio Sr. Hersey escreveu uma carta ao Secretário da Educação em nome do professor que fora demitido. Ele assinalava que seu livro não é escandaloso, que tenta transmitir uma mensagem sincera sobre a natureza da democracia e que cai bem, dentro dos limites do princípio do “efeito global”, aquele princípio seguido em processos judiciais em que um livro é julgado não por suas partes isoladas, mas pelo efeito final do livro inteiro sobre o leitor geral.

Não quero entrar no mérito desses casos em particular. O que me preocupa é quais livros devem ser indicados à oitava e à nona séries como algo natural, pois, se esses casos indicam alguma coisa, indicam a maneira fortuita com que se aborda a ficção em nosso ensino médio. Supostamente, há uma lista de leitura nacional, que contém livros “seguros” para indicação dos professores; a partir daí, a decisão cabe ao professor.

Professores de inglês podem ser bons, maus ou indiferentes, mas, com muita frequência, no ensino médio, qualquer um que fale inglês tem autorização para ensiná-lo. Uma vez que não se podem reunir facilmente muitos romances num livro-texto, a ficção indicada aos estudantes depende do conhecimento, da capacidade e do gosto do professor: na melhor das hipóteses, algo variável. Na maioria dos casos, o professor indica o que acha que despertará a atenção e o interesse dos alunos. E a ficção moderna certamente o fará.

Nossa época é primeira da história que pergunta às crianças o que elas tolerariam aprender – mas essa é uma parte do problema com que não estou preparada para lidar. O demônio do Educacionismo que nos possui é do tipo que só pode ser “expulso com jejum e oração”. Ainda não apareceu ninguém forte o bastante para fazer isso. Em outras épocas, a atenção das crianças era dirigida a Homero e Virgílio, entre outros, mas, na contramão do processo evolutivo, isso já não é possível; nossas crianças são estúpidas demais agora para penetrar no passado imaginativamente. Ninguém pergunta ao estudante se ele gosta de álgebra ou se acha satisfatório que alguns verbos franceses sejam irregulares – mas se prefere Hersey a Hawthorne, seu gosto deve prevalecer.

Gostaria de apresentar a proposta, repugnante para a maioria dos professores de inglês, de que a ficção, se vai ser ensinada no ensino médio, o seja como um objeto de estudo, e um objeto com uma história. O efeito global de um romance não depende apenas de seu impacto natural, mas também da experiência, literária ou qualquer outra, com que é abordado. Criança nenhuma precisa de uma indicação de Hersey ou de Steinbeck até que esteja familiarizada com certa quantidade das melhores obras de [James Fenimore] Cooper, [Nathaniel] Hawthorne, [Herman] Melville, o primeiro [Henry] James e [Stephen] Crane, e não precisa dessas indicações até que tenha sido apresentada a alguns dos melhores romancistas ingleses dos séculos XVIII e XIX.

O fato de essas obras não lhe apresentarem a realidade de seu próprio tempo é para o seu bem. Ela está cercada pela realidade de seu tempo e não tem nenhuma outra perspectiva da qual possa vê-la. A exemplo do universitário que escreveu num artigo sobre [Abraham] Lincoln [1809-1865] que este foi baleado ao ir ao cinema, muitos estudantes vão para a Universidade sem saber que o mundo não foi criado ontem; seus estudos começam com o presente e por vezes voltam-se ao passado quando este parece necessário ou inevitável.

Há muito que apreciar nos grandes romances britânicos do século XIX, muitas coisas que neles um bom professor pode desvendar para o jovem estudante. Não há razão para que esses romances sejam simples demais ou difíceis demais para a oitava série. Aos simples, oferecem prazeres simples; aos mais precoces, podem proporcionar prazeres mais sutis, se o professor for capaz disso. Que o estudante descubra, depois de ler o romance britânico do século XIX, que o romance americano do século XIX é totalmente diferente quanto a suas características literárias – assim ele aprenderá algo não apenas sobre essas obras em particular, mas sobre a profunda transformação que uma nova situação histórica pode provocar numa forma literária. Que ele chegue à ficção moderna munido desta experiência, e então estará mais bem preparado para ver e lidar com as exigências mais complicadas da melhor ficção do século XX.

A ficção moderna geralmente parece mais simples que a ficção que a precedeu, mas na verdade é mais complexa. Ocorreu uma evolução natural. O autor, em grande medida, abstinha-se da participação direta na obra e deixava o leitor fazer seu próprio caminho em meio a experiências dramaticamente processadas e simbolicamente ordenadas. O romancista moderno funde o leitor na experiência; ele tende a despertar as paixões em que toca. Se é um bom romancista, desperta-as para provocar por sua ordem e clareza uma experiência nova – o efeito global – que não é em si mesmo sensorial ou simplesmente de momento. A menos que tenha tido alguma experiência literária anterior, a criança não será capaz de equacionar num quadro geral, verdadeiro, as paixões imediatas que o livro desperta.

É aqui que surge o problema moral. Para a criança, ler sobre o adultério na Bíblia ou em Anna Karenina é uma coisa, ler sobre isso na ficção moderna é outra completamente diferente. É assim não só porque em ambos os exemplos anteriores o adultério é considerado um pecado, e no último, no máximo, um inconveniente, mas porque a escrita moderna envolve o leitor na ação com um novo grau de intensidade, e as convenções literárias agora lhe permitem envolver-se em qualquer ação que um homem possa realizar.

Em nossa cultura fraturada, não podemos chegar a um consenso quanto a moral; não podemos nem mesmo concordar que questões morais têm primazia em relação a questões literárias quando há um conflito entre elas. Tudo isso é outra razão por que o ensino médio faria bem em voltar à sua missão de lançar as bases. Se se devem indicar romancistas modernos aos alunos do último ano depende tanto do consentimento dos pais quanto do que já leram e compreenderam.

O professor de inglês do ensino médio cumprirá sua responsabilidade se der ao estudante uma oportunidade guiada de, passando pelos melhores escritos do passado, chegar, no devido tempo, a um entendimento dos melhores escritos do presente. Ensinará literatura, não estudos sociais nem pequenas lições de democracia ou sobre os costumes de muitos lugares.

E se o estudante achar que isso não é para seu gosto? Bem, é lamentável. Muito. Mas seu gosto não deve ser consultado; ainda está sendo formado.

***

Publicado originalmente em: Flannery O’Connor, “Total Effect and the Eighth Grade”. In: Mystery and Manners: Ocasional Prose. New York: Farrar, Strauss & Giroux, 1969, p. 135-40.