quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Efeito global e a oitava série


Por Flannery O'Connor


Em dois exemplos recentes na Georgia, pais contestaram as indicações de leitura de ficção moderna de seus filhos na oitava e na nona séries. Isso parece acontecer com alguma regularidade em todo o país. O pai desavisado pega o livro da criança, dá uma olhada, chega a passagens com detalhes eróticos ou blasfêmias, e vai imediatamente reclamar com a direção da escola. Às vezes, como num dos casos da Georgia, o professor é demitido e desperta-se a fúria de círculos progressistas por toda a parte.

Os dois casos na Georgia, que envolviam A Leste do Eden, de [John] Steinbeck, e Um sino para Adano, de John Hersey, provocaram considerável repercussão nos jornais. Um colunista, ao elogiar a iniciativa dos professores, declarou que estudantes não gostam de ler as obras emboloradas do século XIX, que é melhor atrair a atenção deles com romances que lidam com a realidade de nosso tempo e que a Bíblia também está cheia de histórias picantes.



 

O próprio Sr. Hersey escreveu uma carta ao Secretário da Educação em nome do professor que fora demitido. Ele assinalava que seu livro não é escandaloso, que tenta transmitir uma mensagem sincera sobre a natureza da democracia e que cai bem, dentro dos limites do princípio do “efeito global”, aquele princípio seguido em processos judiciais em que um livro é julgado não por suas partes isoladas, mas pelo efeito final do livro inteiro sobre o leitor geral.

Não quero entrar no mérito desses casos em particular. O que me preocupa é quais livros devem ser indicados à oitava e à nona séries como algo natural, pois, se esses casos indicam alguma coisa, indicam a maneira fortuita com que se aborda a ficção em nosso ensino médio. Supostamente, há uma lista de leitura nacional, que contém livros “seguros” para indicação dos professores; a partir daí, a decisão cabe ao professor.

Professores de inglês podem ser bons, maus ou indiferentes, mas, com muita frequência, no ensino médio, qualquer um que fale inglês tem autorização para ensiná-lo. Uma vez que não se podem reunir facilmente muitos romances num livro-texto, a ficção indicada aos estudantes depende do conhecimento, da capacidade e do gosto do professor: na melhor das hipóteses, algo variável. Na maioria dos casos, o professor indica o que acha que despertará a atenção e o interesse dos alunos. E a ficção moderna certamente o fará.

Nossa época é primeira da história que pergunta às crianças o que elas tolerariam aprender – mas essa é uma parte do problema com que não estou preparada para lidar. O demônio do Educacionismo que nos possui é do tipo que só pode ser “expulso com jejum e oração”. Ainda não apareceu ninguém forte o bastante para fazer isso. Em outras épocas, a atenção das crianças era dirigida a Homero e Virgílio, entre outros, mas, na contramão do processo evolutivo, isso já não é possível; nossas crianças são estúpidas demais agora para penetrar no passado imaginativamente. Ninguém pergunta ao estudante se ele gosta de álgebra ou se acha satisfatório que alguns verbos franceses sejam irregulares – mas se prefere Hersey a Hawthorne, seu gosto deve prevalecer.

Gostaria de apresentar a proposta, repugnante para a maioria dos professores de inglês, de que a ficção, se vai ser ensinada no ensino médio, o seja como um objeto de estudo, e um objeto com uma história. O efeito global de um romance não depende apenas de seu impacto natural, mas também da experiência, literária ou qualquer outra, com que é abordado. Criança nenhuma precisa de uma indicação de Hersey ou de Steinbeck até que esteja familiarizada com certa quantidade das melhores obras de [James Fenimore] Cooper, [Nathaniel] Hawthorne, [Herman] Melville, o primeiro [Henry] James e [Stephen] Crane, e não precisa dessas indicações até que tenha sido apresentada a alguns dos melhores romancistas ingleses dos séculos XVIII e XIX.

O fato de essas obras não lhe apresentarem a realidade de seu próprio tempo é para o seu bem. Ela está cercada pela realidade de seu tempo e não tem nenhuma outra perspectiva da qual possa vê-la. A exemplo do universitário que escreveu num artigo sobre [Abraham] Lincoln [1809-1865] que este foi baleado ao ir ao cinema, muitos estudantes vão para a Universidade sem saber que o mundo não foi criado ontem; seus estudos começam com o presente e por vezes voltam-se ao passado quando este parece necessário ou inevitável.

Há muito que apreciar nos grandes romances britânicos do século XIX, muitas coisas que neles um bom professor pode desvendar para o jovem estudante. Não há razão para que esses romances sejam simples demais ou difíceis demais para a oitava série. Aos simples, oferecem prazeres simples; aos mais precoces, podem proporcionar prazeres mais sutis, se o professor for capaz disso. Que o estudante descubra, depois de ler o romance britânico do século XIX, que o romance americano do século XIX é totalmente diferente quanto a suas características literárias – assim ele aprenderá algo não apenas sobre essas obras em particular, mas sobre a profunda transformação que uma nova situação histórica pode provocar numa forma literária. Que ele chegue à ficção moderna munido desta experiência, e então estará mais bem preparado para ver e lidar com as exigências mais complicadas da melhor ficção do século XX.

A ficção moderna geralmente parece mais simples que a ficção que a precedeu, mas na verdade é mais complexa. Ocorreu uma evolução natural. O autor, em grande medida, abstinha-se da participação direta na obra e deixava o leitor fazer seu próprio caminho em meio a experiências dramaticamente processadas e simbolicamente ordenadas. O romancista moderno funde o leitor na experiência; ele tende a despertar as paixões em que toca. Se é um bom romancista, desperta-as para provocar por sua ordem e clareza uma experiência nova – o efeito global – que não é em si mesmo sensorial ou simplesmente de momento. A menos que tenha tido alguma experiência literária anterior, a criança não será capaz de equacionar num quadro geral, verdadeiro, as paixões imediatas que o livro desperta.

É aqui que surge o problema moral. Para a criança, ler sobre o adultério na Bíblia ou em Anna Karenina é uma coisa, ler sobre isso na ficção moderna é outra completamente diferente. É assim não só porque em ambos os exemplos anteriores o adultério é considerado um pecado, e no último, no máximo, um inconveniente, mas porque a escrita moderna envolve o leitor na ação com um novo grau de intensidade, e as convenções literárias agora lhe permitem envolver-se em qualquer ação que um homem possa realizar.

Em nossa cultura fraturada, não podemos chegar a um consenso quanto a moral; não podemos nem mesmo concordar que questões morais têm primazia em relação a questões literárias quando há um conflito entre elas. Tudo isso é outra razão por que o ensino médio faria bem em voltar à sua missão de lançar as bases. Se se devem indicar romancistas modernos aos alunos do último ano depende tanto do consentimento dos pais quanto do que já leram e compreenderam.

O professor de inglês do ensino médio cumprirá sua responsabilidade se der ao estudante uma oportunidade guiada de, passando pelos melhores escritos do passado, chegar, no devido tempo, a um entendimento dos melhores escritos do presente. Ensinará literatura, não estudos sociais nem pequenas lições de democracia ou sobre os costumes de muitos lugares.

E se o estudante achar que isso não é para seu gosto? Bem, é lamentável. Muito. Mas seu gosto não deve ser consultado; ainda está sendo formado.

***

Publicado originalmente em: Flannery O’Connor, “Total Effect and the Eighth Grade”. In: Mystery and Manners: Ocasional Prose. New York: Farrar, Strauss & Giroux, 1969, p. 135-40.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A verdadeira contracultura



Por Daniel Piza



A verdadeira contracultura é a assim chamada alta cultura. Repito, porque não disse que a verdadeira cultura é a alta cultura. Disse que a verdadeira contracultura é a – assim chamada – alta cultura.

É na chamada alta cultura que os conceitos e preconceitos do senso comum são mais desafiados. É nela que se vencem as barreiras de tempo, lugar, classe e hábito. É nela, sobretudo, que as distinções entre baixa, média e alta cultura se dissolvem, incorporando de forma consistente qualquer recurso estético, venha de onde vier, por onde vier. E o que costumam chamar de alta cultura, por falta de expressão melhor, é justamente todo produto que tenha esse poder.

Há uma vasta, parcialmente voluntária e cada vez mais forte, conspiração middlebrow contra a alta cultura. Sob expressões como multiculturalismo e correção política, ocultam-se rejeições subliminares a qualquer coisa que seja complexa e/ou sutil, que não seja um proselitismo a respeito das “condições” e “minorias” que encarnam gêneros, estereótipos e panfletos, em modalidades compartimentadas e discursivas, populistas e confessionais. É da natureza do middlebrow mimetizar a alta cultura, lançando tentáculos a todos os repertórios para misturá-los no mesmo metabolismo. Mas a intenção e o resultado são bem distintos. A intenção é se apropriar das manifestações estabelecidas e envernizá-las para consumo em grande escala. O resultado é, na maioria das vezes, uma massa gelatinosa de apelo emotivo.

A tal alta cultura se caracteriza exatamente por um olhar livre sobre todas as formas culturais. Foi nela que Homero deu vida eterna às lendas orais da Grécia Antiga. Foi com ela que William Shakespeare se tornou um empreendedor teatral de sucesso. Foi para ela que Pablo Picasso incorporou as máscaras africanas e os recortes de jornal, e deu uma forma inédita à composição pós-impressionista. Uma enciclopédia de exemplos poderia ser citada, ou então você pode comprar o catálogo da exposição “High & Low”, organizada por Adam Gopnik e Kirk Varnedoe no MoMA há alguns anos, e verificar que o grande artista sempre rompe os padrões, mesmo que suas teorias e ideologias estejam obsoletas. A grande arte sempre subverte os esquemas. Que ainda nos deleitemos com um longo poema medieval toscano como a Comédia de Dante é uma prova de sua irredutibilidade a categorias sociais, sexuais e étnicas.

Há, claro, middlebrow em todo mundo. Ezra Pound, por exemplo, era fã de Bambi, de Walt Disney. Eu sempre gostei de ver TV, de futebol, de quadrinhos, de música popular. Mas estou falando de contracultura, de uma cultura que vá contra o fluxo médio, natural, das coisas. A autointitulada “contracultura” dos anos 1960-1970 cometeu o erro básico de pôr a ênfase excessiva no comportamento e, corolário, terminou alimentando o consumismo, endossando a comodidade da classe média e ampliando esse cada vez maior cartel (eu quase ia escrevendo “quartel”) do entretenimento.

Pouca gente nota que o pop, a cultura midiática que tem marcado este século, tem suas raízes em gêneros menores do século passado, misturando opereta, melodrama, circo, banda etc. Em versão industrial (cinema, TV, gravadoras), esses gêneros adquiriram uma presença cultural muito maior, enriquecendo o reino da mediocridade. Por outro lado, os diluidores da alta cultura insistiram em chamá-la dessa forma, em criar classificações fixas (“popular” e “erudito”, “moderno” e “careta”) que negavam a própria diversidade daquele repertório. Geralmente, são acadêmicos parasitas e jornalistas deslumbrados, num conluio entre elitismo e populismo, que se encarregam de banalizar aquilo que é chique mas não é fácil de gostar. No fundo, eles têm inveja do que não conseguem entender ou repetir. Logo, maquiavelicamente, tentam assimilá-lo: é mais fácil derrotar o inimigo fingindo-se estar a seu lado. Muitas dessas adaptações literárias em cinema e TV não passam disso, de um desejo de simplificar o complexo, resultante da covardia intelectual da maioria. Mas a alta cultura precisa da liberdade e do dinheiro para sobreviver, como toda cultura, e é muito mais fácil para um artista encontrar um mercado hoje, ainda que no antigo regime se pudesse viver à tripa forra trabalhando para as cortes, caso se fosse um “eleito”. E ela precisa dos outros repertórios, dos quais se nutre para criar algo mais ambicioso. É de sua essência prescindir de hierarquias rígidas.

Na tal alta cultura, mesmo uma obra que tenha apelo universal imediato – o Juízo Final de Michelangelo, a Júpiter de Mozart – não deixará de ter sido uma novidade, por revelar à humanidade uma sensação que ela possuía mas desconhecia. Nas mãos de um Ibsen, por exemplo, o melodrama ganhou uma força de articulação mental que superou seus limites populistas. E Liszt, digamos, já fizera o que depois a mídia moderna batizou de cross-over: partira de danças folclóricas para criar um híbrido acessível a mais classes (não importa quais) – só que o fizera de forma tão refinada, que as internacionalizara e eternizara. Este é o grande desafio.

É por tudo isso que o que chamam preconceituosamente de alta cultura é a verdadeira contracultura. É ela que desestabiliza o senso comum de forma coerente e durável, preservando a importância das ideias e dos talentos, únicas manifestações capazes de atravessar fronteiras no tempo e no espaço. Outras podem nos divertir e até mesmo ensinar, mas só ela pode nos despertar do banal.

Daniel Piza, “A Verdadeira Contracultura”. In: Questão de Gosto: Ensaios e Resenhas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 24-27.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Dois tipos de felicidade



Mircea Cărtărescu – professor, romancista, jornalista, poeta e ensaísta – é atualmente um dos mais premiados escritores da Romênia e forte candidato ao Nobel de Literatura. Trata-se de um fenômeno curioso: é, ao mesmo tempo, um best-seller e um grande escritor. Sua obra continua inédita no Brasil.

Ainda tomado do entusiasmo de alguém que acabou de voltar de um curso de língua romena em Brașov, cometo a temeridade de tornar público um exercício de tradução – a rigor, trata-se antes de um exercício de compreensão que propriamente de tradução. Seja como for, torno públicas as palavras de um dos artigos que compõem o volume “Por que amamos as mulheres”, de Cărtărescu. 

Espero que gostem!

Dois tipos de felicidade

Mircea Cărtărescu


Aquilo que para o corpo físico é o orgasmo é a felicidade para nosso corpo espiritual. É uma sensação breve e esmagadora, é aquela iluminação que buscam místicos e poetas. Não podes ser feliz um ano inteiro ou um dia inteiro. Nem mesmo por algumas horas seguidas. Dostoievski descreve-a como um prelúdio da epilepsia. Rilke fala sobre o seu terrível: ela é a beleza no limite do suportável, além do qual começa a dor. Talvez Goethe tenha intuído melhor o critério da felicidade: és verdadeiramente feliz quando queres parar o tempo, conservar aquele momento por toda a eternidade. De alguma forma, tua vida teve sentido se, na sucessão infinita de momentos banais, cinzas, tristes, vergonhosos, desafortunados, miseráveis, tediosos, de que a vida se compõe, acende-se, algumas vezes ou uma única vez, a faísca espantosa da felicidade. “Vivi como os deuses, e é quanto basta”, escreve sobre ela Holderlin. Esta é a verdadeira felicidade, a qual muitos homens não buscam nem cobiçam, porque ela pode destruí-los. Viver como deuses, ainda que apenas por um momento, é uma hybris que se paga.

Claro, não é essa a felicidade da Declaração dos direitos do homem. Se aqui se diz que os homens buscam a felicidade como sendo o bem supremo da vida, tem-se em vista um sentido totalmente diferente da palavra, muito mais “sociológico”, diante do místico, estético e religioso da primeira acepção. A felicidade que os homens procuram habitualmente não tem nada que ver com experiências extáticas. Ao contrário, é a famosa aurea mediocritas da antiguidade, de cultivar o próprio jardim, de paz e tranquilidade de uma vida sábia, adequada ao homem, livre de inquietação e de excessos. Neste sentido, os filósofos invejam a vida simples e satisfeita dos pastores, a realização daqueles que não têm grandes ambições, mas satisfazem-se com aquilo que lhes traz o momento. Se a felicidade orgástica de que falei no início pudesse ser chamada transcendente, de outro lado temos de lidar aqui com uma felicidade terrestre, imanente. No atual mundo consumista e globalizado, parece que já não conhecemos outro sentido de felicidade se não o seguinte: medíocre, utilitário, carente de toda aspiração que ultrapasse os padrões materialistas: uma casa confortável, um posto de trabalho bem-remunerado, férias no Caribe (ou ao menos em Sinaia...), uma família financeiramente estável. Um amor morno (já não te esforças para perceber se ao menos amas verdadeiramente ou não o parceiro), um trabalho não muito criativo, objetos (sugeridos pela televisão) com os quais preenche todo o espaço livre... Os homens esqueceram completamente que lhe entregaram uma dádiva esmagadora: a de existir na maravilha do mundo, de estar vivo, de ser consciente de si. Não se perguntam jamais: afinal, quem sou eu? Que papel tenho no mundo? Será que me foi dada a maravilha que posso ver e ouvir apenas para ser motorista de ônibus ou fazer propaganda? Será que tenho de morrer sem fazer nada neste mundo?


Condenar este tipo de felicidade é, no entanto, em grande medida injusto, na minha opinião, como condenar totalmente o modo de vida ocidental, porque significa, de fato, uma reação elitista diante de uma felicidade “popular”. Acredito que precisamos de ambos os tipos de felicidade, que cada parte é pobre e extremamente carente da outra. Creio, por outro lado, que são muito raros tanto poetas puros e extáticos quanto consumistas completos imbecilizados pela cerveja e pela televisão. Somos com os demais, de fato, uma combinação entre os dois casos, e o ideal humano poderia ser, em consequência, uma vida realizada e materialmente decente permeada de quando em quando por fulgurações loucas da grande e verdadeira felicidade.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Filosofia sem liberdade: Constantin Noica e Alexandru Dragomir





Cristian CIOCAN[1]

Universidade de Bucareste

Sociedade Romena de Fenomenologia



RESUMO: Neste artigo, discuto a respeito de dois importantes filósofos romenos: Constantin Noica e Alexandru Dragomir. Narro suas biografias espetaculares, a fim de mostrar como a resistência pela filosofia pode ser poderosa, mesmo em tempos difíceis de totalitarismo político, como o deles, no Leste Europeu, sob a ditadura comunista. É verdade que Noica e Dragomir são as duas personalidades mais influentes na história da fenomenologia na Romênia. Entretanto, a vida deles também parece ser exemplar para a filosofia como tal, que revela seu valor intrínseco quando enfrenta as asperezas do infortúnio.



Permitam-me começar com uma pergunta genérica: pode a filosofia existir sem liberdade?

Normalmente acreditamos que pensar, refletir e filosofar sempre requer certo grau de liberdade. Aristóteles é o primeiro a defender, no início da Metafísica, que a filosofia começou no Egito, onde a classe dos sacerdotes estava dispensada do trabalho, obtendo assim o conforto necessário à reflexão. Todavia, além deste conforto, esta liberdade das necessidades diárias, a filosofia requer outro tipo de liberdade para que o instinto filosófico profundamente enraizado no homem seja capaz de desenvolver-se como exercício filosófico livre, numa cultura filosófica viva e criativa, permitindo uma polifonia de vozes e um diálogo de pontos de vista diversos. Não me refiro, aqui, a uma liberdade total numa república ideal de filósofos, mas certo grau de liberdade. Refiro-me à liberdade política, a liberdade social ou cívica. Este tipo de liberdade possibilitou os estágios mais férteis na história da filosofia. Se pensarmos nos gregos, vemos que o florescimento da filosofia foi possível num clima de liberdade política. A filosofia sempre se desenvolveu sob certa proteção, uma atitude mais ou menos tolerante das autoridades, fossem eles reis, imperadores, nobres, papas ou cardeais: isto aconteceu com a filosofia antiga, com a filosofia medieval e, de novo, com o Idealismo alemão. Quando a proteção e a liberdade desaparecem, a filosofia também morre, ou é suprimida, como no caso do fechamento da escola neoplatônica de Atenas pelo édito de Justiniano.

O terrível século XX trouxe uma situação completamente diferente, nunca encontrada antes, em que a limitação da liberdade do homem tornou-se um dever do estado. Quando tal regime perdura por várias décadas, como no caso do comunismo no Leste Europeu, as transformações podem ser atrozes, pois gerações nascem e morrem num universo concentracionário, sem luz ou esperança. Sob tal regime, a filosofia se reduz a um instrumento de propaganda, a uma ideologia oficial.

E perguntamos novamente: pode a filosofia existir sem liberdade?

O caso romeno, e especialmente o caso da filosofia romena sob o comunismo, pode ser compreendido em contraste com o pano de fundo de um contexto social mais amplo, a história recente dos países destruídos pelo imperialismo do regime soviético. Todavia, temos de compreender sua especificidade.

A cultura romena – como cultura nacional, numa língua nacional – é de certa forma uma cultura jovem. Ainda que a coesão nacional dos romenos seja mais velha, a Nação Romena afirmou-se explicitamente com a ocasião dos eventos históricos que varreram a Europa por volta de 1848, ganhando sua independência do Império Otomano somente em 1877. No que diz respeito à filosofia, o primeiro nome que devemos mencionar é o de Dimitrie Cantemir (1673-1723), um rei da Moldávia que se correspondia com Leibniz e que foi eleito membro da Academia de Berlim em 1714. Ainda que sua atividade filosófica fosse bastante rica, ele era reconhecido no mundo sobretudo por seu trabalho de historiador. Suas obras sobre o Império Otomano foram imediatamente traduzidas em diversas línguas e conhecidas por Voltaire, Byron e Victor Hugo. Infelizmente, em primeiro lugar por causa de vicissitudes históricas, pois os romenos não conheceram longos períodos de estabilidade política em que a cultura humanista pudesse desenvolver-se, o caso de Cantemir era singular.

E assim foi até o século XIX, quando os romenos começaram a estudar intensamente em Berlim, em Paris e em Viena, adquirindo com eles, portanto, as ideias filosóficas que circulavam no Ocidente. O primeiro curso de filosofia escrito em romeno foi elaborado segundo um modelo alemão por Eftimie Murgu em 1834-36, para a Academia Mihaileana de Iaşi e foi a primeira tentativa de estabelecer uma terminologia filosófica em língua romena. Também podemos notar a tentativa de Mihai Eminescu – um famoso poeta romântico, ele próprio bastante influenciado pela filosofia de Schopenhauer – de traduzir fragmentos da Crítica da Razão Pura em 1878.

No início do século XX, a circulação de ideias aumentou, e a cultura romena começou a entrar, passo a passo, no circuito da cultura europeia. Encontramos muitos professores de filosofia que, mais ou menos, estão compilando os tratados ocidentais de filosofia, oferecendo uma variante autóctone da vulgata escolar de Paris, Leipzig e Berlim. Mas nesta ocasião, as ideias estão se difundindo, o vocabulário filosófico está crescendo e podemos falar do início da consolidação de um clima filosófico. Quanto aos próprios filósofos, podemos mencionar alguns nomes como Vasile Conta ou Constantin Radulescu-Motru, que produziram obras filosóficas de uma originalidade um tanto limitada pelo modo de seu tempo. O caso de Lucian Blaga é mais interessante, porque sua ouvre filosófica tem uma originalidade inconstestável, sendo, no entanto, nutrida pelo clima da filosofia da cultura de Spengler. Infelizmente, a obra de Blaga não foi traduzida no momento certo e, portanto, não pôde entrar no circuito das ideias europeias, como sem dúvida merecia ter entrado.

Entre as duas Guerras Mundiais, a cultura romena tornou-se muito viva, muito criativa, muito promissora, uma cultura em pleno desenvolvimento, com estudantes que tinham estudado nas mais famosas universidades da Europa, professores com diplomas europeus, revistas acadêmicas especializadas, em suma, uma cultura capaz de integrar-se organicamente na cultura europeia. Este período, que se mostrou muito fértil, muito ambicioso e de espírito muito elevado, produziu vozes novas e provocativas, que, depois da Segunda Guerra Mundial, se tornaram famosas no Ocidente, como no caso de Mircea Eliade, Eugene Ionesco ou Emil Cioran.

Entretanto, em certo momento, veio o desastre. Um desastre que infelizmente durou décadas e desfigurou tudo, incluindo a filosofia.

Estamos agora nos anos 1945-47. A guerra terminou, o exército russo ocupa a Rômenia, os comunistas chegam ao poder, o rei abdica e deixa o país. A maioria dos intelectuais deixou a Romênia em direção ao Ocidente e constituíram uma diáspora impotente. Aqueles que permaneceram viviam sob ameaça de prisão política. Os mais famosos deles são presos, torturados, seus bens são confiscados e suas famílias são aterrorizadas.

E quanto à filosofia? Perguntamos novamente: pode a filosofia existir sem liberdade?

A resposta não é fácil, e esperamos encontrar, na leitura das entrelinhas dos destinos de Noica e de Dragomir, as soluções possíveis ou impossíveis.




***




Atualmente na Romênia, Noica é o filósofo romeno mais bem conhecido. Ele é o Filósofo, isto é, a maior figura da filosofia romena hoje. Podemos dizer isso de outra forma: foi graças a Noica que a filosofia adquiriu na Romênia dos anos 1960 e 1970 um grande prestígio, inacreditável para um país submetido a um regime totalitário. O próprio Noica quase se tornou um fenômeno de massa: ele teve força para transmitir a várias gerações de jovens o vírus do filosofar. Centenas de jovens começaram a sonhar aprender grego antigo e alemão para ter acesso às fontes fundamentais da filosofia. Centenas de jovens visitaram-no, em verdadeiras peregrinações, em seu xalé em Păltiniş, situado no centro de um vilarejo serrano da Transilvânia. Em suma, o fenômeno “Noica” marcou de forma radical a cultura contemporânea da Romênia.

Mas como se chegou a tal situação inacreditável? As explicações são multifacetadas.

Em primeiro lugar, para os intelectuais romenos, Noica representava uma ligação entre a Romênia contemporânea e o país intelectualmente viçoso que a Romênia era antes da Segunda Guerra Mundial. Para eles, embora a Romênia do entreguerras não tenha sido exatamente um paraíso, o que aconteceu sob o comunismo decerto era um inferno. O próprio Noica era uma figura central da geração de intelectuais que animavam Bucareste e seus cafés literários nos anos 1930-40, ao lado de Eliade, Cioran, Ionescu, Mircea Vulcanescu ou Petre Țuțea. Desde que Noica escolheu permanecer na Romênia, não desejando imigrar para países ocidentais, ele trouxe consigo a herança simbólica de uma geração inteira. Ele era prova viva de que nosso país um dia conheceu a normalidade, a liberdade, uma excelência cultural, completamente oposta às décadas de comunismo, que impuseram às pessoas a supremacia da suspeita, da pobreza, da confusão ideológica, do automatismo dos slogans. Era natural que uma figura como Noica viesse a se tornar uma lenda aos olhos dos intelectuais frustrados e angustiados pela perpetuação do “socialismo científico”.

Até 1945, Noica já tinha publicado oito livros e muitos artigos.[2] Estreou aos 25 anos com um volume que recebeu o prêmio das Fundações Reais, na mesma linha de Nos Cumes do Desespero,[3] de Cioran, e o famoso livro intitulado Não, de Eugene Ionesco. Mais tarde, ele e seus colegas especializaram-se em vários campos: Eliade estudou a história das religiões, Ionesco escreveu teatro e crítica literária, Cioran levou adiante suas reflexões radicais e insolentes sobre a morte, a finitude e o absurdo, mas Noica escolheu trabalhar, como um especialista, na filosofia, traduzindo e comentando Descartes, Leibniz, Kant e Hegel.

Ademais, como era suficientemente abastado, tinha liberdade material para perseguir sua paixão pela filosofia. Sonhou, nos idos de 1940, criar um novo tipo de escola filosófica, onde, segundo Leon Bloy, “não se pode dizer quem dá e quem recebe”. Ele sonhava fazer da filosofia uma maneira de viver, sem doutrinas ou lições escolares, oposta ao estilo pedagógico rígido de sua época. Seu Diário Filosófico[4] defende todas essas ideias.

O socratismo estava em casa na Romênia. Não nas salas de aula, não na universidade, mas nos famosos cafés literários de Bucareste, onde as pessoas discutiam vividamente os assuntos mais absolutos, profundos e especulativos. O mainstream era um tipo de existencialismo apaixonado e vitalista, preocupado com o sentido e o sem-sentido da vida, o destino da nação, a voz da religião, o destino da humanidade; enfim, as questões eternas de nossos dias.

Mas o pensamento de Noica singularizou-se por sua preocupação ontológica. E esta o levou, quatro décadas mais tarde, à sua obra principal: o Tratado de Ontologia. Em parte, ele deu a sua ontologia uma dimensão nacional, que é muito contestada por alguns críticos. No entanto, tratava-se antes de matéria inofensiva: assim como Heidegger começava seu pensamento a partir da língua alemã, sempre usando uma explanação etimológica, Noica também o fez com a língua romena, começando com as nuanças do equivalente romeno do verbo ser (a fi). Pois, entre o puro ser e o puro não ser, a língua romena tem, segundo Noica, um modo privilegiado de expressar, com uma riqueza muito especial, as várias modulações do verbo “ser”. Essas variações ontológicas do verbo ser, que passam por diversos tipos de eventualidade, de possibilidade e impossibilidade, constituem o fundamento usado por Noica sobre o qual edificou sua ontologia. Ele analisou e articulou de modo sistemático essas modulações do verbo “ser” numa ontologia que guardou um traço nacional, sendo provavelmente o último sistema filosófico do século XX. 

Podemos encontrar as raízes dessas ideias nos anos 1940. Aqui Noica estava preocupado com a relação entre a dimensão espiritual de uma nação, como depositada na língua, e as elites espirituais, que explicam esta riqueza encapsulada na língua e que faz a transição da dimensão pré-ontológica para a ontológica. Para Noica, a força explicativa da língua romena era o solo para as raízes de sua meditação. E este é o ponto mais próximo entre Noica e Heidegger, pois para ambos a língua é o fundamento essencial de todo pensamento. Temos de observar também que a dimensão nacional da filosofia de Noica era apenas um lado de sua ontologia, o outro era mostrado de forma mais abstrata à maneira hegeliana. Noica discute sobre um modelo ontológico, feito a partir destes três elementos fundamentais: o individual, as determinações recebidas pelo individual, e o geral em relação ao qual o individual recebe suas determinações. Se o modelo ontológico está saturado, podemos falar de um Ser realizado. Se o novo modelo não está saturado (pelos vários modos de falhas ontológicas ou irrealizações), falamos de várias modalidades ou modulações ontológicas, no que concerne ao Ser a ser realizado. Aqui Noica distingue duas modalidades de devir: um devir concernente ao Ser realizado, e um devir que não consumou seu Ser. Ele usou um operador ontológico, uma preposição difícil de traduzir, întru, que é ao mesmo tempo “em”, “em relação a” e “para”, sendo simultaneamente contido e uma orientação para, próximo ao alemão zu e ao inglês into. Foi esta preposição particular que permitiu que Noica falasse, em seu sistema ontológico, de um devir em e em direção ao Ser [Rom.: devenirea întru fiinţă] (como o caso de um artista – um individual – que se situa, por suas obras – as determinações –, em favor e em direção ao horizonte do geral – sua arte) e de um devir em e em direção ao devir [Rom.: devenirea întru devenire] (como o caso da vida familiar, que está em e em direção à procriação e à geração). Para Noica, o Ser e o devir no horizonte do Ser são sempre de natureza espiritual e cultural. 

Mas voltemos à nossa história. Depois de 1945, as perseguições começaram e Noica foi diretamente afetado. Primeiro, seus bens foram confiscados; esta foi a primeira medida do poder comunista: aniquilar as pessoas ricas. Mas a paixão de Noica pela filosofia continuou intocada: mesmo quando a sociedade política era catastrófica, Noica fundou em 1945-46, numa de suas casas, uma escola particular de filosofia, que era frequentada por importantes intelectuais romenos. Mas essas sessões filosóficas particulares não puderam ser toleradas por muito tempo pelos oficiais, porque havia alguns “elementos reacionários e burgueses”, como se dizia na época. A elite econômica não era o único obstáculo à sociedade comunista, mas também a elite intelectual. E como era parte da elite intelectual, Noica foi posto sob estrita vigilância. Três anos depois, em 1949, quando tinha 40 anos de idade, Noica foi forçado a deixar Bucareste. Foi constrangido a domicílio forçado em Campulung [Campo Grande], sendo oficialmente proibido de deixar este vilarejo de província.

Todavia, nem mesmo durante este longo período de reclusão, de dez anos, vividos num estado de grande pobreza material, o vírus filosófico de Noica se acalmou. Ele organizou encontros filosóficos com um círculo de amigos, tendo a certeza de que somente a vida espiritual – em que a filosofia era o mais importante – pode constituir uma forma genuína de resistência diante do nada estabelecido pelo novo regime. Temos de dizer que esta ideia de resistir pela cultura é a ideia fundamental da atitude de Noica perante o desastre histórico em que viveu. 

Então, à nossa pergunta – como alguém pode filosofar sem liberdade? – a resposta de Noica seria: Bem, simplesmente filosofando! No período de domicílio forçado, é a filosofia de Hegel que constitui o centro das preocupações de Noica. Em 1957, ele enviou a um editor francês o manuscrito que continha um comentário à Fenomenologia do Espírito. Mas, considerado subversivo, o manuscrito foi interceptado pelo serviço secreto romeno. Consequentemente, em 1958, Noica e seus colegas foram presos e processados. Embora tivesse 49 anos de idade e já tivesse passado dez anos de domicílio forçado, ele ainda recebeu 25 anos de prisão. A filosofia parece ser o demônio que deseja destruir a vida de Noica, até a privação de toda liberdade. E parecia ter conseguido. 

Mas o jogo ainda não estava terminado. Noica, é claro, foi torturado na prisão, assim como todos os outros, mas após algum tempo as autoridades permitiram que ele lesse. Embora Hegel fosse proibido, ele podia, entretanto, pedir permissão para ler Marx; e lê Marx o tempo todo. Por fim, ele passa apenas seis anos na prisão, porque em 1965, com a ocasião do primeiro relaxamento do sistema comunista, Noica é libertado e até certo ponto reabilitado. Ainda que esteja sob estrita vigilância da Securitate, nos últimos vinte anos de sua vida, Noica foi beneficiado por certa tolerância da parte do regime comunista e portanto podia esperar refazer sua vida e seus sonhos filosóficos.

Em 1965, aos 55 anos, Noica foi autorizado a voltar a Bucareste e entrou no Instituto de Lógica como pesquisador. Incansável e incorrigível, manteve alguns seminários privados sobre Platão, Kant ou Hegel, onde encontra alguns pesquisadores da nova geração: Gabriel Liiceanu,[5] Andrei Pleşu,[6] Sorin Vieru ou Victor Stoichiţă. Estes jovens filósofos ficam muito atraídos por seu charme intelectual e por sua virtuosidade filosófica, e assim todos entram num cenário de pedagogia filosófica e cultural. Para eles, Noica era uma figura singular e fascinante, a única personalidade que se podia escolher na Romênia como mestre em filosofia. Para Noica, esses jovens estudiosos eram uma tentação irresistível para sua vocação de treinador cultural em filosofia.

Noica trabalha outros dez anos no Instituto de Lógica em Bucareste, até sua aposentadoria. Começa a traduzir e interpretar Platão, Aristóteles, os pré-socráticos e os comentadores aristotélicos.[7] Também começa a publicar suas próprias obras sobre seu projeto ontológico.

Depois de 1975, Noica se retira para Păltiniş, um vilarejo serrano próximo a Sibiu, onde começa uma das mais belas aventuras que a cultura romena já conheceu. Seus discípulos – precisamente Gabriel Liiceanu, Andrei Pleşu e Sorin Vieru – regularmente lhe faziam visitas em Păltiniş, viviam e trabalhavam juntos sob a direção de Noica, traduziam e interpretavam textos filosóficos clássicos, numa solidão pura e intangível, no reino do espírito. Esta aventura durou mais de uma década. Noica convence seus discípulos a aprender grego e alemão, dá-lhes tarefas culturais para fazer, faz para eles um programa de leitura e de pesquisa, assumindo portanto a posição de mestre que faz tudo para que seus discípulos alcancem a excelência em filosofia.

O Diário de Păltiniş de Gabriel Liiceanu, agora traduzido em inglês, francês e alemão, retrata a história dramática e apaixonada desta aventura. Quando de sua publicação, o impacto deste Diário foi imenso, e a obra ganhou grande notoriedade. A liberdade de espírito mostrada neste Diário fascinou o público romeno, cuja liberdade real tinha sido confiscada por várias décadas pelo comunismo. O Diário teve uma enorme influência em várias gerações de jovens, inspirando-os com o páthos filosófico e com a paixão pela filosofia, não apenas antes da queda do comunismo em 1989, mas também depois deste acontecimento histórico. Noica tornou-se “o fenômeno Noica” e, paradoxalmente, a filosofia tornou-se a rainha da cultura romena, mesmo sob as condições de uma submissão política.

A firme fé de Noica na filosofia, na vida cultural e no espírito era sua resposta constante diante das vicissitudes históricas e do nada do totalitarismo. Sua resistência pela cultura perante o deserto do nonsense ideológico era sua fórmula de sobrevivência no universo impossível em que ele foi forçado a viver. Assim como o modelo checo de Jan Patočka, o modelo romeno de Noica exerce um papel notável no estágio da filosofia contemporânea, um episódio que talvez mereça mais atenção, porque constitui uma modalidade em que a filosofia foi capaz de sobreviver a despeito da falta de liberdade, que parece de fato ser sua condição necessária. 

***

O caso de Alexandru Dragomir começa com algumas premissas diferentes. Até sua morte em 2002, conhecíamos Alexandru Dragomir apenas como uma figura estranha que passava mais ou menos misteriosamente pelos círculos intelectuais romenos. Tudo que sabíamos dele vinha daqueles que realmente se encontraram com ele, porque Dragomir nunca quis fazer-se conhecido. Na verdade, ele tinha uma espécie de aversão à ideia de tornar-se uma figura pública. Sabe-se que nos idos de 1940 ele havia sido aluno de Heidegger, estudando para um PhD em Freiburg. Aqueles que tiveram oportunidade de encontrar-se com ele nas últimas décadas de sua vida dizem que ele tinha um conhecimento filosófico fabuloso, que era um pensador brilhante e tinha uma mente vívida e perspicaz. Entretanto, o que intrigava muito aqueles à sua volta era o fato de que ele nunca se interessou por publicar uma única página em vida. Sempre disse que a publicação não tinha importância para ele, e tudo em que estava interessado era compreender. Assim ele constantemente se recusou a entrar na indústria cultural. Na verdade, ninguém sabia se ele já tinha escrito algo. Ele constantemente recusava, portanto, participar de qualquer iniciativa cultural pública. Ao contrário de Noica, que era uma figura cultural essencial, tendo uma atividade prodigiosa e efervescente de ação mesmo durante os períodos difíceis, Dragomir concebia a filosofia como um esforço puramente individual, em completa solidão. Dragomir situava-se fora de qualquer indústria cultural e fora de qualquer Gestell filosófico, com suas revistas e seu público, com seus modos, congressos e conferências. É por isso que ele não quis publicar uma única página durante sua vida, acreditando que escrever é o inimigo fatal do pensamento, como mostra o mito de Theuth no fim do Fedro, de Platão. Dragomir considerava que a maneira socrática de interrogar alguém é a forma mais elevada de pensamento. Portanto, ele não queria ter nenhum contato com a área filosófica oficial contaminada pela ideologia, e também não queria adotar a fórmula de Noica segundo a qual o lugar próprio da filosofia é sempre a cultura.

Walter Biemel, o famoso editor de Husserl e Heidegger, e amigo íntimo de Heidegger, lembra que este apreciava muito a aguda inteligência de Dragomir. Alexandru Dragomir participou dos seminários particulares de Heidegger e diz-se que, quando a discussão chegava ao fim, Heidegger costumava voltar-se para Dragomir perguntando: “Bem, o que os latinos dizem?” No final de 1943, Dragomir foi forçado a deixar Freiburg e os seminários de Heidegger e a retornar à Romênia para o alistamento. Era tempo de guerra. Embora Heidegger insistentemente exigisse que Dragomir tivesse permissão para continuar seus estudos, este teve de unir-se ao exército. Vinte anos depois, Heidegger ainda se lembrava muito bem de Dragomir e pedia notícias dele.[8]

E quando a história romena sofreu o terrível golpe em 1945, quando o fim da Segunda Guerra Mundial coincidiu com a ocupação russa e o estabelecimento do comunismo na Romênia, Dragomir encontrou-se confrontado com a impossibilidade de continuar seus estudos com Heidegger. Ele logo compreendeu que sua relação com a Alemanha podia ser motivo para perseguição política e que seus empreendimentos filosóficos podiam muito bem resultar em sua prisão. Ele previu tudo isso e compreendeu que sua sobrevivência dependia da capacidade de dissimular suas preocupações filosóficas e sua conexão com a Alemanha. 

Ele participa algumas vezes, em 1945-46, de encontros filosóficos clandestinos organizados por Noica em sua escola filosófica subterrânea, mas não fica muito convencido. Apesar dos esforços de Noica para ganhar Dragomir como colaborador de seus projetos filosóficos, Dragomir sistematicamente rejeitou suas propostas, fechando-se numa solitude intransponível.

Por quê? Talvez seja só uma questão de psicologia humana, porque pode ser difícil aceitar Noica como mestre depois de dois anos de discussão com Heidegger. Mas talvez houvesse diferenças profundas entre Noica e Dragomir, entre suas visões de mundo e da filosofia, entre as maneiras de compreender a si mesmo diante do universo totalitário que começava a impor-se por toda parte. Os caminhos de Dragomir e de Noica pareciam por um momento separados demais.

Já sabemos que a trajetória de Noica foi: domicílio forçado, prisão, reabilitação. Mas Dragomir, o que ele fez? Aparentemente, nada. Constantemente encobrindo os traços de seu passado, Dragomir trabalhou ora como soldador, ora vendedor, ora escrevente ou contador; e continuava tendo de trocar de trabalho, uma vez que seu arquivo político inconveniente o levava à demissão frequente. Por fim, ele conseguiu trabalhar, até sua aposentadoria em 1976, como economista numa companhia de exportação de madeira. 

Nada relacionado à filosofia. Pode ser tentador dizer: “Veja um destino fracassado!” Mas isto seria estar longe da verdade. Pois em privado, Dragomir nunca deixou de exercitar sua inteligência filosófica brilhante. Por décadas ele viveu uma vida dupla: sua vida social cotidiana de um lado e sua vida de pesquisa filosófica solitária de outro. Ele continuou a trabalhar sobre os textos fundamentais da filosofia em grego, latim, alemão, francês e inglês. Depois de 1965, depois que Noica foi libertado da prisão, ele e Dragomir evidentemente se encontraram. E quando Noica começou a publicar, ele enviava seus livros a Dragomir, sempre ansioso pela opinião de Dragomir a respeito de suas obras. 

Diz-se que Noica temia a leitura exigente de Dragomir e seu juízo extremamente severo. Diz-se até que Noica reescreveu seu Tratado de Ontologia depois de numerosos comentários críticos de Dragomir. Mesmo quando o clima político se tornou, em alguma medida, mais permissivo, Dragomir continuou indisposto a escrever e publicar, apesar de todas as propostas que recebeu. Depois de 1985, entretanto, ele concordou em fazer uma “concessão” quanto ao absoluto silêncio de sua atividade filosófica: decidiu promover aulas e seminários particulares, com Gabriel Liiceanu, Andrei Pleşu, Sorin Vieru e outros proeminentes intelectuais romenos como audiência. É provável que tenha sido apenas graças a esta brecha que hoje somos capazes de falar de Dragomir, salvando assim seu nome do total esquecimento. Na época, os interlocutores de Dragomir, isto é, personalidades culturais romenas já bem conhecidas, ficaram tão impressionados com suas amostras de virtuosismo filosófico, que começaram a gravar e a tomar longas notas de suas conferências. O nome de Dragomir começou a difundir-se, como o rei oculto da filosofia romena.

Dragomir podia ter permanecido para sempre um brilhante espírito socrático, sem uma obra filosófica real e transmissível. Mas logo depois de sua morte, em 2002, mais de uma centena de cadernos foram encontrados em seu apartamento, contendo anotações, comentários sobre textos clássicos, ensaios de pesquisa e análises fenomenológicas, e descrições filosóficas muito perspicazes e precisas. E o que é ainda mais importante, muitos deles são textos originais que o transformaram de uma lenda ou figura mítica da filosofia romena num filósofo cuja obra pode ser transmitida e compartilhada. A maioria desses textos são microanálises fenomenológicas ou esclarecimentos incisivos e sutis de vários aspectos concretos do mundo em que vivemos. Podem-se encontrar textos sobre o espelho, sobre o esquecimento, sobre o erro, sobre como as coisas se esgotam, sobre acordar de manhã, sobre o espectro das coisas feias ou repulsivas, sobre escrever e falar, sobre fazer distinções entre coisas, sobre ser único, e assim por diante. Há assuntos muito diferentes e heterogêneos, embora Dragomir observasse a diversidade do mundo através de suas agudas lentes fenomenológicas, para o propósito único de seu próprio desejo de compreender. Seu gênio foi descoberto na banalidade dos acontecimentos diários de nossas vidas, nas experiências mais concretas com que lidamos dia a dia, naqueles aspectos que julgamos mais autoevidentes e implícitos, as camadas profundas de sentido e significância fundamental, que ele então analisava com uma acuidade fascinante.

Todavia, um assunto permanece constante: há vários cadernos, chamados Chronos, nos quais Dragomir temática e sistematicamente perseguiu o problema do tempo por um período de várias décadas: o primeiro caderno data de 1948 e contém muitas notas escritas diretamente na Alemanha, enquanto o último dos cadernos data das décadas de 1980 e 1990. Depois da descoberta crucial de seus cadernos, era possível começar a recuperar sua obra. A Editora Humanitas já publicou três volumes: Banalidades Metafísicas Grosseiras, Cinco Fugas do Presente e Cadernos do Tempo. Pode ser que este livro sobre o tempo se mostre a obra mais importante de Dragomir.

Assim, à nossa pergunta – como alguém pode filosofar sem liberdade? – a resposta de Dragomir é similar à de Noica, ainda que muitas coisas sejam concretamente divergentes. Dragomir viveu sua vida filosófica de forma tão vívida que nenhum regime totalitário o pôde deter. Ainda mais radical que Noica, que foi ele mesmo um defensor da tenacidade filosófica, Dragomir é um caso único de retidão filosófica. Embora eu não conheça nenhum outro destino filosófico comparável, creio que sua vida merece ser conhecida, porque manifesta o valor vital intrínseco que a filosofia tem, mesmo nos piores momentos da história.




[1] Os direitos deste ensaio pertencem ao autor. O trabalho é aqui publicado com permissão do autor e pode ser citado como Phenomenology 2005, vol. III, Selected Essays from Euro-Mediterranean, ed. Ion Copoeru & Hans Rainer SEPP (Bucareste: Zeta Books, 2007), disponível em versão impressa e digital em www.zetabooks.com.
Contato com o autor, aqui: cristian.ciocan@phenomenology.ro.
[2] A respeito da vida de Noica, remetemos ao livro de Gabriel Liiceanu, O Diário de Paltinis: um modelo paidético na cultura humanista. Budapeste, Nova York, CEU Press, 2001, e aos artigos de nossos colegas Laura Pamfil e Sorin Lavric no jornal eletrônico Arguments vol, 2/2003. Mais informações sobre a filosofia romena podem ser encontradas em www.romanian-philosophy.ro.
[3] Em edição brasileira: Emil Cioran, Nos Cumes do Desespero. Trad. Fernando Klabin. São Paulo, Hedra, 2012. (N. T.)
[4] Em edição brasileira: Constantin Noica, Diário Filosófico. Trad. Elpídio Mário Dantas Fonseca. São Paulo, É Realizações, 2011. (N. T.)
[5] Em língua portuguesa, já foram editadas as seguintes obras de Gabriel Liiceanu, todas com tradução de Elpidio Mário Dantas Fonseca: Da Mentira. Campinas, Vide Editorial, 2014; Do Ódio. Campinas, Vide Editorial, 2015; e Da Sedução. Campinas, Vide Editorial, 2015. (N. T.)
[6] Até o momento, a única obra de Andrei Pleşu publicada em língua portuguesa é Da Alegria no Leste Europeu e na Europa Ocidental: E Outros Ensaios. Trad. Elpídio Mário Dantas Fonseca. São Paulo, É Realizações, 2013. (N. T.)
[7] Noica traduziu Porfírio, Dexipo e Amônio. Ele também coordenou a primeira edição completa das obras de Platão em romeno; formou equipes de tradutores de grego, latim e alemão. Sob sua orientação, começaram as primeiras traduções sistemáticas de Heidegger.
[8] Dragomir era amigo íntimo de Biemel, que era alemão de nascimento, mas romeno por sua educação, tendo completado seus estudos em Brasov e Bucareste. Biemel tem publicado num jornal de Bucareste alguns fragmentos de uma tradução de Heidegger. Em 1943, Biemel e Dragomir traduziram juntos a conferência Was ist Metaphysik? E ofereceram a tradução a uma editora romena. Infelizmente, a oferta foi recusada, por razões políticas: na Romênia ocupada pelo exército alemão, Heidegger era persona non grata... A tradução foi publicada 13 anos depois, em 1956, no jornal da Diáspora Romena em Paris. Depois deste início infeliz, Walter Biemel serviu como tradutor de Heidegger na França, traduzindo com Alphonse de Waelhens De l’Essence de la Vérité (1948) e Kant et le problème de la Métaphysique (1953).

terça-feira, 21 de junho de 2016

Credo ou caos


Por Dorothy L. Sayers[1]

E, quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, e da justiça e do juízo. Do pecado, porque não creem em mim; Da justiça, porque vou para meu Pai, e não me vereis mais; E do juízo, porque já o príncipe deste mundo está julgado.

João 16:8-11


Para os cristãos, falar sobre a importância da moralidade cristã é pior do que inútil se não estiverem preparados para defender suas posições tomando como fundamento a teologia cristã. É uma mentira dizer que o dogma não tem importância; o dogma tem uma importância imensa. É fatal deixar as pessoas suporem que o cristianismo é só uma maneira de sentir; é uma necessidade vital insistir que [o cristianismo] é, em primeiro lugar e acima de tudo, uma explicação racional do universo. É inútil oferecer o cristianismo como uma aspiração vagamente idealista de tipo simples e consolador; ele é, pelo contrário, uma doutrina sólida, robusta, minuciosa e complexa, impregnada de um realismo enérgico e intransigente. E é fatal imaginar que todo mundo sabe muito bem o que o cristianismo é e que basta incentivar sua prática. O fato brutal é que neste país cristão nem uma pessoa em cem tem a menor noção do que a Igreja ensina acerca de Deus, ou do homem, ou da sociedade, ou da pessoa de Jesus Cristo.


Se você acha que estou exagerando, pergunte aos capelães do exército. Com exceção do possível um por cento de cristãos inteligentes e instruídos, há três tipos de pessoas com que temos de lidar. Há os que são franca e abertamente pagãos, cujas noções de cristianismo são um amontoado terrível de trapos e farrapos de histórias bíblicas e pura besteira mitológica. Há os cristãos ignorantes, que combinam o sentimentalismo de um Jesus pacífico e bonzinho com uma ética vagamente humanista – a maioria destes são hereges arianos.[2] Por fim, há os frequentadores de igrejas mais ou menos instruídos, que conhecem toda a discussão acerca do divórcio, da confissão auricular e da comunhão sob as duas espécies [o pão e o vinho], mas estão quase tão bem equipados para a batalha sobre os fundamentos contra um ateu marxista ou um agnóstico wellsiano quanto um garotinho com uma zarabatana que enfrenta alguém que porte uma metralhadora. Teologicamente, no momento, este país está num estado de caos absoluto, instituído em nome da tolerância religiosa, degenerando-se a passos largos na fuga da razão e na morte da esperança. Não estamos felizes nesta situação, e sobretudo entre os mais jovens há sinais de grande ânsia de encontrar um credo a que possam aderir de todo o coração.


Esta é a oportunidade da Igreja, se esta resolver aproveitá-la. Enquanto a disposição das pessoas para ouvir passa, ela não tem estado numa posição muito boa por pelo menos dois séculos. As filosofias rivais do humanismo, do egoísmo esclarecido e do progresso mecânico fracassaram redondamente; o antagonismo da ciência provou-se mais aparente que real; e a doutrina otimista do laissez-faire está totalmente desacreditada. No entanto, nenhum bem será feito pelo recolhimento à piedade pessoal ou pela mera exortação a um retorno à oração. O que está em perigo é toda a estrutura da sociedade, e é necessário persuadir homens e mulheres de pensamento da relação íntima e vital entre a estrutura da sociedade e as doutrinas teológicas do cristianismo.


A tarefa não é facilitada pela recusa obstinada de uma grande massa de cristãos nominais, tanto leigos como clérigos, de enfrentar a questão teológica. “Levem embora a teologia e deem-nos uma religião agradável” tem sido um slogan popular por tanto tempo que estamos propensos a aceitá-lo, sem questionar se religião sem teologia tem algum sentido. E, por mais impopular que me torne, devo afirmar, e o farei, que a razão por que as igrejas estão desacreditadas hoje não é que sejam intransigentes demais quanto à teologia, mas, antes, porque têm fugido da teologia. A Igreja Católica é uma sociedade teológica – num sentido em que a Igreja da Inglaterra, tomada como um todo, não o é – e, por causa dessa insistência da teologia, é um corpo disciplinado, honrado e sociologicamente importante.


Gostaria de fazer duas coisas. Primeiro, apontar que, se realmente queremos uma sociedade cristã, temos de ensinar o cristianismo, e é absolutamente impossível ensinar cristianismo sem ensinar o dogma cristão. Em segundo lugar, colocar diante de vocês uma lista de meia dúzia dos principais pontos doutrinários que o mundo precisa, de um modo todo especial, ter martelado em seus ouvidos neste momento – doutrinas esquecidas ou mal interpretadas mas que (se são tão verdadeiras quanto a Igreja sustenta) são as pedras angulares daquela estrutura racional da sociedade humana que é a alternativa ao mundo do caos.


Começarei com a questão da inevitabilidade do dogma, se o cristianismo há de ser mais do que um pensamento brando, trivial e autoiludido sobre o comportamento ético.
Escrevendo em The Spectator, o Dr. Selbie, ex-diretor do Mansfield College, discutia sobre “O Exército e as Igrejas”. No meio do artigo há uma passagem que expõe a causa fundamental do fracasso das igrejas em influenciar a vida das pessoas comuns:


[...] a ascensão de um novo dogmatismo – seja calvinista, seja tomista – constitui uma ameaça séria e renovada à unidade cristã. A tragédia é que tudo isso, embora de interesse dos teólogos, é extremamente irrelevante para a vida e para o pensamento do homem médio, que fica mais confuso pela desunião das igrejas e pelas diferenças teológicas e eclesiásticas nas quais se baseiam.


Estou agora inteiramente disposta a concordar que as disputas entre igrejas constituem uma ameaça à Cristandade. E admitirei não ter muita certeza do que se pretende dizer com “novo dogmatismo”; pode ser, suponho, o surgimento de novos dogmas entre os seguidores de Santo Tomás e de Calvino, respectivamente. Mas, antes, imagino que quer dizer uma atenção renovada ao velho dogma, uma reafirmação dele, e que quando diz que tudo isso é irrelevante para a vida e para o pensamento do homem médio, o Dr. Selbie está deliberadamente dizendo que o dogma cristão, como tal, é irrelevante.


Mas se o dogma cristão é irrelevante para vida, para que, pelo amor de Deus, ele é relevante? – uma vez que o dogma religioso não é senão uma declaração das doutrinas concernentes à natureza da vida e do universo. Se os ministros cristãos realmente creem que [o dogma] é apenas um jogo intelectual para teólogos e não tem nenhum apoio na vida humana, não é de surpreender que suas congregações estejam ignorantes, entediadas e confusas. E, na verdade, no parágrafo imediatamente seguinte, o Dr. Selbie reconhece a relação do dogma cristão com a vida:


[...] a paz só pode dar-se por meio da aplicação prática dos princípios e valores cristãos. Mas isso deve ter por trás algo mais do que a mera reação contra aquele humanismo pagão que tem sido insatisfatório.


O “algo mais” é o dogma, e não pode ser nenhuma outra coisa, pois entre humanismo e cristianismo e entre paganismo e teísmo não há distinção alguma senão uma distinção de dogma. Que não se pode ter princípios cristãos sem Cristo fica cada vez mais claro, porque sua validade como princípios depende da autoridade de Cristo; e, como vimos, os estados totalitários, tendo deixado de crer na autoridade de Cristo, estão logicamente justificados em repudiar os princípios cristãos. Se se exige do homem médio que creia no Cristo e aceite sua autoridade sobre os princípios cristãos, é decerto relevante perguntar quem ou o que é o Cristo, e por que Sua autoridade deve ser aceita. Mas a pergunta “O que pensamos de Cristo?” chega ao homem médio junto com o tipo mais espinhoso de mistério dogmático. É absolutamente inútil dizer que não interessa de modo particular quem ou que era o Cristo ou com que autoridade fez aquelas coisas, e que mesmo se fosse apenas um homem, era um homem muito bom e devemos viver segundo seus princípios; pois isso é meramente humanismo, e se o homem médio na Alemanha decide pensar que Hitler é um tipo de homem mais perfeito, com princípios ainda mais atraentes, o humanismo cristão não tem resposta a dar.


Não é verdade de maneira alguma que o dogma é extremamente irrelevante para a vida e para o pensamento do homem médio. A verdade é que ministros da religião cristã frequentemente declaram que ele o é, apresentam-no para exame como se o fosse e, de fato, por sua exposição falha, tornam-no assim. O dogma central da Encarnação é aquele pelo qual a relevância se sustenta ou rui. Se fosse apenas homem, Cristo seria irrelevante a qualquer pensamento sobre Deus; se fosse apenas Deus, então seria inteiramente irrelevante para qualquer experiência de vida humana. No sentido mais estrito, é necessário à salvação da relevância que um homem acredite corretamente na Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo. A menos que creia corretamente, não há o menor motivo para que creia de qualquer outra maneira. E, nesse caso, é inteiramente irrelevante tagarelar sobre princípios cristãos.


Se o homem médio vai interessar-se por Cristo de todo modo, é o dogma que fornecerá o interesse. O problema é que, em nove de dez casos, nunca lhe foi oferecido o dogma. O que lhe tem sido oferecido é um conjunto de termos técnicos teológicos que ninguém assumiu a tarefa de traduzir numa linguagem relevante para a vida comum.


“... Jesus Cristo, o Filho de Deus, é Deus e homem”. O que isso sugere senão que Deus, o Criador (o velho irritadiço de barba branca), de alguma maneira misteriosa gerou na Virgem Maria algo anfíbio, nem uma coisa nem outra, como um tritão? E, assim como os filhos humanos, inteiramente distinto e (com alguma vênia) provavelmente antagônico ao pai? E o que, em todo caso, esse híbrido notável tem que ver com o Zezinho ou com a Mariazinha? Essa atitude de espírito é o que os teólogos chamam de nestorianismo, ou talvez uma forma degradada de arianismo. Mas realmente não podemos dar um rótulo técnico e pô-lo de lado como algo irrelevante para o pensamento do homem médio. Foi o homem médio quem o produziu. É, na verdade, uma expressão imediata e simplória do pensamento do homem médio. E sob o risco de mergulhá-lo na abominável heresia do patripassianismo ou do teopasquismo, devemos unir-nos a Atanásio para assegurar a Zezinho e Mariazinha que o Deus que viveu e morreu no mundo era o mesmo Deus que fez o mundo e que, portanto, o próprio Deus tem as melhores razões possíveis para compreender e simpatizar-se com os problemas pessoais de quem quer que seja.


“Mas”, Zezinho e Mariazinha logo objetarão, “para ele não importava muito se era Deus. Um deus não pode sofrer realmente como você e eu. Ademais, o ministro diz que devemos tentar ser como Cristo; mas isso é uma insensatez – não podemos ser Deus e é tolice pedir-nos que tentemos”. Essa hábil exposição da heresia eutiquiana mal pode ser descartada como meramente “interessante para teólogos”; parece interessante a Zezinho e Mariazinha ao ponto de irritá-los. A contragosto, somos forçados a envolver-nos ainda mais em teologia dogmática e insistir em que Cristo é Deus perfeito e homem perfeito.


Neste ponto, a linguagem pode trair-nos. O homem médio não deve ser impedido de pensar que “Deus perfeito” implica uma comparação com deuses menos perfeitos, e que “homem perfeito” significa “o melhor tipo de homem que se pode ter”. Embora ambas as proposições sejam absolutamente verdadeiras, não são exatamente o que queremos transmitir. Talvez seja melhor dizer, “inteiramente Deus e inteiramente homem” – Deus e homem ao mesmo tempo, em cada aspecto particular e também no todo; Deus de eternidade a eternidade e do ventre ao sepulcro e também homem, do ventre ao sepulcro e agora.


“Tudo muito bem”, responde Zezinho, “mas isso me é indiferente. Porque, se ele era Deus todo o tempo, deve ter tomado conhecimento de que seu sofrimento, morte, etc., não durariam, e ele podia tê-los interrompido por milagre, se quisesse, de maneira que sua pretensão de ser um homem comum não é outra coisa se não puro teatro”. E Mariazinha acrescenta: “Você não pode chamar uma pessoa de ‘inteiramente homem’ se ele era Deus e não quis fazer nada errado. Era fácil para ele ser bom, mas para mim não é, de jeito nenhum. E quanto a todas as tentações? Encenação de novo. Não me ajuda viver o que você chama de vida cristã”.


Zezinho e Mariazinha estão agora no caminho de tornarem-se apolinarianos convictos, um fato que, embora interessante aos teólogos, tem relevância distinta também para a vida do homem médio, uma vez que propõem, com base nele, descartar os princípios cristãos como impraticáveis. Não há ajuda possível. Temos de insistir em que Cristo tinha uma alma racional bem como carne humana; temos de admitir as limitações humanas do conhecimento e do intelecto; temos de aceitar uma pista do próprio Cristo e sugerir que os milagres pertencem ao Filho do Homem bem como ao Filho de Deus; temos de postular uma vontade humana sujeita à tentação; e temos de ser muito firmes quanto a “igual ao Pai no tocante a sua divindade e inferior ao Pai no tocante a sua humanidade”. Complicada como a teologia é, o homem médio tem caminhado direto ao coração do credo atanasiano, e somos obrigados a seguir.


Professores e pregadores nunca, eu acho, deixam claro o suficiente que dogmas não são um conjunto arbitrário de regras inventadas a priori por um comitê de teólogos deleitando-se numa luta livre dialética. A maioria deles foram forjados sob a pressão da necessidade prática urgente de oferecer uma resposta à heresia. E heresia é, em grande medida, como tenho tentado mostrar, a expressão da opinião do homem médio não instruído, tentando enfrentar os problemas do universo a partir do ponto em que começam a interferir na vida e no pensamento cotidianos. Para mim, comprometida com minha ocupação diabólica de seguir o vai e vem do mundo e caminhar para cima e para baixo nele, conversas e correspondências trazem diariamente um recorte magnífico de todas as heresias padrão. Estou muito bem familiarizada com elas como exemplos práticos da vida e do pensamento do homem médio, embora tenha de pesquisar numa enciclopédia para enquadrá-las nos rótulos teológicos adequados para os fins deste discurso. Para respondê-las, no entanto, não preciso ir tão longe; estão concisamente apresentadas nos credos.


Mas um fato interessante é o seguinte: que nove entre dez dos meus hereges ficam surpresíssimos em descobrir que os credos contêm declarações dotadas de um sentido prático e compreensível. Se lhes digo que é um artigo de fé que o mesmo Deus que fez o mundo suportou o sofrimento do mundo, perguntam na mais perfeita boa fé que relação há entre aquela declaração e a história de Jesus. Se chamo-lhes a atenção ao dogma de que o mesmo Jesus que era o amor divino era também luz de luz, a sabedoria divina, surpreendem-se. Alguns deles me agradecem sinceramente por essa interpretação de todo nova e original das Escrituras, da qual nunca ouviram antes e supõem que eu a inventei. Outros dizem com irritação que não gostam de pensar que sabedoria e religião têm algo que ver uma com a outra, e que eu faria muito melhor em romper com a sabedoria, com a razão e com a inteligência e apegar-me a um simples evangelho de amor. Mas, satisfeitos ou incomodados, estão interessados; e o que lhes interessa, quer suponham ser invenção minha quer não, é a resoluta afirmação do dogma.


Quanto à queixa do Dr. Selbie de que a insistência no dogma somente afronta as pessoas e evidencia as lutas mortais da Cristandade, posso dizer duas coisas? Primeiro, creio ser um equívoco grave apresentar o cristianismo como algo atraente e popular sem nada ofensivo. Vendo que o Cristo veio ao mundo trazer a mais violenta ofensa a todos os tipos de pessoas, pareceria absurdo esperar que a doutrina de sua pessoa pudesse ser apresentada sem ofender ninguém. Não podemos ignorar o fato de que o Jesus gentil, meigo e manso, era tão rígido em suas opiniões e tão inflamado em sua linguagem que foi expulso da igreja, apedrejado, caçado por toda parte e, enfim, levado ao madeiro como um agitador ou uma ameaça pública. O que quer que fosse sua paz, não era a paz de uma indiferença cordial; e ele disse em muitas palavras que o que ele trouxe consigo foi fogo e espada. Sendo assim, ninguém precisa ficar muito surpreso ou desconcertado ao constatar que determinada pregação do dogma cristão pode às vezes resultar numas poucas cartas irritadas de protesto ou numa diferença de opinião sobre o concílio eclesiástico.


A outra coisa é: percebo pela experiência que há uma medida muito grande de concórdia entre as denominações cristãs sobre todas as doutrinas que são realmente ecumênicas. Uma interpretação rigidamente católica dos credos, por exemplo – incluindo o credo atanasiano – encontrará apoio tanto em Roma quanto em Genebra. As objeções virão principalmente dos pagãos, e de um ramo ruidoso mas não muito representativo de pastores heréticos que uma vez em sua juventude leram Robertson ou Conybeare e nunca se recuperaram. Mas o que é urgentemente necessário é que certos fundamentos sejam reafirmados em termos que tornem seu sentido – e aliás o mero fato de que eles têm um sentido – importante para os pagãos não instruídos e comum para aqueles a quem a linguagem técnica teológica tornou-se letra morta.



Extraído do ensaio intitulado Creed or Chaos?, publicado no livro Letters to a Diminished Church (2004).


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[1] Dorothy L. Sayers (1893–1957) foi uma escritora de romances policiais, poetisa, dramaturga, ensaísta, tradutora e humanista cristã. Sua obra A Mente do Criador foi recentemente publicada no Brasil pela É Realizações Editora

[2] Ou possivelmente adocionistas; eles não formulam suas teorias com grande precisão. [A autora menciona outras heresias cristológicas dos primórdios da era cristã. Como ficará claro, a datação e a definição precisas são desnecessárias para os fins deste texto, por isso não me dei o trabalho de inserir notas explicativas. (N. T.)]

segunda-feira, 7 de março de 2016

A Louise Abbot

Ilustração do camponês Sérgio de Souza.


Milledgeville
Sábado


Prezada Louise,


Considero que não há sofrimento maior do que aquele causado pelas dúvidas dos que desejam crer. Sei que tormento é este, mas, seja como for, só o posso ver em mim mesma como o processo pelo qual a fé se aprofunda. Uma fé que só aceita é uma fé pueril e é adequada para uma criança, mas, como o tempo, cresces religiosamente, assim como nos demais aspectos – ainda que alguns jamais o façam.

O que as pessoas não percebem é o custo da religião. Pensam que a fé é um grande cobertor elétrico, quando obviamente ela é a cruz. É muito mais difícil crer do que não crer. Se sentes que não podes crer, deves ao menos fazer o seguinte: mantém a mente aberta. Mantém-na aberta na direção da fé, continua desejando-a, continua a buscá-la, e deixa o resto para Deus.

A confissão considerada corretamente não é um ato realizado a fim de atrair a atenção de Deus ou de conseguir um crédito para si mesmo. É algo natural que se segue ao arrependimento. Estivesse eu em teu lugar, esqueceria a confissão até que me sentisse chamada a fazê-la. Não te precipites demais. Tenho a sensação de que irritas tua alma com muitas coisas com que ainda não é tempo de irritá-la.

Minha leitura do artigo do padre sobre o inferno foi que o inferno é aquilo em que o amor de Deus se torna para aqueles que o rejeitam. Ora, ninguém tem de rejeitá-lo. Deus nos fez para amá-Lo. É necessário que haja dois para que haja amor. É necessário que haja liberdade. É necessário que haja o direito de rejeitar. Se não houvesse inferno, seríamos como os animais. Sem inferno, sem dignidade. E lembra-te da graça de Deus. É fácil declará-la como uma fórmula e difícil crer nela, mas tenta crer no oposto e acharás bem fácil. A vida não tem sentido dessa forma.


Carta de Flannery O'Connor para Louise Abbot. In: Flannery O'Connor, Collected Works. New York: The Library of America, 1988, p. 1110.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Senso do mistério e senso da realidade




O tipo de mente capaz de compreender a boa ficção não é necessariamente a mente educada, mas é sempre a mente disposta a ter seu senso de mistério aprofundado pelo contato com a realidade, e seu senso de realidade aprofundado pelo contato com o mistério. A ficção pode ser sóbria e misteriosa ao mesmo tempo. Em boa parte da crítica popular, vigora a ideia de que toda ficção deve ser a respeito do Homem Médio e tem de retratar a vida cotidiana ordinária, que todo escritor de ficção deve produzir o que se costuma chamar “uma parcela da vida”. Mas se a vida, neste sentido, nos satisfizesse, não haveria sentido em produzir literatura nenhuma.


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Não sei o que é pior: ter tido um professor ruim ou não ter tido professor nenhum. Em todo caso, acredito que o trabalho do professor deve ser em larga medida negativo. Ele não pode conferir-lhe o dom, mas, se o encontra, pode tentar guardá-lo de seguir numa direção flagrantemente equivocada. Podemos aprender como não escrever, mas esta é uma disciplina que não diz respeito apenas à escrita propriamente dita, mas a toda a vida intelectual. Uma mente livre de emoções falsas, de sentimentos falsos e de egocentrismo terá ao menos esses obstáculos removidos de seu caminho. Se o pensamento não é vulgar, ao menos não haverá vulgaridade em sua escrita, ainda que você não seja capaz de escrever bem. O professor pode tentar eliminar o que é positivamente ruim, e este deve ser o propósito de toda instituição de ensino. Todas as disciplinas podem ajudá-lo a escrever: lógica, matemática, teologia e, claro, desenho. Qualquer coisa que o ajude a ver, qualquer coisa que o faça olhar com atenção. O escritor jamais deve se envergonhar de ser um observador. Não há nada que não exija sua atenção. 

Flannery O’Connor, "The Nature and Aim of Fiction". In: Mystery and Manners: Occasional Prose. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1970.