quarta-feira, 28 de abril de 2010

Uma geração sem palavras


Por Paulo Rónai, em 1954
Escritor nas horas vagas, sou professor por vocação e destino. “A quem os deuses odeiam, fazem-no pedagogo”, diz o antigo anexim; assim, pois, dando minhas aulas há tantos anos, talvez esteja expiando algum crime que ignoro, cometido porventura nalguma existência anterior. Apesar disto, não tenho maiores queixas de um ofício que, mantendo-me sempre no meio dos moços, me dá a ilusão de envelhecer menos rapidamente do que aqueles que passam a vida inteira entre adultos solenes e estereotipados.
Outra vantagem da minha profissão principal é fornecer material copioso para a profissão acessória. Se fosse ficcionista, que mina não teria à mão no mundo da adolescência, mina ainda insuficientemente explorada e cheia de tesouros! Mas, como não sou ficcionista, utilizo-me desse cabedal apenas para observação e reflexão; às vezes o aproveito nalgum monólogo inócuo, como este.
Não sei se isto só acontece a mim, mas estou verificando no meu contato diário com a nova geração um fenômeno impressionante e que me parece merecedor de reparo. Devo dizer primeiro que a matéria que mais frequentemente ensino é o latim, essa gata borralheira do currículo, de que todos falam mal. Entretanto, quando ensinado por professores que sabem sorrir, torna-se a disciplina mais atraente. Ela faz reviver o passado da nossa cultura e da nossa língua, constitui um centro de interesse sem igual, um esteio das demais matérias; desenvolve nos jovens cérebros em formação o senso histórico, ensina-lhes o amor ao esforço intelectual – aspectos esses que parecem ter escapado a nossos sôfregos reformadores, que mais uma vez querem matar esta língua morta de sete fôlegos.
Mas não estou aqui desta vez para fazer a apologia do latim, nem para dar palpites de metodologia. Esse preâmbulo foi necessário para melhor explicação do fenômeno que venho observando em minhas aulas com frequência cada vez maior.
Todo professor sabe que existem duas espécies de atenção. Uma é mecânica e aparente: os alunos olham para o mestre, seguem-lhe os gestos e o movimento da boca, ouvem-no, mas a explicação não lhes chega até o cérebro. Se interrogados bruscamente, são capazes de repetir a última frase ouvida, mas não saberiam reproduzir a sequência das ideias. A outra atenção é instintiva e verdadeira: acompanha as sinuosidades da explanação, alegra-se com as dificuldades superadas e, quando bem orientada, explode sob forma de questões e mesmo de interrupções. Em toda aula, até na mais interessante, há um oscilar da atenção ativa para a passiva, e vice-versa. Cabe ao professor perceber quando esta sobrepuja aquela e intervir oportunamente para sustar a sonolência coletiva.
É de minha praxe encorajar os meus alunos a formular perguntas cada vez que não entendem algum ponto da explicação. Chego a recompensar com grau dez certas perguntas inteligentes que me dão sugestões ou me revelam a existência de alguma obscuridade onde tudo me parecia claro. E assim vamos distinguindo os elementos constitutivos de um período, progredindo passo a passo no labirinto da sintaxe e desvendando um a um os mistérios da frase latina.
Agora já está ela toda analisada e traduzida. Por sinal que é até uma oração bastante simples, que se refere ao triste fim de Ícaro, o menino desobediente que voou alto demais. “Sic puerum audacem perire vidimus.” Eliminadas uma a uma as dificuldades da construção, o sentido está claro e líquido: “Assim vimos perecer o menino audaz.” No entanto, em muitos olhos, em vez da chama inteligente da atenção ativa, só percebo a névoa da atenção passiva.
O busílis está na versão portuguesa. Descubro com sincero assombro que as meninas – alunas da 3ª série ginasial – não entendem o verbo perecer, que geralmente confundem com parecer. Poucas têm idéia, por outro lado, da significação exata de audaz. Faz-se mister traduzir mais uma vez a frase já traduzida em vernáculo, desta vez para uma espécie de português básico, a única língua que as minhas alunas entendem.
Várias experiências semelhantes me convenceram de que as minhas gentis alunas – que, entretanto, são, na maioria, inteligentes e esforçadas – não compreendem parte considerável do vocabulário português comum. Assim, noutro trecho latino encontramos patrimonium e elas, com presteza, vertem-no por patrimônio. Que felicidade traduzir latim para uma língua tão parecida! Pois é, mas na sala ninguém sabe o que é patrimônio. Depois de alguma insistência da minha parte, uma menina das mais desembaraçadas se sai com essa interpretação: patrimônio significa casamento!
Apesar do hábito que lhes inculquei de me interrogarem sobre os pontos duvidosos da aula, raramente as minhas alunas me perguntam o sentido de uma palavra vernácula. Não se dá isso por preguiça, nem sequer, como alguém poderia pensar, por constrangimento e vergonha: elas simplesmente não percebem que ignoram tal sentido. A maioria das palavras portuguesas que ouvem diariamente, pelo menos na escola, boiam-lhes na cabeça como formas vagas e inconsistentes, incorpóreas, nebulosas, feitas uns fantasmas.
Eis uma pequena relação de mais alguns dos muitos vocábulos que, conforme verifiquei, nenhum conceito preciso evocam no espírito da maioria das alunas da 2ª, da e, até, da série ginasial: os substantivos prado, recinto, artífice, tamanho, preceito, adágio, máxima; os adjetivos indigente, diligente, afável, vultuoso, rugoso, ulterior, os verbos admoestar, corroborar, estabelecer, resolver, saciar, deliberar, acudir, etc. Alguns testes feitos por técnicos competentes demonstrariam, é provável, que elas ignoram quase todo o vocabulário abstrato e muitos termos concretos indispensáveis.
Mas, perguntará alguém, como então essas meninas que carecem (cuidado! o senhor acaba de empregar mais uma dessas palavras incompreensíveis!), essas meninas que carecem de número tão grande de vocábulos podem entender, não digo já uma explicação de matemática, porém a mais simples lição de história, ou mesmo de português. A verdade é que elas não as entendem; e que as aprender mesmo sem entendê-las é uma demonstração comovedora de boa vontade, pela qual merecem a nossa admiração, mas também a nossa compaixão.
Há vinte anos, o domínio de um razoável vocabulário não era julgado nenhum luxo intelectual; pelo contrário, parecia indispensável não somente para alguém se exprimir, mas sobretudo para pensar, uma vez que essa última operação é inseparavelmente ligada às palavras, símbolos dos conceitos. “Mais nous avons changé tout cela!” Nesse ponto, vejo-me assaltado por uma dúvida cruel. Semelhante falta de vocabulário não será a causa e, ao mesmo tempo, a consequência de uma escassez alarmante de conceitos, de ideias?
É de temer que sim. É o que faz supor, entre outros fenômenos, a incapacidade que têm nossos alunos de resumir uma página que acabam de ler, ou de ir até o fim de um livro, mesmo escrito para adolescentes. A falta de qualquer atividade intelectual autônoma criou neles uma indolência estranha. Basta uma descrição algo demorada, algumas páginas sem parágrafos, duas palavras empregadas em sentido figurado, uma frase irônica, para que atirem de lado o livro que pegaram por insistência dos pais ou dos professores. Certo dia, ocorreu-me premiar uma das minhas melhores alunas da série ginasial com um delicioso livrinho para adolescentes. Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnar, que eu mesmo traduzira do húngaro com o intuito de divulgá-lo em português. Estranhando a falta de qualquer reação da parte dela depois de decorridos dois meses, pedi-lhe as impressões. A resposta não deixou de me surpreender: não conseguira ler o livro porque as personagens tinham nomes estrangeiros. Esse único empecilho, evidentemente, não seria bastante para fazê-la abandonar a leitura, se já não estivesse, embora sem sabê-lo, à procura de um pretexto para isso.
A pobreza do vocabulário é uma consequência sobretudo da falta de leitura. Os nossos alunos de hoje não têm tempo de ler. Costuma-se culpar os programas malfeitos e sobrecarregados. Mas a esses os jovens sabem opor uma reação natural e eficiente, que consiste em estudarem em casa o menos possível. Não têm tempo, porque o rádio e o futebol, e sobretudo as histórias em quadrinhos e o cinema ocupam-lhes todos os lazeres (e note-se que não falo nos passeios em automóvel, nem na televisão, por enquanto privilégio de uma minoria). Todos esses divertimentos contribuem para desprestigiar a palavra escrita e, em geral, o esforço mental. Quem devora uma história em quadrinhos não vai parar se lhe escapa o sentido de algumas palavras. Se fosse livro de verdade, ele recorreria ao dicionário ou consultaria alguém. Mas o desenho explica tudo e permite que a gente prossiga na “leitura” sem que tenha uma idéia muito clara dos pormenores da história. Se analisássemos os demais passatempos, chegaríamos a resultados mais ou menos idênticos.
Mas talvez eu me deixe levar apenas pelas idiossincrasias devidas a uma educação diferente. Os alunos de hoje lerão menos, mas levam, sem dúvida alguma, uma vida mais intensa, mais rica em sugestões. De acordo; apenas, eles não chegam a tomar inteira consciência dessa vida, dessas sugestões, e isso precisamente por causa da falta de vocábulos e de ideias.
Há tempos, passei para meus alunos de francês – a outra matéria que ensino – um fácil exercício de redação: três frases com três tempos do verbo aller. A maioria elaborou frases iguais: Hier je suis allé au cinéma; aujourd'hui jé vais au cinéma; demain j'irai au cinema”. Alguns em vez de “au cinéma” escreveram “à un jeu de football”. Mandei refazer a lição, proibindo nas frases o emprego das palavras cinema e football. Em face dessa proibição, parte da turma não conseguiu fazer o trabalho, pois não lhes ocorreu nenhum complemento de lugar a não ser aqueles dois.
Trata-se de uma crise geral da civilização, está certo. A cultura que nos criou, baseada toda ela na palavra escrita, está em via de se transformar e, forçosamente, transformar-se-ão também seus meios de expressão. Mas o ritmo dessa metamorfose é menos rápido que o do empobrecimento intelectual dos nossos jovens, que estão abrindo mão de uma ferramenta preciosa antes que a nova marca se encontre à venda.

3 comentários:

Rodrigo disse...

Seu texto é fantástico.
Depois de muito tempo sem cultivar um gosto meu, o de fotografar, tento me reaproximar dessa arte. Mas ando refletindo sobre a verbosidade de imagens e símbolos que entopem a imaginação de qualquer ser minimamente inserido em um contexto urbano contemporâneo, e penso que, diante de tanto exagero, talvez minha contribuição maior possa ser no silêncio, na não-produção de mais imagens. Lembrei-me agora, e consulto o livro para uma citação precisa:
"Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, (...), ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: -Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."

Aleksey disse...

Em ler textos como esse, envergonho-me de às vezes ter cedido à preguiça e, porque não dizer, à talvez vergonha de escrever, como já o tivera feito há alguns anos atrás, tanto para público, quanto para atender as queixas da própria alma.

É diante desta gigantesca onda de "revisionismo cultural" e relativismo intelectual que, pouco inspirado e sem motivações dentro da lógica, termino por me reservar, no espaço estreito da minha pessoa singular, aos costumes arcaicos e antiquados da leitura e da música, sem prestar contas à -- na minha sincera opinião -- escassez intelectual das novas mídias contemporâneas.

Gabriel disse...

Fiquei impressionado pela atualidade do texto, e dois fatos me chamaram a atenção: primeiro, foi a eliminação do latim do currículo, que gostaria muito de ter aprendido; o segundo foi o por quê de meu pai ter levado ao meu professor de Português um saco da papel cheio de revistas em quadrinhos (emprestadas) para mostrar o que eu "estava lendo", e o Professor, à época, ter-me passado um grande sermão e me emprestado dois livros (que custei a devolver - sem ler, é claro). Posteriormente tomei consciência de quão importante é aprender e apreender, e hoje sou um leitor compulsivo, me arriscando até a escrever alguns artigos. Pena que tudo isso está acabando, e se o estudante não se comprometer, talvez saia da escola pior do que entrou...