sexta-feira, 6 de março de 2009

Uma saída para a religião

A refrega entre ciência e religião voltou à tona com força máxima em 2009. Culpa de Darwin, que faz aniversário neste ano. 200 anos de vida, 150 desde a publicação de “A Origem das Espécies”. Numa tentativa de discutir a relação, muitos se aventuram a propor uma reaproximação entre as duas, talvez como uma forma de reviver os áureos tempos em que a Igreja patrocinava as “heresias” científicas de seus fiéis. Cupidos destrambelhados, a conciliação parece longe de um final feliz. Mesmo assim, não faltam figuras benevolentes, tolerantes como os Santos, a propor uma solução para a peleja. Um exemplo é o físico Marcelo Gleiser, em texto para o Caderno Mais!, da Folha de São Paulo (A Ciência e as Religiões, FSP 22/02/2009). Gleiser, na melhor das boas intenções, apresenta aquilo que seria uma saída para a controvérsia.

Para ele, o problema principal está na relação dos religiosos com os textos sagrados. Escreve: “(...) Em vez do radicalismo imposto por uma interpretação liberal (certamente um erro tipográfico, mas que pode complicar a compreensão de leitores incautos) da Bíblia, as correntes mais liberais tendem a ver o texto bíblico de forma simbólica, como uma representação metafórica de acontecimentos e fatos passados com o intuito – dentre outros – de fornecer uma orientação moral para a população.” O crente ideal seria, então, aqueles que reconhecem “(...) que é absurdo insistir que a Terra tenha menos de 10 mil anos ou que Adão e Eva surgiram da terra. Para um número cada vez maior de congregações, é fútil fechar os olhos para os avanços da ciência”. Para esses “(...) a preservação dos valores religiosos, da coesão de suas congregações depende de uma modernização de suas posições de modo que possam refletir o mundo em que vivemos hoje e não aquele em que pessoas viviam há dois mil anos”. Afinal, “(...) o mundo mudou, a sociedade mudou, a religião também deve mudar”.

A boa intenção, como sabemos, é característica comum no inferno (no metafórico, claro). A argumentação de Gleiser pode ser resumida da seguinte forma: religião e ciência podem conviver em harmonia, desde que a religião deixe de ser... religião. Abandonar qualquer ambição de ser “a” verdade, abrir mão de seus dogmas, relativizar a fé (Adão e Eva? Nem pensar!), em suma, adaptar-se ao “mundo moderno”: eis a saída, segundo o físico – que, entendo, fala em nome da ciência.

Mas há na lógica racional de Gleiser uma lacuna que compromete toda sua argumentação: ora, a religião só é religião enquanto cultiva sua pretensão de verdade, quando mantém seus dogmas, quando toma a fé como a lente para a compreensão do mundo. Goste-se ou não, religião é isso. Caso contrário, qual seria a diferença entre “crer” nas lições morais das fábulas de La Fontaine e devotar-se à moral Cristã? Neste caso, não importaria se o deus é real ou metafórico. Bastaria absorver os ensinamentos que ainda se encaixam na modernidade – ou fazer as devidas adaptações –, desprezando as superstições desacreditadas pela ciência. Mas como se temporalizar aquilo que se declara o Eterno?

Percebam que nesta leitura a ciência toma para si a prerrogativa de verdade que é negada à religião. O Divino e seus fiéis ficariam submetidos à agenda científica, sempre à espera da próxima descoberta. O que hoje é praticável, amanhã pode se tornar antiquado; o que agora é tolerável tornar-se-ia anacrônico. Trata-se da morte de Deus. Não na forma descrita por Nietzsche, mas defunto por sua incapacidade de ter vida própria, autônoma. Logo Ele?!

Involuntariamente, Marcelo Gleiser manifesta a mais nefasta intolerância: aquela que se apresenta de forma condescendente, cheia de amor para dar. Em nome da harmonia, para preservar a paz, em defesa do amor mútuo, a religião faria todas as concessões, negaria a si própria e levaria sua cruz. Crucificada, morreria em favor de seu próprio algoz. Metáfora? Realidade? Não faz diferença.

Quero crer que Gleiser é um agnóstico ingênuo. Ou um ateu que ignora os fundamentos da religião. Caso contrário, eu desaconselharia qualquer médico a insinuar, perto dele, uma reza antes de realizar uma cirurgia. A tolerância de Gleiser segue a lei newtoniana segundo a qual dois corpos não podem ocupar um só lugar ao mesmo tempo.

terça-feira, 3 de março de 2009

Mais entrevista: agora com Jacques Barzun


Mais uma das grandes entrevistas de VEJA, essa foi feita em 10 de abril de 2002.

Apagão na cultura

O historiador americano diagnostica
um mal-estar na civilização ocidental,
mas acha que a sua decadência
tem remédio

Publicado há dois anos nos Estados Unidos e agora lançado no Brasil, o livro Da Alvorada à Decadência (Editora Campus) é uma daquelas obras de deixar qualquer historiador com inveja. Cobre um período de 500 anos e defende a tese de que a cultura ocidental experimenta um processo de declínio. Suas páginas transpiram uma erudição impressionante e, como se não bastasse, estão recheadas de opiniões contundentes. A complacência, certamente, não faz parte do repertório de seu autor, o americano de origem francesa Jacques Barzun. Quando lhe perguntam quanto tempo levou para escrever um livro de tanto fôlego, ele responde: "A vida toda". Barzun tem 94 anos – e conserva intacta sua lucidez. Passou a infância na Paris dos modernistas. Mudou-se para os Estados Unidos na década de 20, para estudar na Universidade Colúmbia. Como professor, foi um dos fundadores da disciplina de história cultural. Ele concedeu esta entrevista a VEJA por telefone, de sua casa em San Antonio, no Texas.

Veja – O que o leva a pensar que a cultura ocidental está em decadência?
Barzun – A palavra decadência expressa uma perda de energia. Transmite a idéia de que as chaves mestras da cultura já não têm o poder de abrir novas portas, de inspirar avanços. No lugar das possibilidades há repetição, estagnação e tédio. Há sinais de sobra de que isso está acontecendo no Ocidente. As confissões de mal-estar são contínuas, o repúdio e a deturpação das instituições são uma constante. Tomemos o Estado-Nação, por exemplo. Ele foi uma das maiores invenções de nossa era. Mas está se desfazendo em toda parte, porque a idéia de pluralismo político, sobre a qual se assentava, foi substituída pela idéia de separatismo. Mais e mais os homens querem unir-se em grupos pequenos de pensamento homogêneo, que formem unidades políticas separadas. A região dos Bálcãs, claro, é o exemplo clássico. Mas o processo pode ser observado em qualquer lugar, da Catalunha à Escócia, que há pouco instituiu um Parlamento independente do Parlamento inglês. Outro indício está na busca de tantos ocidentais por seitas e religiões que vêm do Oriente e trabalham idéias como a do nirvana ou a do "não-ser". Isso não é um sinal de entusiasmo com a nossa cultura.

Veja – E no campo das artes?
Barzun – O esgotamento é ainda mais patente. Observe a agitação frenética, os esforços desesperados para criar novidades. Os rótulos se sucedem – da "antiarte" à "arte encontrada", à "arte descartável" e assim por diante. As belas idéias surgidas na Renascença, e com as quais lidamos por 500 anos, tiveram seu prazo de validade vencido. Tome uma obra escrita no auge da Renascença, o Pantagruel, do francês Rabelais, e um livro escrito no auge do modernismo, o Ulisses, do irlandês James Joyce. Joyce tomou muitos temas e procedimentos lingüísticos emprestados de Rabelais. Ambos expõem recantos sórdidos da sociedade, ambos exploram vigorosamente a carnalidade humana. Mas, enquanto a literatura do francês nos deixa estimulados e eufóricos, a de Joyce é depressiva. Basta ler os dois livros para perceber as diferenças de ânimo entre uma cultura em sua aurora e uma cultura em desencanto.

Veja – O senhor parece ter uma opinião ambígua sobre a arte moderna. Reconhece a força de certos artistas, mas lamenta de maneira geral o espírito com que fizeram suas obras.
Barzun – Nos primórdios, o modernismo foi uma batalha para livrar o artista de padrões ancestrais de educação e liberá-lo para desenvolver uma visão individual do mundo. Mas tudo que os artistas viram foi um mundo injusto, materialista, desprezível. Desde os anos 20, pelo menos, a arte ocidental tem sido de destruição deliberada da sua própria tradição e de hostilidade contra a sociedade, de maneira geral. O trabalho de destruição das pontes com o passado acontece até mesmo onde o repertório utilizado é antigo. Veja o caso das produções teatrais. Hoje ninguém mais encena Shakespeare. Encenam falsificações que nem sequer se preocupam em entender as intenções originais do artista.

Veja – O senhor criou um rótulo para o momento presente. Diz que vivemos em "tempos demóticos". O que quer dizer com isso?
Barzun – Fiz isso em nome do bom uso das palavras. As pessoas costumam referir-se a práticas "democráticas" não apenas no campo político, mas também no das artes e do comportamento. Eu preferiria manter a palavra democracia para designar apenas um sistema político – que, diga-se de passagem, não atingimos de maneira plena em lugar nenhum. Para designar coisas relativas a modo e estilo de vida – roupas, comidas, formas de expressão –, tomei emprestada do grego uma palavra de mesma raiz, "demótico", que significa simplesmente "do povo". A primeira moda demótica surgiu logo depois da Revolução Francesa, quando os calções da aristocracia foram abandonados em favor da calça do trabalhador. Hoje, não é preciso dizer, a calça jeans de vaqueiro tornou-se universal – com suas variantes desbotadas, rasgadas e mal-ajambradas. Mas a vestimenta é apenas o sinal mais óbvio do estilo demótico, que está em seu auge e é marcado pela displicência e pela crença de que nada deve interferir na realização de todo e qualquer desejo.

Veja – Nas últimas décadas, vários países que viviam sob regimes ditatoriais entraram em processo de democratização. Bens circulam pelo globo e a medicina ajuda a salvar vidas em países pobres. Esses eventos são regidos por idéias e técnicas surgidas no Ocidente. Não seriam um sinal de que a cultura ocidental ainda tem algo a oferecer?
Barzun – É como eu disse no começo da entrevista: o termo decadência expressa uma perda de energia, não um estado de ruína total. Ainda há idéias ocidentais capazes de inspirar e servir de guia para países jovens. E não há dúvida de que a ciência e a tecnologia do Ocidente continuarão a produzir avanços e benesses. É uma ressalva, aliás, que faço em meu livro: a ciência não passa pelo processo de declínio observado em outras áreas. Mas isso não invalida o diagnóstico geral. Digamos que o estado da alma ocidental não é feliz. Não encontramos ninguém dizendo a frase de Erasmo no começo da Renascença, e que os franceses repetiram depois da Revolução de 1789: "Que tempo maravilhoso para se viver!".

Veja – Supondo que o senhor esteja certo, o que vem depois da decadência?
Barzun – Ninguém sabe – e esse é o fato positivo. Meu livro procura descrever um estado presente, e não fazer profecias. Certos germes sempre podem se desenvolver numa cultura e causar uma fermentação que a leve a caminhos imprevistos. Foi o que aconteceu no fim do século XV, quando a descoberta do Novo Mundo balançou a Europa e abriu possibilidades antes inimagináveis.

Veja – Existe alguma época em que o senhor gostaria de ter vivido?
Barzun – No século XIX, a partir de 1830. Foi um tempo de grande inventividade em toda a Europa. A era se autonomeou Era do Progresso, e com razão. Foi um tempo de luta contra os resquícios da monarquia e do velho sistema de classes. Havia um sentimento de conquista, energia e desenvolvimento no ar. O ambiente mais adequado ao espírito humano.

Veja – Sua vida atravessa o século XX quase inteiro. Sua vivência pessoal influiu de alguma forma em sua visão de historiador?
Barzun – Sim, é claro. Eu nasci e passei os primeiros anos de vida na França, onde meu pai e minha mãe eram amigos e colaboradores da nova geração de artistas que surgia. Os pintores cubistas freqüentavam nossa casa, assim como muitos escritores, do romancista André Gide ao poeta Apollinaire, sobre cujos joelhos eu aprendi a ler as horas num relógio. Eu compartilhei da atmosfera de alegria e excitação criativa que envolvia essas pessoas. Olhando em retrospecto, sinto-me uma testemunha e digo como historiador que aquele foi um dos grandes períodos criativos de nossa cultura. Então veio a I Guerra Mundial, que estilhaçou de maneira brutal a idéia que todos fazíamos do que fosse a civilização. Quando entrei na adolescência, depois de atravessar quatro anos de conflitos, tinha desenvolvido um quadro de depressão profunda que me levou a tentar o suicídio. Esse fato, aliado à dizimação dos quadros de professores universitários da França e da Inglaterra, foi a causa de minha mudança para os Estados Unidos, onde completei os estudos. Minha sensação de viver num mundo em declínio não é recente, portanto. Nos anos 50, cheguei a ter a impressão de que nos encaminhávamos para uma reviravolta positiva, mas foi um engano de minha parte. Esse intervalo não durou quase nada. A trajetória descendente se acentuou no fim dos anos 60.

Veja – Esse período de decadência descrito pelo senhor coincide com a expansão da influência da cultura americana pelo globo. Como cidadão de duas culturas, a francesa e a americana, o senhor deplora o que se convencionou chamar de americanização da cultura?
Barzun – Acho tolice culpar os Estados Unidos. Diria, antes, que o país está na vanguarda de seu tempo. Se esse tempo é de decadência, os efeitos se sentem primeiro aqui. Não há nada que obrigue países de sólida tradição cultural, como a França ou a Inglaterra, a imitar modas criadas pelos americanos. Mas eles o fazem, o que mostra que certas correntes de comportamento são inerentes à nossa época. Onde está escrito, por exemplo, que é imperativo "democratizar" a educação ao estilo dos Estados Unidos? No sentido que a palavra assumiu, ela não significa tornar a educação acessível a todos, mas simplesmente baixar sua qualidade, de modo a tornar possível que todo mundo deslize pelos anos de escola sem esforço. Vejo por isso com muito ceticismo e ironia certos discursos feitos na França, por exemplo, que falam em proteger a língua e a cultura nacionais. O que as últimas décadas fizeram à língua francesa realmente me deixa um pouco irritado. Palavras inglesas são adotadas de maneira indiscriminada, às vezes mesmo na presença de equivalentes perfeitamente utilizáveis. Essa adoção ignorante, sem nenhuma forma de filtragem e adaptação, é uma força destrutiva da cultura. Só que agora me parece um pouco tarde para reclamar.

Veja – A América Latina praticamente não é citada em seu livro. Não há contribuições do subcontinente à cultura ocidental?
Barzun – As sociedades latino-americanas são extensões da civilização européia. Politicamente, não contribuíram com nenhuma idéia original para o Ocidente. No campo das artes, é possível destacar nomes e movimentos importantes – mas não a ponto de ter mudado os rumos da cultura. O argentino Jorge Luis Borges, por exemplo, é um escritor que admiro imensamente. Mas não o cito de maneira específica no livro, porque se trata de uma estrela em uma vasta constelação. Em outras palavras, ele pertence ao universo da arte modernista tardia que discuto no livro. Citei outros nomes, de igual peso, em vez do dele.

Veja – Seu livro traz várias pequenas biografias de personagens da cultura ocidental. Algumas escolhas são óbvias, como as de Martinho Lutero e René Descartes. Outras podem ser consideradas excêntricas, como a da escritora de romances policiais Dorothy Sayers. Quais critérios o guiaram na escolha de nomes?
Barzun – Ao mencionar Dorothy Sayers, Walter Bagehot ou James Agate, para ficar apenas em alguns ingleses, não estou apenas dando espaço a preferências pessoais. Estou tentando indicar nomes cuja influência ainda não foi devidamente reconhecida. Bagehot, por exemplo, foi um dos pensadores mais originais do século XIX. Dirigiu a revista inglesa The Economist por dezessete anos e deixou doze volumes de comentários extremamente lúcidos sobre a política e a economia de seu tempo. Agate ajudou a formar o gosto artístico de seus compatriotas no começo do século XX – além de ter sido autor de um diário que ocupa nove tomos, cobre um período de quinze anos e é um retrato sem igual da Inglaterra do seu tempo. Sayers, finalmente, é uma das grandes teóricas dessa importante forma de ficção popular, o romance policial. É também uma pensadora original no campo da religião. As pessoas deveriam conhecer esses nomes, e algo sobre o que disseram.

Veja – Em contraste, o senhor dedica muito pouco espaço a figuras consideradas fundamentais: Darwin, Marx e Freud. Por quê?
Barzun – Creio que, ao fazer isso, estou em sintonia com o estado atual da reputação dessas pessoas. Em todo o mundo, o pensamento marxista está em refluxo. Marx sofreu uma perda enorme de influência como teórico político. Alguns de seus textos filosóficos ainda são valorizados – mas sobretudo aqueles escritos na juventude, antes de O Capital. A retração na influência de Freud também é visível. Seu legado está sob ataque e nem de longe se fala tanto nele quanto na primeira metade do século XX. O caso de Darwin talvez seja o mais polêmico. Creio, no entanto, que a importância dada a ele está em descompasso com suas conquistas reais. A idéia da evolução das espécies já circulava 100 anos antes dele. O que Darwin fez foi propor um mecanismo para a evolução, a célebre idéia da seleção natural. Ora, se esse mecanismo realmente funciona como ele descreveu, é algo que os biólogos discutem acaloradamente hoje em dia. Anos atrás, um biólogo do Instituto Pasteur, na França, me disse que ninguém mais lá dentro aceitava ser chamado de darwinista. Não quero dizer com isso que devemos retornar ao criacionismo, à idéia de que as espécies foram criadas por Deus da forma como são hoje. Quero dizer apenas que o desenvolvimento da ciência tem postona como ele descreveu, é algo que os biólogos discutem acaloradamente hoje em dia. Anos atrás, um biólogo do Instituto Pasteur, na França, me disse que ninguém mais lá dentro aceitava ser chamado de darwinista. Não quero dizer com isso que devemos retornar ao criacionismo, à idéia de que as espécies foram criadas por Deus da forma como são hoje. Quero dizer apenas que o desenvolvimento da ciência tem posto em questão vários postulados da cartilha darwinista, algo que passa despercebido por quem não está enfronhado nas discussões.

Veja – Se tivesse de escolher dois nomes representativos dos períodos de auge e declínio da civilização ocidental, quais seriam eles?
Barzun – No que se refere ao auge, eu hesitaria entre Shakespeare e Montaigne. Poderíamos dizer que ambos inventaram o indivíduo, por oposição ao tipo social. Hoje em dia, não somos apenas cidadãos ou trabalhadores, mas também indivíduos aos nossos próprios olhos, graças a esses dois escritores. Um deles é poeta e dramaturgo inglês, o outro prosador analítico francês: ambos inventaram modos de expressar a personalidade. O nascimento do indivíduo e do individualismo foi fundamental, porque encorajou a invenção nas artes, fomentou a diversidade e a diferença. Além disso, foi germe para que, na política, surgissem idéias como a de direitos humanos. No outro extremo, o do declínio, eu indicaria Pablo Picasso e Marcel Duchamp – cuja família, por sinal, era muito próxima da minha. A despeito da grandeza de ambos, eles formam um incomparável par de destruidores. Em Duchamp, sobretudo, é possível ver a imaginação trabalhando deliberadamente em favor da quebra, da paródia inclemente. Duchamp é um nome paradigmático. Está na origem da escola que impera atualmente, quando não existe diferença entre uma obra de arte e o produto que você encontra no armazém da esquina.

Veja – O que o futuro reserva aos clássicos?
Barzun – Os clássicos parecem estar afundando rapidamente no esquecimento. Mas isso já aconteceu antes. A Renascença trouxe de volta obras da Antiguidade que estavam completamente perdidas. Não há motivo para um pessimismo terminal. É preciso persistir no ensino dos clássicos. Não é fácil, já que uma quantidade básica de informação histórica se faz necessária, para que as obras não sejam vistas fora da perspectiva adequada e completamente distorcidas. Mas os benefícios são óbvios. Ler os clássicos é um maravilhoso exercício de raciocínio e imaginação.

Entrevista: Paul Johnson


A revista VEJA, em 24 de junho de 2006, publicou uma entrevista com o historiador inglês Paul Johnson. Reproduzo-a abaixo:

O motor do mundo

O historiador inglês defende que a criatividade é hoje a arma mais poderosa para o progresso das nações

Gabriela Carelli

O inglês Paul Johnson é um dos mais produtivos historiadores da atualidade. Em seus mais de quarenta livros publicados, já se debruçou sobre grandes temas como a história das religiões e do
século XX. Observador arguto da cena internacional, provoca polêmica nos artigos que escreve para as revistas Forbes e The Spectator pelo entusiasmo com que fustiga as esquerdas com sua verve franca e elegante. Aos 77 anos, Johnson acaba de lançar mais um livro, Os Criadores, um mergulho na vida de dezessete personalidades criativas da história, de Shakespeare a Walt Disney. O objetivo da obra, a segunda de uma trilogia iniciada com Os Intelectuais, em 1988, e que terminará com a publicação em breve de Os Heróis, é tentar entender o que ele considera a característica mais importante do homem, a criatividade. "Só a criatividade pode garantir o progresso. O problema é que o homem tem uma propensão negativa a encontrar razões científicas ou morais para frear a criatividade, seja na economia, na política ou nas artes", diz Johnson nesta entrevista a VEJA.

Veja – O senhor escreveu que o desenvolvimento social e tecnológico humano não avançou tanto quanto poderia por causa da eterna batalha entre duas forças antagônicas do homem: sua criatividade e sua capacidade de crítica e destruição. Como assim?
Johnson – Os seres humanos são naturalmente criativos. Amam criar.
Também são apaixonados pela destruição e pela crítica. Acredito que todas as artes – sendo que considero formas de arte a política, o desenvolvimento tecnológico, econômico e social, assim como a pintura e a literatura – necessitam dessas duas forças antagônicas. É a tese, a antítese e a síntese. Mas é vital que a criatividade, a tese, supere seu adversário e vença, pois só ela pode garantir o progresso. Não tenho dúvida de que, se houvesse apenas a criatividade, a humanidade teria avançado muito mais rapidamente.

Veja – O senhor poderia citar exemplos de forças destrutivas que impediram um avanço maior da nossa civilização?
Johnson – O exemplo mais primário disso é o marxismo. Marx compreendeu mal o capitalismo, foi desonesto com as evidências e sua contribuição para o mundo foi totalmente negativa. Graças a ele e a outros pensadores, por mais de um século muitos países perderam a chance de crescer economicamente. Seus povos deixaram de ter acesso à informação e à liberdade, fundamentais para o processo criativo, milhares de pessoas foram mortas injustamente e muito dinheiro foi jogado fora em vez de ser usado para a melhoria da qualidade de vida. Não há absolutamente nada a dizer em favor do marxismo.

Veja – O senhor afirma que o homem é propenso a encontrar razões científicas ou morais para frear a criatividade. O que o leva a agir dessa forma?
Johnson – O medo. Esse é, com certeza, o maior estimulador do atraso. É o medo, por exemplo, que impede muitos países de usar energia nuclear de forma consciente em substituição a outras fontes de energia. Por causa de pretensos defensores da humanidade, impediu-se a construção de usinas nucleares nos Estados Unidos e na Inglaterra. Se bem usada, essa energia poderia minimizar os impactos energéticos do crescimento econômico da China e da Índia, que provocaram escassez de petróleo.

Veja – Os chineses e os indianos são, hoje, mais criativos do que os americanos?
Johnson – Até agora, os chineses e os indianos meramente irritaram osamericanos. Eles conseguem produzir novas idéias? Até o momento, nada provou que eles sejam capazes de inovar. Apenas avançaram em espaços já existentes. A China fez isso com sua indústria pesada, formada por fábricas ultrapassadas que produzem produtos baratos para exportação
e garantem retorno rápido. A Índia, por sua vez, arranhou os Estados Unidos com um bem-sucedido comércio intercontinental de comunicação via call centers. Se a China e a Índia não produzirem novas idéias além dessas, vão estagnar, como o Japão.

Veja – Qual dos dois países tem mais chance de ser bem-sucedido em termos de crescimento?
Johnson – A Índia, porque é um país onde existe liberdade. Novas idéias somente emergem onde as pessoas são livres para pensar. Além disso, a Índia, apesar de ser uma sociedade de castas, tem uma elite fluente em inglês, o que permitiu ao país pular da era industrial para uma era de comunicação avançada. Bangalore, a capital indiana da alta tecnologia, é uma cidade totalmente imersa no século XXI. A Índia parece bastante atrasada devido a suas tradições, muito preciosas, por sinal, mas está criando as bases para um futuro formidável. O clima de liberdade privilegia o país.

Veja – Se a liberdade privilegia a Índia, como se explica o crescimento acelerado da China?
Johnson – A China conseguiu se livrar do legado terrível do marxismo primitivo de Mao Tsé-tung, mas não será um competidor à altura da Índia enquanto não desmantelar por completo seu sistema comunista. O país ainda depende do trabalho escravo, assim como de camponeses mal remunerados recém-chegados às cidades. Não está investindo o suficiente em alta tecnologia, a não ser a militar, erro já cometido pelos soviéticos. A China tem de substituir sua elite comunista por uma sociedade inovadora, com o seu próprio dinamismo de idéias, ou
entrará em colapso. Se funcionar, será a grande lição da era moderna.

Veja – Enquanto a Ásia cresce, a América Latina continua presa aos problemas econômicos e sociais de sempre. Qual a explicação?
Johnson – O problema da América Latina está na sua origem histórica. A forma como foi colonizada, destrutiva e negativa desde o princípio, repercute até hoje na desorganização política, econômica e social. Não há estabilidade, o que acaba diminuindo a liberdade. O Brasil, por exemplo, desde o descobrimento nunca teve uma elite criativa e pragmática comparável à geração de George Washington e Thomas Jefferson nos Estados Unidos, gente capaz de organizar o país e direcioná-lo. Uma solução para melhorar o que está estragado é investir na educação. A educação permite a liberdade de idéias e o progresso. Bons exemplos são Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura.

Veja – Como o senhor definiria um homem criativo?
Johnson – É impossível definir criatividade, assim como não se define genialidade. O estudo dos grandes criadores revela dois fatos. O primeiro é que ninguém cria no vácuo. Todas as civilizações evoluem de sociedades anteriores. Também ninguém vira um grande criador por
sorte. Todo ato criativo, mesmo quando ele surge num lampejo, é fruto de muito trabalho, estudo e conhecimento.

Veja – Quem o senhor apontaria como uma pessoa de extrema criatividade?
Johnson – William Shakespeare, sem dúvida nenhuma, é a pessoa mais criativa da história. Esse dramaturgo inglês do século XVI alcançou o entendimento da personalidade humana em todas as suas manifestações, da forma como o ser humano interage em todas as situações possíveis.
Era dono de uma imaginação de altíssimo nível, bem como de uma habilidade com as palavras até hoje nunca igualada.

Veja – Ao falar sobre o próximo livro de sua trilogia, Os Heróis, o senhor disse que o Ocidente precisa urgentemente de pessoas com esse perfil. Por quê?
Johnson – Os heróis inspiram, motivam e, no mínimo, legitimam uma guerra que está sendo travada. Eles nos ajudam a distinguir o certo do errado e a compreender os méritos morais da nossa causa. Não existe ninguém hoje no Ocidente com esse perfil. Já o Oriente Médio tem seus heróis. Osama bin Laden, por exemplo. Por mais monstruoso que possa ser, ele encarna a figura do herói. É líder de milhares de muçulmanos, escapou do mais poderoso Exército do planeta e inspira centenas de seguidores. Faz parte de um grupo que convence jovens a se explodir por uma causa. Esses jovens, por sua vez, também se transformam em heróis aos olhos do mundo. São pessoas que tiram a própria vida para lutar contra os tanques israelenses. Isso faz com que muitos observadores da guerra ao terror se sensibilizem com a causa islâmica.

Veja – Quem o senhor citaria como herói do Ocidente?
Johnson – O último herói americano foi Ronald Reagan. Na Inglaterra, Margaret Thatcher. Na Igreja Católica, João Paulo II. Todos foram grandes líderes, com características de heróis. Provavelmente estarão em meu próximo livro.

Veja – Ronald Reagan?
Johnson – Sim. Muita bobagem foi escrita sobre ele. Reagan era um homem de pensamentos claros e determinado em seus objetivos. Tinha poucos méritos acadêmicos, mas era um orador de primeiríssima linha. Enfatizou a necessidade da democracia e dos direitos humanos. A história mostra que os melhores líderes políticos são exatamente assim. Têm poucas idéias, mas elas são muito bem executadas. Assim foram Winston Churchill, Charles de Gaulle e Margaret Thatcher.

Veja – O presidente Bush tem chance de ser visto como um herói?
Johnson – Bush é um bom administrador, com um forte poder de decisão. Mas tem uma imagem pública excepcionalmente ruim.

Veja – O senhor defendeu a invasão do Iraque em 2003. Os resultados desastrosos dessa guerra o fizeram mudar de opinião?
Johnson – Não encaro os resultados como desastrosos. Ao destruírem os regimes perversos do Afeganistão e do Iraque, prenderem seus líderes ou transformá-los em fugitivos, os Estados Unidos estão mandando uma mensagem importante para outros ditadores violentos e perigosos, como o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que insiste no enriquecimento de urânio e, além de tudo, propaga mentiras anti-semitas.

Veja – Por que o presidente iraniano parece não temer os Estados Unidos?
Johnson – O presidente iraniano tem como modelo Adolf Hitler. O que aconteceu com Hitler? O perigo do avanço em programas nucleares e na produção de armas de destruição em massa em países do Oriente Médio existe e precisa ser combatido pelos americanos. Só os Estados Unidos
podem conter o Irã, talvez com alguma ajuda da Inglaterra, caso Tony Blair permaneça como primeiro-ministro. O resto da Europa é totalmente inútil e dispensável.

Veja – A política externa dos Estados Unidos provocou o crescimento do antiamericanismo, principalmente na Europa. Como europeu, o que o senhor acha disso?
Johnson – Justamente por ser europeu, posso afirmar que o antiamericanismo na Europa meramente reflete a frustração e a fraqueza européias. A inveja da América tornou-se um aspecto importante da política externa européia, principalmente na França e na Alemanha. Os franceses acreditam que são uma nação culturalmente superior e que os Estados Unidos querem se impor na Europa. Acreditam que Bush e os americanos são ignorantes. A história mostra que não é assim. Os americanos são bons políticos e geopolíticos. A Constituição americana tem 200 anos. Nesse tempo, a França teve mais de uma dezena de Constituições, passou por monarquias, impérios e repúblicas. Não há dúvidas de que existe inveja de um lado do Atlântico, mas também existe o perigo de arrogância do outro. Essa inveja também tem fundamento na falência européia. A Europa vem apresentando um péssimo desempenho desde os anos 60 por causa do
crescimento da burocracia, com altas taxas de desemprego e estagnação econômica. Os Estados Unidos, ao contrário, cresceram nos últimos 25 anos e continuam a crescer.

Veja – Não é natural que a opinião pública mundial se escandalize ao saber de abusos cometidos por militares em prisões no Iraque ou das condições extremas em que vivem os detidos na base de Guantánamo?
Johnson – Os Estados Unidos encabeçam uma guerra internacional contra a violência. Acabarão por vencê-la. A prisão de Guantánamo foi criada com base numa interpretação sem precedentes da lei militar por causa de uma ameaça sem precedentes. Apesar das críticas, o sistema de
justiça de Guantánamo tem sido uma forma de dissuadir jovens muçulmanos que estavam decididos a tomar partido nessa guerra. Esses jovens não temem nem o martírio nem a morte, mas eles temem ficar trancados nessa prisão.

Veja – Em um artigo, o senhor escreveu que o homem tem uma capacidade enorme de arrumar problemas que inundam o mundo de ansiedade e que a atual preocupação com o meio ambiente é um exemplo disso. O senhor não teme o fim do mundo?
Johnson – Se eu temesse o fim do mundo, estaria me contrariando. Seria uma prova de que não acredito na força criativa. O Homo sapiens tem menos de 1 milhão de anos. A Revolução Industrial ocorreu há 250 anos. A bomba atômica existe há meio século. Os avanços têm acontecido de forma muito rápida, numa velocidade inimaginável. Mais de 100 milhões de pessoas morreram no século passado vítimas de regimes totalitários, mas não foi por isso que as populações deixaram de se expandir. Acreditar que o homem é incapaz de superar obstáculos, sejam eles naturais ou não, é esquecer todo esse progresso. A história prova o contrário: que temos habilidade e criatividade para vencer os desafios que nos são impostos. Temos de
aproveitar as riquezas do nosso planeta e contar com a ajuda divina.

Veja – O senhor parece otimista com a realidade. Por que recorrer à ajuda divina?
Johnson – Ela é sempre necessária. Hoje, mais do que nunca.