quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Introdução ao De Incarnatione, de Santo Atanásio


[ou Sobre Livros Antigos]


Por C. S. Lewis

Há uma ideia estranha por aí, segundo a qual os livros antigos devem ser lidos apenas por profissionais e o leitor amador deve contentar-se com os livros modernos. Assim, como professor de Literatura Inglesa, tenho constatado que a última coisa que o estudante médio pensa em fazer é pegar uma tradução de Platão na estante da biblioteca e ler O Banquete. Ao contrário, tende a ler algum livro moderno dez vezes mais enfadonho, apresentando-lhe tudo sobre os “ismos” e influências de Platão e apenas uma vez a cada vinte páginas contando-lhe o que Platão de fato disse. Trata-se de um erro compreensível, pois surge da humildade. O estudante está meio temeroso de encontrar-se frente a frente com um grande filósofo. Sente-se incapaz e acha que não o compreenderá. Mas se tão-somente soubesse que o grande homem, justamente por sua grandeza, é muito mais inteligível que seu comentador moderno... O estudante mais simples seria capaz de compreender, se não tudo, ao menos a maior parte do que Platão disse. Mas dificilmente se é capaz de compreender alguns dos livros modernos sobre platonismo. Sempre foi um dos meus principais esforços como professor convencer o jovem não só de que o conhecimento de primeira mão vale mais a pena que o de segunda, mas que é geralmente muito mais fácil e mais prazeroso de adquirir.

Essa preferência equivocada pelos livros modernos, e essa timidez diante dos antigos, em nenhuma área é mais gritante que na teologia. Sempre que se encontra um pequeno grupo de estudos de cristãos leigos, pode-se ter quase certeza de que não estão estudando São Lucas, São Paulo, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Hooker ou Butler, mas Berdyaev, Maritain, Niebuhr, Dorothy Sayers ou até a mim mesmo.

Ora, parece haver uma contradição. Naturalmente, uma vez que sou escritor, não desejo que o leitor comum deixe de ler os livros modernos. Mas, se tem de ler apenas os novos ou apenas os velhos, eu recomendaria que lesse os velhos. E lhes daria este conselho exatamente porque se trata de um amador e, portanto, está muito menos protegido que o especialista contra os perigos de uma dieta exclusivamente contemporânea. Um livro novo ainda está à prova, e o amador não está em condições de julgá-lo. A obra terá de ser posta à prova frente ao grande corpo do pensamento cristão ao longo das eras, e todas as suas implicações ocultas (muitas vezes insuspeitadas pelo autor) têm de ser trazidas à luz. Geralmente não pode ser plenamente compreendida sem o conhecimento de um bom número de outros livros modernos. Se chegar às 11h a uma conversa que começou às 8h, você não verá o peso real do que é dito. Dados que lhe parecerão bastante comuns despertarão risos ou irritação e você não saberá por que – a razão, claro, é que os estágios anteriores da conversa lhes deram um significado especial. Do mesmo modo, sentenças num livro moderno que parecem ordinárias podem dirigir-se a algum outro livro; dessa forma, pode-se ser levado a aceitar o que teria sido rejeitado com indignação se se soubesse seu real significado. A única segurança é ter um padrão de cristianismo simples, central (o mero cristianismo, como Baxter o chamou), que coloque as controvérsias do momento na perspectiva apropriada. Esse padrão só pode ser adquirido nos livros antigos. É uma boa regra, depois de ler um livro novo, nunca se permitir um outro livro novo até que tenha lido um velho entre eles. Se isso parece exagerado para você, deveria ler pelo menos um livro velho a cada três novos.


Todas as eras têm sua própria perspectiva. São especialmente boas para enxergar certas verdades e especialmente suscetíveis a cometer certos equívocos. Todos nós, portanto, precisamos dos livros que corrigirão os erros característicos de nossa própria época. E isso quer dizer os livros antigos. Todos os escritores contemporâneos compartilham, em alguma medida, a perspectiva contemporânea – mesmo aqueles, como eu mesmo, que parecem opor-se a elas. Nada me choca mais, quando leio as controvérsias de eras passadas, do que o fato de que ambos os lados geralmente pressupõem, sem questionar, uma porção de coisas que hoje negaríamos por completo. Eles pensavam estar de lados completamente opostos, mas na verdade estavam o tempo todo secretamente unidos – unidos um ao outro e contra as eras anteriores e posteriores – por um grande volume de pressupostos. Podemos ter certeza de que a cegueira característica do século XX – a cegueira da qual a posteridade nos perguntará “Mas como eles podiam ter pensado isso?” – se encontra onde nunca desconfiamos, e diz respeito a algo em que há claro acordo entre Hitler e o presidente Roosevelt ou entre o Sr. H. G. Wells e Karl Barth. Nenhum de nós pode escapar completamente desta cegueira, mas podemos aumentá-la ou baixar nossa guarda diante dela se lermos apenas livros modernos.

Naquilo em que estão certos, tais livros nos dão verdades que já sabíamos parcialmente. No que estão errados, eles agravam perigosamente o erro de que já padecemos. O único paliativo é manter soprando em nossas mentes a limpa brisa dos séculos, e isso só pode ser feito pela leitura dos livros velhos. Claro, não há nada de mágico no passado. As pessoas não eram mais espertas do que são hoje; elas cometiam tantos equívocos quanto nós. Mas não os mesmos equívocos. Elas não se gloriam nos erros que estamos cometendo; e seus próprios erros, sendo agora visíveis e palpáveis, não nos ameaçarão. Duas cabeças são melhores do que uma; não porque uma delas é infalível, mas porque é improvável que ambas errem na mesma direção. Aliás, os livros do futuro seriam tão bons corretivos quanto os livros do passado, mas infelizmente não podemos ter acesso a eles.

No meu caso, fui conduzido à leitura dos clássicos cristãos quase que por acidente, em consequência de meus estudos de língua inglesa. Alguns, como Hooker, Herbert, Traherne, Taylor e Bunyan, eu li porque são grandes escritores de língua inglesa; outros, como Boécio, Santo Agostinho, Tomás de Aquino e Dante, porque eram “influências”. George Macdonald eu encontrei por conta própria, aos 16 anos, e nunca oscilei em meu devotamento, embora tenha tentado por bastante tempo ignorar seu cristianismo. São, você perceberá, um saco de gatos, representantes de muitas igrejas, ambientes e épocas. E isso me dá outra razão para lê-los. As divisões da cristandade são inegáveis e são expressas por alguns desses autores da maneira mais virulenta. Mas se um homem é tentado a pensar – como pode ter sido tentado alguém que lê apenas os contemporâneos – que o “cristianismo” é uma palavra de tantos significados que acaba por não significar nada, pode-se aprender, para além de toda dúvida, ao afastar-se de seu próprio século, que este não é o caso. Avaliado em contraste com as eras passadas, o “cristianismo puro e simples” não se torna nenhuma insípida transparência interdenominacional, mas algo positivo, autoconsistente e inesgotável. E sei disso por experiência própria. No tempo em que ainda repudiava o cristianismo, aprendi a reconhecer, como a algum aroma familiar, que me deparava com algo praticamente invariável ora no puritano Bunyan, ora no anglicano Hooker, ora no tomista Dante. Estava lá em Francisco de Sales; estava lá (grave e rústico) em Spenser e Walton; estava lá (austero mas corajoso) em Pascal e Johnson; estava lá, mais uma vez, com um sabor suave, assustador e paradisíaco em Vaughan, Boehme e Traherne. Na sobriedade urbana do século XVIII não se estava a salvo – [William] Law e Butler eram dois leões à solta. O suposto “paganismo” dos elisabetanos não o excluiu; estava à espreita onde um homem pudesse imaginar-se seguro, bem no centro do The Faerie Queene e na Arcadia. Era, é claro, variado; mas, ainda assim, apesar de tudo, tão inconfundivelmente o mesmo; reconhecível, não para ser evitado, o odor que para nós é de morte até que permitamos que se torne vida:
an air that kills
From yon far country blows.

[Um ar que mata
sopra daquela terra distante]
Todos nos afligimos, e também nos envergonhamos, das divisões da cristandade. Mas aqueles que sempre viveram no aprisco cristão podem ser muito facilmente desanimados por elas. Elas são ruins, mas essas pessoas não sabem como elas são desde fora. Vistas exteriormente, o que fica intacto, a despeito de todas as divisões, ainda se mostra (como realmente é) uma unidade incrivelmente formidável. Eu sei porque vi; e, bem, nossos inimigos sabem disso. Qualquer um de nós pode encontrar essa unidade afastando-se de sua própria época. Não é suficiente, mas é mais do que se tinha pensado até então. Uma vez que se está imerso nela, se você se arriscar falar, terá uma experiência divertida. Pensarão que você é um papista quando na verdade está reproduzindo as palavras de Bunyan; um panteísta, quando cita Tomás de Aquino; e assim por diante. Pois agora você chegou ao viaduto elevado que cruza as eras e que parece tão alto dos vales, tão baixo das montanhas, tão estreitos em comparação com os pântanos e tão largos em comparação com as trilhas de ovelhas.

O presente livro é meio experimental. A tradução pretende dirigir-se ao mundo em geral, não apenas aos estudantes de teologia. Se for bem sucedida, outras traduções de outros grandes livros cristãos presumivelmente se seguirão. Em certo sentido, é claro, não é a primeira neste campo. Traduções da Theologia Germanica, Imitação, A Escala da Perfeição e as Revelações de Júlia de Norwich já estão no mercado, e são preciosas, embora em parte não muito eruditas. Mas perceber-se-á que esses são livros de devoção e não de doutrina. Agora, o leigo ou amador precisa ser instruído tanto quanto precisa ser exortado. Em nossa época, sua necessidade de conhecimento é particularmente urgente. Tampouco eu admitiria qualquer divisão rígida entre os dois tipos de livro. De minha parte, tendo a achar os livros de doutrina muito mais úteis na devoção do que os livros devocionais e, aliás, suspeito que muitos outros tenham a mesma experiência. Acredito que muitos que acham que “nada acontece” quando se sentam ou se ajoelham com um livro devocional, achariam que o coração canta espontaneamente enquanto estão trilhando o caminho árduo da teologia com um cachimbo na boca e um lápis na mão.

Trata-se de uma excelente tradução de um grande livro. Santo Atanásio carecia de estima popular por causa de certa sentença do “Credo Atanasiano”. Não vou insistir no fato de que aquela obra não é exatamente um credo e não o era para Atanásio, pois acho que é um belo escrito. As palavras “Quem quer que não a conservar íntegra e inviolada, sem dúvida perecerá eternamente” são a ofensa. Geralmente são mal compreendidas. A palavra operante aqui é “conservar”; não adquirir, nem mesmo crer, mas conservar. O autor, na verdade, não está falando de descrentes, mas de desertores; não daqueles que nunca ouviram de Cristo, nem mesmo daqueles que não o compreenderam e recusaram-se a aceitá-lo, mas daqueles que, tendo-o compreendido e crido nele, mais tarde se permitem, por influência da preguiça ou da moda ou de qualquer outra coisa, convidar a confusão a se desenvolver num dos modos de pensamento subcristão. São uma advertência contra a curiosa presunção moderna de que todas as mudanças de crença, embora provocadas, são necessariamente isentas de culpa. Mas esta não é minha preocupação imediata. Mencionei o “credo de Santo Atanásio”, como geralmente é chamado, apenas para afastar do caminho do leitor um fantasma e situar o verdadeiro Atanásio em seu lugar. Seu epitáfio é “Athanasius contra mundum”. Atanásio contra o mundo. Orgulhamo-nos de que nosso país ergueu-se mais de uma vez contra o mundo. Atanásio fez o mesmo. Ergueu-se pela doutrina trinitária, “íntegra e inviolada”, quando parecia que todo o mundo civilizado estava regredindo do Cristianismo para a religião de Ário – para uma daquelas religiões sintéticas “sensíveis” que são tão intensamente recomendadas hoje e que, tanto naquela época quanto hoje, incluía entre seus devotos muitos clérigos bastante cultos. A sua glória é não ter mudado com o tempo; e sua recompensa é que hoje ainda permanece quando aquele tempo, como todos os tempos, já passou.


Quando abri pela primeira vez seu De incarnatione, logo descobri com uma simples amostra que estava lendo uma obra-prima. Sabia bem pouco grego cristão, com exceção daquele do Novo Testamento, e eu tinha dificuldades previsíveis. Para minha surpresa, constatei que era quase tão fácil quanto Xenofonte; e somente a mente de um mestre poderia, no século IV, ter escrito tão profundamente sobre tal assunto com simplicidade clássica. A cada página que lia, essa impressão se confirmava. Sua abordagem dos milagres é muito necessária hoje, pois é a resposta final àqueles que objetam-lhes que são “arbitrárias e despropositadas violações das leis da natureza”. Aqui eles são mostrados como o recontar, com maiúsculas, da mesma mensagem que a Natureza escreve com sua obscura letra cursiva; as mesmas ações que se esperariam Daquele que era tão cheio de vida que, quando desejou morrer, teve de “tomar emprestada a morte de outros”. O livro inteiro, de fato, é um retrato da Árvore da Vida – um livro dourado e vigoroso, cheio de esperança e segurança; não podemos, admito, nos apropriar totalmente desta confiança hoje. Não podemos apontar para a elevada virtude da vida cristã e a alegre, quase zombeteira, coragem do martírio cristão, como uma prova de nossas doutrinas com exatamente a mesma segurança que Atanásio as tomava como consequência natural. Mas quem quer que seja o culpado por isso, este não é Atanásio.

O tradutor conhece o grego cristão muito mais que eu, de maneira que seria inadequado a mim elogiar a sua versão. Mas parece estar na tradição correta da tradução inglesa. Não acho que o leitor encontrará aqui nada daquele aspecto empoeirado que é tão comum nas versões modernas de línguas antigas. Que está vertido em língua inglesa o leitor há de notar; aqueles que compararem a versão com o original serão capazes de estimar quanto apuro e talento está pressuposto em cada escolha, por exemplo, como “estes pedantes” logo na primeira página.