domingo, 21 de setembro de 2014

Romancistas católicos e seus leitores


Sempre que penso no romancista católico e em seus problemas, lembro-me da lenda de São Francisco e do lobo de Gubbio. Diz a lenda que São Francisco converteu um lobo. Não sei se de fato ele converteu o lobo ou se o caráter do lobo apenas melhorou consideravelmente depois do encontro com São Francisco. Seja como for, ele amansou bastante. Mas a moral dessa história, ao menos para mim, é que, a despeito da melhora em seu caráter, o lobo continuou um lobo. Assim também acontece – ou deveria acontecer – com o católico ou, digamos, com o romancista totalmente cristianizado. Não importa o quanto seu caráter foi aperfeiçoado pela Igreja; se é um romancista, tem de permanecer fiel à sua natureza. A Igreja deve tornar o romancista um romancista melhor.

Eu digo deveria porque, infelizmente, isso nem sempre acontece. Muitas vezes, o romancista católico fica tão extasiado em seu estado cristão que esquece sua natureza de escritor de ficção. Isso é correto, é bom, se parar de escrever ficção; mas na maioria das vezes ele não deixa de fazê-lo, e oferece de si o mesmo tipo de espetáculo que o lobo teria oferecido se, depois de encontrar-se com São Francisco, tivesse começado a andar com as patas traseiras.

Um romancista é, acima de tudo, uma pessoa a quem foi dado um talento para fazer uma coisa específica. Todo romancista sério está tentando retratar a realidade tal como ela se manifesta em nossa vida concreta, sensível, e não pode fazer isso a menos que tenha recebido o instrumento inicial, o talento, e a menos que respeite o talento como tal. É bom lembrar o óbvio, mas geralmente ignorado: todo escritor tem de se haver com as possibilidades do talento recebido. Possibilidade e limitação querem dizer mais ou menos a mesma coisa. É tarefa de todo escritor levar seu talento ao limite mais extremo, mas isso quer dizer o limite mais extremo do tipo de talento que tem.

Neste ponto, talvez seja melhor dizer de que tipo de escritor estou falando. Refiro-me ao escritor de ficção que considera a ficção uma arte e que se conforma a suas exigências e inconveniências. Refiro-me ao escritor de ficção que não escreve nem para todos, nem para uma minoria privilegiada, mas para o bem daquilo que está escrevendo. Por menor que seja seu dom, ele não está disposto a destruí-lo tentando usá-lo fora de seus próprios limites. Esse tipo de escritor de ficção sempre está entusiasmado na busca do real, não importa o que ele assim chame ou que instrumento ele empregue para atingi-lo.

Santo Tomás de Aquino diz que a arte não requer retidão do apetite, que está inteiramente relacionada com o bem de que é feita. Ele afirma que uma obra de arte é boa em si mesma, e esta é uma verdade de que em grande medida o mundo moderno se esqueceu. Não nos contentamos em permanecer dentro de nossas limitações e fazer aquilo que é simplesmente um bem em si e por si mesmo. Queremos fazer algo que terá valor utilitário. Ora, o que é bom em si mesmo glorifica a Deus porque reflete a sua glória. O artista tem suas mãos cheias e cumpre seu papel quando serve a sua arte. Ele pode seguramente deixar a evangelização para os evangelistas. Ele deve, em primeiro lugar, estar ciente de suas limitações como artista – pois a arte transcende suas limitações somente por estar contida nelas.

Para muitos leitores, escrever ficção não é uma ocupação séria de direito próprio. Para eles, somente passa a ser séria quando afeta seu gosto pessoal, seu temperamento ou sua moral. Mas o escritor cuja vocação é a ficção vê sua obrigação diante da verdade do que pode acontecer na vida, e não perante o leitor – não diante do gosto do leitor, nem da felicidade do leitor, nem mesmo diante da moral do leitor. O romancista católico não tem de ser um santo; não tem sequer de ser católico; infelizmente, tem de ser um romancista. Isso não quer dizer que o escritor deve ter uma visão moral lassa, mas acho que, para compreender o que isso significa, temos de considerar por algum tempo o que é ficção – romance ou conto –, e o que daria a uma peça de ficção o direito de ter o adjetivo católico a ela aplicado.

O próprio termo “romance católico” é obviamente suspeito, e as pessoas que estão conscientes de suas complicações não o usam senão entre aspas. Se eu tivesse de dizer o que é um “romance católico”, somente diria que é aquele que representa a realidade adequadamente, como a vemos manifesta no mundo das coisas e das relações humanas. Somente nessas e por essas experiências sensíveis o escritor de ficção pode se aproximar de um conhecimento contemplativo dos mistérios que elas encarnam.

Preocupar-se com essas coisas quer dizer não apenas preocupar-se com o bem que há nelas, mas com o mal, e não apenas com o mal, mas também com aquele aspecto que não parece nem bom nem mau, que ainda não está cristianizado. A igreja que vemos, mesmo a Igreja universal, é um pequeno segmento do todo da criação. Se muitos são chamados mas poucos escolhidos, talvez ainda menos escolham, ainda que inconscientemente, ser cristãos – embora toda a realidade seja o potencial reino de Cristo, e a face da terra esteja esperando ser recriada por seu espírito. Isso tudo quer dizer que aquilo que grosseiramente chamamos de romance católico não é necessariamente acerca de um mundo cristianizado ou catolicizado, mas simplesmente que é aquele em que a verdade, tal como conhecida pelos cristãos, tem sido usada como uma luz pela qual se vê o mundo. Este pode ou não ser um mundo católico, e pode ou não ter sido visto por um católico.

A vida católica como vista por um católico nem sempre gera uma leitura agradável para católicos por este motivo. Neste país temos, por exemplo, J. F. Powers, um exímio escritor que nasceu católico e escreve sobre católicos. Os católicos sobre os quais o Sr. Powers escreve são vistos por ele com uma terrível acuidade. São vulgares, ignorantes, gananciosos e espantosamente banais, e todas essas qualidades têm um inconfundível sabor social católico. O Sr. Powers não escreve sobre tais católicos porque quer envergonhar a Igreja; escreve sobre eles porque, pela graça de Deus, não é capaz de escrever sobre nenhum outro tipo. Um escritor escreve a respeito daquilo que é capaz de fazer que acreditem.

Todos os dias vemos pessoas que estão ocupadas em distorcer seus talentos a fim de elevar sua popularidade ou de ganhar um dinheiro sem o qual poderiam viver. Podemos, seguramente, dizer que isso, se feito conscientemente, é repreensível. Mas com mais frequência, creio, vemos pessoas distorcendo seus talentos em nome de Deus por razões que acham serem boas – reformar, ensinar ou conduzir o povo para a Igreja. E isso é menos fácil de dizer que é repreensível. Nenhum de nós pode julgar tais pessoas, mas devemos, por amor à verdade, julgar os produtos que criam. Devemos dizer se este ou aquele romance retrata fielmente o aspecto da realidade que pretende retratar. O romancista que deliberadamente abusa de seu talento por algum bom propósito pode não estar cometendo pecado, mas certamente está cometendo uma grave inconsistência, pois está tentando refletir a Deus com aquilo que corresponde a uma inverdade prática.

Romances miseravelmente escritos – não importa quão piedoso ou edificante seja o comportamento das personagens – não são bons em si mesmo e, portanto, não são de fato edificantes. Ora, uma afirmação como essa cria problemas. Um indivíduo pode ser bastante edificado por um romance lastimável porque não conhece nada melhor. Temos muitos exemplos neste mundo de coisas insignificantes que são usadas para bons propósitos. Deus pode fazer de qualquer coisa medíocre, bem como do próprio mal, um instrumento para o bem; mas considero que fazer isso é obra de Deus e não de um ser humano qualquer.


Um bom exemplo de romance chinfrim usado para um bom propósito é The Foundling, do Cardeal Spellman. Não cabe a ninguém julgar o Cardeal Spellman senão como romancista, e como tal ele é fraquinho. Você pode ter a satisfação de saber que, ao comprar um exemplar de The Foundling, está ajudando os órfãos a quem o lucro das vendas se destina; e depois pode usar o livro como peso de porta. Mas o que você tem a obrigação de saber aqui é que está ajudando aos órfãos, e não aos padrões das letras católicas neste país. Cabe a você decidir o que prefere, já que se trata de matéria de escolha.


Há livros, entretanto, que pretendem ter um forte sabor católico que não são tão inócuos quanto The Foundling, e estes são romances que, pelo esforço do autor para ser edificante, deixam de fora metade ou três quartos dos fatos da existência humana e, portanto, não são verdadeiros perante os mistérios que sabemos pela fé ou daqueles que percebemos simplesmente por observação. Requer-se do romancista que crie a ilusão de um mundo inteiro povoado por pessoas verossímeis; e a principal diferença entre o romancista que é um cristão ortodoxo e o romancista que é meramente um naturalista é que o romancista cristão vive num universo maior. Ele acredita que o mundo natural contém o sobrenatural. E isso não quer dizer que sua obrigação de retratar o mundo natural é menor – antes quer dizer que é maior.

O que quer que o romancista veja no caminho da verdade deve, em primeiro lugar, tomar a forma de sua arte e deve encarnar-se no concreto e humano. Se você se esquiva da experiência sensível, não será capaz de ler ficção; mas tampouco será capaz de apreender qualquer outra coisa neste mundo, pois todos os mistérios que alcançam a mente humana, exceto nos estágios finais da oração contemplativa, o fazem por meio dos sentidos. Cristo não nos redimiu por um ato intelectual direto, mas encarnou-se em forma humana, e fala-nos agora pela mediação da Igreja visível. Tudo isso pode parecer distante do assunto da ficção, mas não está, pois a principal preocupação do escritor de ficção é com o mistério tal como é encarnado na vida humana.

Baron von Hugel, um dos grandes eruditos católicos modernos, escreveu que 

a experiência sobrenatural sempre aparece como a transfiguração de condições, atos e estados naturais [...]; o espiritual normalmente é precedido, ocasionado, acompanhado ou seguido pelo sensível [...]. As realidades mais elevadas e as reações mais profundas são vivenciadas por nós no interior, ou em contato com o menor e mais ínfimo.

Para o romancista isso quer dizer que, se vai mostrar a ocorrência do sobrenatural, não tem outro lugar para fazê-lo senão no plano literal dos eventos naturais, e que, se não tornar essas coisas naturais verossímeis em si mesmas, não pode fazê-las críveis em qualquer de suas extensões espirituais.

Requer-se do romancista que abra seus olhos ao mundo a seu redor e veja. Se o que vê não é altamente edificante, ainda assim deve ver. Então, exige-se que reproduza, com palavras, o que vê. Ora, este é o primeiro ponto em que o romancista católico pode sentir algum atrito entre o que se supõe que deve fazer como romancista e o que se supõe que deve fazer como católico – pois o que ele vê sempre é o homem caído e pervertido por filosofias falsas. Ele deve reproduzir isso? Ou deve alterar o que vê e transformá-lo, em vez do que é, naquilo que à luz da fé ele acha que deveria ser? Deve, como disse Baron von Hugel, “maquiar a realidade”?

Mas como o romancista pode ser fiel ao tempo e à eternidade, ao que vê e ao que crê, ao relativo e ao absoluto? E como pode fazer tudo isso e ao mesmo tempo ser fiel à arte do romance, que exige a ilusão da vida? 

Já constatei que as pessoas de fora da Igreja gostam de supor que a Igreja age para restringir a criatividade do escritor católico e que ela o impede de atingir seu pleno desenvolvimento. Essas pessoas apontam para o fato de que não há muitos artistas e escritores católicos, pelo menos neste país, e que aqueles que de fato atingem alguma coisa de modo criativo geralmente são convertidos. Essa é uma crítica de que não podemos nos esquivar. Sinto que é uma crítica válida da forma como o catolicismo é aplicado por nosso sistema católico de ensino, ou desde o púlpito, ou ignorantemente praticado por nós mesmos; mas essa não é, obviamente, uma crítica válida da religião propriamente dita.

Não há nenhuma razão por que um dogma estabelecido devesse consertar o que quer que o escritor veja no mundo. Pelo contrário, o dogma é um instrumento para penetrar na realidade. O dogma cristão tem a ver com a única coisa deixada no mundo que certamente guarda e respeita o mistério. O escritor de ficção é um observador – no início, no fim, sempre –, mas não pode ser um observador adequado a menos que esteja livre das incertezas a respeito do que vê. Aqueles que não têm valores absolutos não podem deixar que o relativo simplesmente permaneça relativo; eles sempre o elevam ao nível do absoluto. O escritor de ficção católico está inteiramente livre para observar. Ele não sente nenhum chamado para assumir o papel de Deus ou criar um novo universo. Sente-se perfeitamente livre para olhar para aquilo que já olhamos e a mostrar exatamente o que vê. Não sente necessidade de desculpar-se pelos caminhos de Deus até o homem ou de evitar olhar os caminhos do homem até Deus. Para ele, “maquiar a realidade” é certamente sucumbir ao pecado do orgulho. Uma observação livre e aberta está fundamentada em nossa fé insuperável de que o universo é dotado de sentido, como ensina a Igreja.

E quando olhamos para a ficção séria escrita por católicos nestes tempos, encontramos uma preocupação impressionante com o que é gasto, mal e violento. O argumento piedoso contra tais romances é mais ou menos o seguinte: se você crê na redenção, sua visão suprema é de esperança, então naquilo que vê você deve ser fiel a esta visão suprema; você deve passar de largo pelo mal que vê e olhar para o bem, porque o bem está lá; o bem é a realidade última.

O início de uma resposta a essa objeção é que embora o bem seja a realidade última, a realidade última enfraqueceu-se nos seres humanos como resultado da queda, e é esta vida enfraquecida que vemos. E está errado, ademais, supor que o escritor escolhe o que verá e o que não verá. O que se vê é dado pelas circunstâncias e pela natureza do tipo de percepção peculiar a cada um.

O escritor de ficção deve caracterizar-se por seu tipo de visão. Seu tipo de visão é a visão profética. Profecia, que é dependente da faculdade imaginativa e não da moral, não precisa ser uma questão de predição do futuro. O profeta é um realista dos afastamentos, e é este tipo de realismo que entra nos grandes romances. É o realismo que não hesita em distorcer as aparências a fim de mostrar uma verdade oculta.

Para o romancista católico, a visão profética não é simplesmente uma questão de seu dom imaginativo pessoal; é também uma questão de dom da Igreja, que, diferentemente dele, é salvaguardado e lida com problemas maiores. É uma das funções da Igreja transmitir a visão profética que serve para qualquer época, e quando o romancista a tem como parte de sua própria visão, tem uma poderosa extensão da visão.

Infelizmente, é um dos meios de extensão de que constantemente abusamos ao pensar que podemos fechar nossos próprios olhos e que os olhos da Igreja farão o trabalho de ver. Não farão. Esquecemos que aquilo que para nós é uma extensão da visão para o resto do mundo é uma cegueira arrogante e peculiar, e que ninguém, hoje, está preparado para reconhecer a verdade de que aquilo que mostramos a menos a nossa visão puramente individual esteja em plena operação. Quando o romancista católico fecha seus próprios olhos e tenta ver com os olhos da Igreja, o resultado é mais um acréscimo ao vasto corpus do lixo piedoso pelo qual há tempos estamos famosos.

Seria tolice dizer que não há conflito entre esses dois olhares. Há um conflito, e é um conflito de que escapamos por nossa conta e risco, do qual não podemos ser poupados de antemão por teoria, decreto ou fé. Achamos que a fé nos dá o direito de evitá-lo, quando de fato a fé nos incita a começá-lo, e a continuar nele até que, como Jacó, tenhamos sido marcados.

Para alguns escritores católicos, o combate parecerá estar em seus próprios olhos, e para outros parecerá estar nos olhos da Igreja. O escritor pode sentir que, a fim de usar seus próprios olhos livremente, deve desconectá-los dos olhos da Igreja e ver tanto quanto possível à maneira de uma câmera. Infelizmente, tentar desconectar a fé da visão é violentar o todo da personalidade, e o todo da personalidade participa do ato de escrever. A tensão de ser um romancista católico provavelmente nunca fica equilibrada para o escritor até que a Igreja se torne também uma parte de sua personalidade ao ponto de que ele possa esquecê-la – no mesmo sentido em que, quando escreve, esquece de si mesmo.

Esta é condição que buscamos, mas que raramente é alcançada nessa vida, em especial pelos romancistas. O Senhor não fala ao romancista como fez com seu servo Moisés, face a face. Ele lhe fala como fez com os dois reclamantes, Arão e sua irmã, Miriam: por meio de sonhos e visões, aos trancos e barrancos, e por todos os menores e limitados caminhos da imaginação.

Gostaria de pensar que no futuro haverá escritores católicos capazes de usar esses dois grupos de olhos com toda destreza e intrepidez; mas não seria tão leviana a ponto de predizer tal coisa. Isso leva leitores e escritores a fazer literatura. Uma das circunstâncias mais desalentadoras com que o romancista católico tem de se haver é com o fato de que não há uma ampla audiência capaz de compreender sua obra. O leitor inteligente em geral, hoje, não é crente. Gosta de ler romances sobre sacerdotes e freiras porque estes suscitam sua curiosidade, mas ele não compreende de fato o personagem movido pela fé. O leitor católico, por outro lado, está tão ocupado procurando algo que satisfaça suas necessidades, e na melhor luz possível, que achará suspeita qualquer coisa que não sirva a tais propósitos.

O termo recorrente na busca pelo romance católico é “positivo”. Frequentemente, ao ler artigos sobre o fracasso do romancista católico, ter-se-á a ideia de que ele tem de erguer-se a partir da substância de sua própria imaginação, começando com princípios cristãos e encontrando a vida que sua obra há de ilustrar. Este é o procedimento que vai garantir que toda a sua obra seja positiva. A crítica parece pressupor que aquilo sobre o que o escritor católico escreve seguirá em grande medida uma atitude geral que ele tem diante da realidade e que essa atitude será causada por uma crença na ressurreição geral. Ele se esquece de que o romancista não escreve sobre crenças gerais, mas sobre homens com livre arbítrio, e que não há nada em nossa fé que implique um otimismo predeterminado pelo homem tão livre que com seu último suspiro pode dizer “não”. Toda literatura católica será positiva no sentido de que sustentamos a liberdade de existir, mas a Igreja nunca nos incentivou a acreditar que o inferno não é uma preocupação viva. O escritor usa seus olhos naquilo que lhe cabe enfrentar. Num livro recente de um erudito católico, Mauriac e Greene são censurados porque em seus romances não nos dão um retrato do casamento cristão. A implicação é que, se se esforçassem um pouco mais, poderiam fazer isso e, no processo, melhorar sua arte. Essa é uma proposição bastante questionável. Vocação é um fator limitante, e o romancista consciente trabalha no limite sua capacidade e dentro daquilo que sua imaginação é capaz de apreender. Ele não decide o seria bom para o corpo cristão e parte para oferecer isso. Como um duvidoso Jacó, ele confronta o que fica em seu caminho e se pergunta se sairá daquela peleja.

Geralmente se supõe que o romancista escolheu um assunto ou atitude perversa com um olho na moda. Está na moda ser sombrio, e assim ele ignora a virtude da esperança cristã; está na moda mostrar um casamento agonizante, e assim ignora o casamento cristão.

Com efeito, se o romancista é digno de ser lido, em primeiro lugar, sua integridade nessas questões é digna de confiança. Na minha experiência, no processo de escrita de um romance, o romancista sério enfrenta, da maneira mais extrema, suas próprias limitações e aquelas de seu meio. Ele sabe que a sobrevivência de sua obra depende de uma integridade que elimina os modismos de suas considerações. Nosso padrão final para ele terá de ser as exigências da arte, que em grande medida são mais severas que as exigências da Igreja. Há romances que um escritor pode escrever e continuar um bom católico, mas que sua consciência de artista não lhe permitirá perpetrar.

Nós, católicos, somos muito dados à resposta imediata. A ficção não tem nenhuma. Ela nos deixa, como Jó, com um renovado senso do mistério. Como escreveu São Gregório: sempre que o texto sagrado descreve um fato, revela um mistério. Isso é o que o escritor de ficção, em seu nível mais baixo, espera fazer. O perigo para o escritor que é impelido pela visão religiosa do mundo é que ele considerará que há duas operações em vez de uma. Ele tentará colocar num relicário o mistério sem o fato, e seguirá uma série de separações que são contrárias à arte.

Essas são separações que vemos em nossa sociedade e que existem em nossos escritos. São separações que a fé tende a curar se percebermos que a fé é um “caminhar no escuro” e não uma solução teológica do mistério. O poeta é tradicionalmente um homem cego, mas o poeta cristão, bem como o contador de histórias, é como o homem cego que Cristo tocou, que olhou e então viu os homens como se fossem árvores que caminhavam.

O universo do escritor de ficção católico é baseado nas verdades teológicas da Fé, mas três delas são particularmente fundamentais: a Queda, a Redenção e o Juízo. Essas são doutrinas em que o mundo moderno secular não acredita. Não acredita no pecado, ou no valor que o sofrimento pode ter, ou na responsabilidade eterna, e, uma vez que vivemos num mundo que desde o século XVI tem sido de cada vez mais dominado pelo pensamento secular, o escritor católico com frequência se encontra escrevendo num mundo e para um mundo que não está preparado nem disposto a ver o sentido da vida como ele o vê. Isso quer dizer, frequentemente, que ele pode lançar mão dos meios da violência literária para fazer-se compreender por uma audiência hostil, e as imagens e ações que ele cria podem parecer distorcidas e exageradas para a mentalidade católica.

O grande equívoco que o leitor católico descuidado geralmente comete é supor que o escritor católico está escrevendo para ele. Às vez isso pode acontecer, mas em geral não é o que acontece hoje. Os católicos criados sob o abrigo das comunidades católicas com pouco ou nenhum contato intelectual com o mundo moderno são capazes de supor que a verdade, tal como os católicos conhecem, é a ordem do dia, exceto entre os naturalmente perversos. Pode ser verdade que são bons tempos para a Igreja num sentido ou noutro. Há sinais de um retorno ao interesse nas realidades sobrenaturais, mas há apenas o suficiente para proporcionar uma esperança renovada, não ainda para proporcionar uma realidade atuante forte o bastante para sustentar a ficção para muitos escritores.

Poucos escritores podem, em virtude de um talento especial, escrever com toda honestidade obras que satisfazem os católicos e que os não crentes podem respeitar. Um desses, neste país, é um homem chamado Paul Horgan. O sr. Horgan é um artista e escreve o tipo de livro que os católicos dizem querer ler. Se há grande venda de seus livros para católicos, duvido muito, mas, de qualquer maneira, ele é um exemplo de escritor capaz de continuar fiel ao que vê e às exigências de sua arte e, ao mesmo tempo, de escrever livros que não ofendem ao católico comum. No entanto, exigir que todo católico escreva como o sr. Morgan é limitar a natureza e as possibilidades da arte. Há uma grande tendência hoje a querer que todos escrevam como todos os demais, a ver e a mostrar as mesmas coisas da mesma maneira para a mesma audiência medíocre. Mas o escritor, a fim de fazer o melhor uso dos talentos que recebeu, tem de escrever em seu próprio nível intelectual. Para ele, fazer qualquer outra coisa é enterrar seus talentos. Isso não quer dizer que, dentro de seus limites, não deva tentar alcançar o maior número possível de pessoas; mas quer dizer que não deve rebaixar seus parâmetros para fazer isso.

Arthur Koestler disse que trocaria uma centena de leitores agora por dez leitores em dez anos e que trocaria esses dez por um em cem anos. É assim que todo escritor sério se sente. Claro, quando tenta escrever o que vê e de acordo com os parâmetros da arte, o escritor está fadado a ser lido por todo tipo de gente que não entende o que ele está fazendo e ficam, portanto, escandalizadas, e isso me leva ao segundo argumento piedoso contra escrever da maneira que o artista, enquanto artista, sente que devia. Este é o risco que corre de corromper aqueles não são capazes de compreender o que ele está fazendo. É bem possível que a visão e a verdade para o escritor sejam tentação e pecado para o leitor. Sempre há o risco de que, ao escrever o que vê, o romancista esteja corrompendo um dos “pequeninos”, e melhor seria uma pedra amarrada a seu pescoço.

Este não é um problema superficial para o romancista consciencioso, e aqueles que o sentem sentem-no com agonia. Mas acho que forçar este tipo de responsabilidade total sobre o romancista é oprimi-lo com coisas que pertencem somente a Deus. Acho que a solução para este problema particular nos leva diretamente ao ponto em que começamos – o assunto dos padrões da arte e a natureza da ficção propriamente dita. O fato é que se a atenção do escritor está na produção da obra de arte, uma obra que é boa em si mesma, ele está prestes a suportar fortes dores para controlar todo excesso, tudo o que não contribui para seu sentido e propósito central. Ele não pode cair no sentimentalismo, na propaganda ou na pornografia e criar uma obra de arte, pois todas essas coisas são excessos. Eles chamam atenção para si mesmos e distraem da obra como um todo.

O escritor de ficção tem de criar um mundo inteiro verossímil criando cada parte e aspecto dele verossímil. Há muitos leitores católicos que abrem um romance e, ao descobrir a presença de um braço ou perna, piamente fecham o livro. Sempre estamos exigindo que o escritor seja menos explícito quanto às questões naturais ou a concretude particular do pecado. O escritor tem uma obrigação aqui, mas creio que ela pode ser satisfeita ao aderir às exigências de sua arte, e se o criticamos neste ponto, devemos criticar os padrões da arte. Muitos leitores católicos são hiperconscientes do que consideram obsceno na ficção moderna, pela simples razão de que, ao ler um livro, não tem nada mais para procurar. Não estão equipados para encontrar nada além disso. Estão totalmente inconscientes do propósito, do tom, da intenção, do sentido, ou mesmo da verdade do que eles têm em mãos. Não veem o livro numa perspectiva que reduzia cada uma de suas partes a seu lugar no todo.

A exigência de uma literatura positiva, tão frequentemente ouvida de católicos, possivelmente se dá por causa de uma fé fraca e também, possivelmente, por causa dessa incapacidade geral de ler; mas acho que se deve também à suposição de que o diabo exerce o papel principal na produção de ficção. Provavelmente o diabo desempenha o maior papel na produção daquela ficção da qual ele mesmo se ausenta como ator. Em todo caso, acho que deveríamos ensinar nossos potenciais escritores que a melhor defesa contra essa tomada de sua obra residirá em sua estrita atenção à ordem, proporção e resplendor do que estão fazendo.

Há aqueles que sustentam que não se pode exigir nada do leitor. Dizem que o leitor nada sabe sobre arte e que, se pretende alcançá-los, você tem de ser humilde o bastante para descer ao seu nível. Isso supõe ou que o objetivo da arte é ensinar – o que não é – ou que criar algo que é simplesmente bom em si mesmo é perda de tempo. A arte nunca responde ao desejo de torná-la democrática; nunca é para todos; é apenas para aqueles que estão dispostos a submeter-se ao esforço necessário para compreendê-la. Ouvimos muito sobre a humildade necessária para rebaixar-se para atingir alguém, mas é necessário a mesma humildade e um verdadeiro amor pela verdade para elevar alguém e, pelo trabalho duro, adquirir padrões mais altos. E esta é certamente a obrigação do católico.

É sua obrigação em todas as disciplinas da vida, mas sobretudo naquelas em que ele presume que há de passar por julgamento. A ignorância é perdoável quando é carregada como uma cruz, mas quando é brandida como um machado, e com indignação moral, então ela se torna outra coisa, na verdade. Refletimos a Igreja em tudo o que fazemos, e aqueles que podem ver claramente que nosso julgamento é falso em matéria de arte não pode ser culpado por suspeitar de nossos julgamentos em matéria de religião.

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Um comentário:

Max Aizner disse...

Muito legal!
Faltou a indicação da autoria: Flannery O'Connor.