sábado, 27 de dezembro de 2008

Grampeando Maquiavel


A civilização não é produto da natureza, um fato consumado desde sempre, um acidente, como muitas vezes nos parece. Antes, é um edifício em construção perpétua, que exige daqueles que a veneram e a desejam um cultivo vigilante, uma profissão de fé. Afinal, a ordem inercial das coisas sempre nos conduz à barbárie. Da mesma forma é o Estado Democrático de Direito: a familiaridade às vezes traz consigo o desprezo, dando a impressão de que essa coisa sempre esteve aí, como um vaso velho que vive despercebido no canto da sala, e só damos conta de sua existência quando um ser atabalhoado o transforma em cacos.

Pensei nisso enquanto assistia a uma entrevista do delegado Protógenes Queiroz, pai biológico da Operação Satiagraha. Tenho pra mim que apesar de sempre manifestar uma espécie de messianismo populista – que inevitavelmente tende à demagogia - trata-se de um homem bem intencionado (aquela espécie que povoa o inferno). Quer botar na cadeia os larápios de ternos bem cortados, figurões cuja prisão contraria a afamada filosofia popular segundo a qual “rico não vai em cana”. Na República de Protógenes vai, ô se vai.

E o que há de errado com isso? Não é louvável a democratização do xilindró para todos os públicos, independentemente da cor, credo ou classe social? Tutty Vasques, jornalista-humorista do Estadão, resumiu o espírito do problema: rico algemado é tão engraçado quanto pobre andando de limousine. Na mosca! Celso Pitta algemado de pijamas faz o povão vibrar; traz-nos a impressão de que nesse país não tem nhem-nhem-nhem, não tem carteirada, aqui não se admite o “você sabe com quem está falando?”. É a judicialização da vingança social: no Brasil, os ricos também choram.

O problema é que o preço pago para satisfazer essa ânsia por “isonomia” tem custado caro demais. O delegado justiceiro disse, na entrevista citada acima, que não vê problema nenhum em chamar e tratar como “bandido” seus investigados. Indagado se o método não extrapolaria suas funções, já que “julgar” é um procedimento que cabe unicamente à justiça, o homem foi categórico: A população não se incomoda com isso; a população se incomoda com crianças que moram sob viadutos, se incomoda com a fome. Viva!, ele fala em nome do “povo” – esse conceito sociologicamente indefinido e indefinível.

Será que vale a pena solapar o Estado de Direito (nem que seja só um pouquinho) para encurralar Daniel Dantas? Será que vale a pena lançar mão de procedimentos, digamos, ilegais para prender aquele que seria o maior corrupto e corruptor do país? A fala de Protógenes dá a entender que sim. Segundo a lógica do delegado, a arapongagem esporádica, o atropelo momentâneo da lei, o jeitinho, seriam preços acessíveis ante o benefício alcançado. Afinal, o “povo” anseia por isso.

Suponho, no entanto, que o preço seja alto demais. Temo que uma vez preso Daniel Dantas, as mazelas da vida desse “povo” que, supostamente, almeja que ele mofe atrás das grades – custe o que custar - continuará rigorosamente a mesma: a corrupção e a impunidade continuarão a fazer parte do panteão da história nacional. Disse “a mesma” e já me corrijo: ficará pior, uma vez que agora convivemos com alguém que, revestido com os “poderes do povo”, tem licença irrestrita para legislar, dizer quem são os bandidos e quem são os mocinhos. E os tratar como tais.

Justiça seja feita: Protógenes é um homem de bem, mas desconfio que ele tenha grampeado Maquiavel.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

A teimosia divina

Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. (II Cor. 5:18-20)

Aqui e ali se ouvem severas críticas ao chamado apelo comercial do Natal. Mais do que isso: com aquele ar de descaso, muitos afirmam que se trata de uma comemoração atrelada a um consumismo exacerbado, na qual importa consumir, consumir, comprar e comprar. Embora seja meio difícil negar tal realidade, há uma peculiaridade que o distingue das demais datas comemorativas.

A que me refiro?

Refiro-me ao fato de que, em geral, as pessoas estão mais inclinadas a pensar nos outros. Parece-me haver uma nítida diferença entre aquela compulsão neurótica por consumir e ter e o pretenso consumismo natalino. Quando saio para comprar um presente, tenho necessariamente de pensar naqueles a quem pretendo presentear; tenho de imaginar o que poderia agradar, o que poderia ser útil, o que, enfim, poderia trazer um pouquinho de alegria. E é, sim, muito bom dar presentes. Ganhar também, claro.

Estou dizendo isso porque essa tradição, esse hábito, esse costume, seja lá como queremos chamar, revela algo sobre a natureza humana. O homem não é um fim em si mesmo. Ninguém é auto-suficiente, ninguém pode dizer que se basta. Temos sempre a necessidade de ou nos remeter a outrem, ou de nos sentir importante para alguém. É nesse contato com as pessoas que podemos vivenciar experiências que nos ajudam a compreender que a vida tem sentido. Viktor E. Frankl chamava a essa característica humana de estar sempre dirigido a algo ou alguém fora de si de autotranscência. Para Frankl, isso é o que torna um homem um homem.

Quem, então, poderia afirmar-se como absoluto, auto-suficiente? Quem poderia, pois, bastar-se a si mesmo? A única resposta que me ocorre é que Deus é auto-suficiente e se basta. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, Deus se apresenta aos homens e os convida para relacionarem-se Consigo. Os homens, por sua vez, ora se aproximam dele, ora o renegam; ora o obedecem, ora se rebelam; ora são capazes de sofrer por fidelidade a Ele, ora são titubeantes. Enfim, quem ler os relatos bíblicos pode perceber que estes tratam basicamente dos desvios do homem e a insistência divina de se apresentar e de providenciar a reconciliação.

No Natal, celebramos o maior dos presentes divinos. A sinalização de que, apesar dos nossos descaminhos, Ele ainda nos ama, ainda se importa conosco e espera que nos acheguemos a Ele. O Natal é a festa da reconciliação, a solução definitiva para a teimosia do homem que se desvia. É uma espécie de teimosia divina.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A dimensão plástica da irrelevância


Com um sorriso no rosto, a menina voltava a gozar a liberdade que haviam lhe tomado. 54 dias de privação. Os arautos da liberdade de expressão, os defensores das minorias e de tudo o que é bom, belo e puro sorriram juntos. Carolina Pivetta da Motta, nome de batismo da “pichadora da bienal”, enfim, estava livre para voltar à rotina. Rotina? Infelizmente parece que ela não a tem. Mesmo alçada à condição de símbolo de resistência, personificação de todas as injustiças, acho que menina não terá muito a fazer.

Carol (trato-a com intimidade, já que, agora, ela faz parte de nosso universo) pertence a uma categoria de seres que crêem doentiamente que têm algo a dizer. Ela precisa expressar sua verdade revelada, para o bem daqueles que ainda vivem nas trevas. Sem sua transgressão, sem a interferência de seu grupo no design da cidade, a vida fica muito mais triste. Aliás, a simples idéia de “transgredir”, independentemente de por que e do que se transgride, parece justificar qualquer banalidade, qualquer barulho, qualquer violência. É a linguagem dos libertários, dos descolados.

É uma leviandade dizer que, ao optarem por cobrir as ruas da cidade com seus garranchos, pessoas como Caroline Pivetta desejam apenas sair do anonimato, serem reconhecidas. É muito mais do que isso: querem é despir-se de sua (nossa) bruta irrelevância. E a verdade é que um dos grandes dramas da vida humana é justamente este: somos relevantes apenas para um número muito reduzido de pessoas. Todos nós. E essa falta de importância – que é produto da própria arquitetura do mundo – para alguns é insuportável.

Caroline decerto não se considera uma criminosa; mas aposto que se tem por genial, por única. Quer nos mostrar, por meio de seus 37 rabiscos em diferentes “picos” da cidade, uma verdade que ela crê ter descoberto. E, como eficiente ministra da Ordem Superior, apresenta-nos – mesmo que à força – aquilo que sem ela seríamos incapazes de perceber. Sua brutalidade gráfica é, na verdade, catequizante.

O lamentável é que não damos bola para as “intervenções” de Carolina. Achamos aquilo uma grosseria, uma provocação violenta e tola. Não tenho nenhum interesse em enxergar a verdade sublimada na grafia marginal. E, para esse espírito mimado, nada é mais doloroso do que viver prisioneira da própria irrelevância. Livre. Mas apenas juridicamente. Por mais que lhe digam o contrário, Carol, as cadeias da insignificância ainda nos cercam.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Para além do cronista espirituoso

Leitores desavisados, acostumados com a superficialidade de uma rápida leitura do jornal, talvez ainda não tenham atinado com a perspicácia do cronista da Folha de São Paulo, JP Coutinho. Não se trata de um mero cronista que ora faz gracejos, ora assume posições polêmicas. Para além disso, ele é um estudioso sério, grande professor e dotado daquela capacidade de tratar com leveza e humor assuntos leves e com gravidade assuntos graves. Por que digo isso?
Porque tive oportunidade de conhecer um pouco mais do que o colunista da Folha. Fui aluno seu no curso que ministrou no IICS, em São Paulo. Reproduzo aqui a entrevista dada pelo gajo (como brinca o Martim) e publicada originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta. Vale a pena conferir. Por enquanto, as duas primeiras partes.

Parte 1


Parte 2

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Rumo ao nada?

Dois excertos de Viktor E. Frankl

Sigmund Freud afirmou em certa ocasião: "Imaginemos que alguém coloca determinado grupo de pessoas, bastante diversificado, numa mesma e uniforme situação de fome. Com o aumento da necessidade imperativa da fome, todas as diferenças individuais ficarão apagadas, e em seu lugar aparecerá a expressão uniforme da mesma necessidade não satisfeita."Graças a Deus, Sigmund Freud não precisou conhecer os campos de concentração do lado de dentro. Seus objetos de estudo deitavam sobre divãs de pelúcia desenhados no estilo da cultura vitoriana, e não na imundície de Auschwitz. Lá, as "diferenças individuais" não se "apagaram", mas, ao contrário, as pessoas ficaram mais diferentes; os indivíduos retiraram suas máscaras, tanto os porcos como os santos.

***

A vida no campo de concentração ensejava sem dúvida o rompimento de um abismo nas profundezas extremas do ser humano. Não deveria surpreender-nos o fato de que essas profundezas punham a descoberto simplesmente a natureza humana, o ser humano como ele é — uma liga do bem e do mal! A ruptura que perpassa toda a existência humana e distingue bem e mal alcança mesmo as mais extremas profundezas e se revela até no fundo desse abismo aberto pelo campo de concentração. Ficamos conhecendo o ser humano como talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

É HOJE!


A essa altura, todos os organizadores já estão mobilizados para que tudo corra bem. Sei que para muitos que me lerem durante o dia restará apenas a oportunidade de fazer um lamento do tipo "Poxa, perdi!". Para aqueles que, como eu, conseguirão pegar pelo menos parte do evento, fica a dica. Reproduzo abaixo a parte da programação que, creio, conseguirei assistir:

17h00 – 18h30 :: Sessão Especial

O Mal no relativismo

(Mediação: Maria Cristina Mariante Guarnieri)

- Prof. Dr. Leandro Karnal (UNICAMP) :: A demonização dos vícios e dos males indígenas nas obras coloniais.

- Prof. Dr. Luiz Felipe Ponde (PUC-SP) :: Moral como hábito.

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18h30 – 19h00 :: Intervalo

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NOITE

19h00 – 20h40 :: Sessão V de Comunicações do NEMES-PUCSP

Existe o Bem possível?

(Mediação: Maria José Caldeira do Amaral)

- Doutoranda Ana Cláudia Patitucci :: A Tragédia Grega e a questão do Mal.

- Drª Maria Cristina Guarnieri :: Mal e Liberdade em Kierkegaard e Berdiaev.

- Ms Jacqueline Sakamoto :: O Mal na Estética da Queda em Dostoiévski.

- Ms Rodrigo Inácio :: O anti-procriacionismo como crítica antropológica radical em Emil Cioran.

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20h40 – 22h30 :: Sessão Especial de Encerramento

O Mal na Filosofia e na Teologia, num espaço moderno e contemporâneo

(Mediação: Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé)

- Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP) :: A Positividade do Mal em Schopenhauer.

- Prof. Dr. Eduardo Rodrigues da Cruz (PUC-SP) :: Um Embate Contemporâneo sobre o Mal - Teologia Judaico-Cristã versus Teologia Transhumanista.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Número 2

Interrompo o longo período de silêncio por aqui para anunciar que em breve o número 2 da Revista Dicta&Contradicta estará em circulação. Na ocasião do lançamento da revista, houve alguma polêmica, tentaram impingir a pecha de revista da Opus Dei, de direita, etc., etc. Mas houve também uma boa receptividade. Passados já seis meses, a revista volta a mostrar a sua cara.

Quem quer que a tenha lido poderá atestar sua qualidade. Além da sobriedade do projeto gráfico, os textos são muito bons. Isso significa que tudo o que nela vem publicado deve ser simplesmente aceito, acriticamente? Dãã, claro que não! Quer dizer apenas que, mesmo quando ela dá voz a autores pouco conhecidos, ou antes, pouco populares, eles o fazem com competência. E a atitude mais inteligente diante disso não é a rejeição pura e simples, baseada em opiniões pré-formadas, em preconceitos. Pelo contrário, o importante é procurar compreender o que estão dizendo. Mais do que isso: sem ter as referências compartilhadas, fica difícil de fazer uma crítica bem fundamentada.

Então é isso. O que eles fazem, e muito bem, é pôr em circulação no Brasil autores ignorados ou rechaçados pela academia.

***

A previsão é que o lançamento seja feito no dia 08/12, na livraria Cultura da Avenida Paulista. Mas essa ainda não é uma informação oficial. Aguardemos!

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Antes e depois de Obama


Me senti ludibriado. Por volta das 7 da manhã da última quarta-feira, acordei com uma efusiva mensagem vinda da TV: o mundo não era mais o mesmo. Até esbocei uma certa indiferença, mas como a manhã é sempre traiçoeira para aqueles que dominam a arte de dormir, resolvi prestar mais atenção àquela coisa. E o repórter insistia: era mesmo o fim de nossas dores. E a cura do mundo vinha de um lugar improvável, acusado de sempre contribuir para a infecção de nossas chagas. E, para espanto generalizado, o remédio era produto da vontade de uma gente reconhecidamente arrogante que, agora, presenteava o mundo com esta boa nova. Sim, “They Can”.

A verdade, contudo, é que apesar das promessas de tempos áureos e novas felicidades, me parece que a vida continua seguidora de sua lógica pouco ortodoxa: tão imprevisível e insuportável (para a maioria) quanto ontem. O trânsito, pelo que vejo, mantém-se apocalíptico; minhas contas chegaram com a pontualidade britânica de sempre; o céu está cinza; os livros continuam caros. Em suma: a vida continua rigorosamente a mesma. A idéia de dividir nosso século em AO/DO (Antes de Obama, Depois de Obama), me parece precipitada e insalubre.

Precipitada porque não se sabe o que é Obama. Apesar dos sonhos vendidos, a chamada vida real é mais complexa do que os discursos apaixonados e apaixonantes proferidos durante a campanha. Insalubre porque exige dispensar à política algo que ela não merece: fé. E quando digo “fé” refiro-me justamente àquela descrição bíblica: a certeza das coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se vêem. E a razão de minha preferência ao ceticismo é muito simples: a política é, em si, insuficiente. Ela é incapaz de abarcar os vícios que produzimos diariamente, de satisfazer nossas paixões íntimas. Por isso, a felicidade nunca – exagero? – é um produto (unicamente) da política.

Obviamente isso não significa que devemos repudiar a política, suas causas e resultados; não significa tampouco deixar de vigiar, fazer escolhas, exigir melhorias e, no extremo, acreditar em “um novo mundo”. Nada disso. Trata-se apenas de colocá-la em seu devido lugar, saber até onde ela pode nos levar, conhecer seus limites. Caso contrário, a ascensão de Obama – ou de qualquer outro candidato a santo - terá o efeito de um livro de auto-ajuda: um alívio momentâneo que se dissolve diante da dureza da realidade.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Letramento

Convidadas por um menino,
as letras saíram para brincar.
O menino, muito ativo,
estava com palavras a formar.
Juntou, pois, todas as letras,
e fez uma exclamação:
– Cada uma de vocês
terá uma missão.
Tudo o que eu falar
vocês devem obedecer,
depois perceberão
um milagre acontecer.

As letras todas, espantadas,
estavam a hesitar:
– Que será que esse menino
com a gente vai aprontar?
Até que uma delas,
o “A”, sempre presente,
traqüilizou as demais:
– O menino é inteligente,
ele sabe o que faz.

– Formem grupos – disse o menino.
E aí começou a confusão.
A, E, I, O, U não sabiam a sua função.
– Vocês têm muitos amigos,
com todos vão se juntar.
Parem já com essa briga
e comecem a criar.

As letras de mãos dadas
passaram a desconfiar:
– Será que é importante
ocupar este lugar?
O menino, sorridente,
sem demora respondeu:
– Vocês são um presente
que fiz p’rum amigo meu.

As letras não entenderam:
– Como assim, você vai dar a gente?
E se ele nos maltratar?
– Esse meu amigo é mágico,
Tudo faz multiplicar.
Então vocês numerosas,
quando já forem famosas,
verão o milagre de que falei.
Crianças do mundo inteiro
saberão de sua história,
a história que contei.

***

A presença da Maísa por aqui me fez lembrar de um texto já velho, escrito quando tive um contato mais próximo do universo infantil. Uma experiência curta, mas da qual gostei muito. Gostei tanto que guardei o manuscrito, o que é muito raro eu fazer. Como o próprio nome deste blogue sugere, aqui vão meus exercícios de redação. Tudo ainda muito incipiente. Mas vou fazendo. É exercício, despretensioso.



I SEMINÁRIO NEMES: O Mal está entre nós?

O núcleo de estudos em mística e santidade da PUC-SP, dirigido pelo Professor Luis Felipe Pondé, realizará no dia 28/11 o I Seminário NEMES: O mal está entre nós? A programação está disponível aqui.
Minha intenção é estar lá, mas como ainda não tenho de certeza que será possível, divulgo. Clique na imagem para ver o cartaz em tamanho ampliado.

Questão gramatical: umazinha menininha engraçadinha



Algumas expressões bastante consolidadas em nossa língua contêm em si equívocos curiosos. Uma delas é aquela afirmação entusiasmada "Concordo em gênero, número e grau!". Pois bem, qual é o equívoco? Vamos relembrar. Concordância é aquela necessidade intrínseca de flexionar todos os elementos do sintagma para manter a adequação entre eles. Se digo "um menino engraçado", tenho de deixar artigo e adjetivo em concordância com o núcleo do sintagma, no caso o substantivo menino. Se eu flexionar o núcleo, tenho necessariamente de flexionar também seus adjuntos. Por exemplo: "Uma menina engraçada". Isso acontece tanto na flexão de gênero quanto de número. Mas não no grau. Não há nada que me impeça de dizer, sei lá, "uma menina engraçadinha", ou uma "menininha engraçada". Aliás, pareceria ridículo ter de dizer "umazinha menininha engraçadinha". Pois bem, caso encerrado. Grau não exige concordância. O que nas línguas sintéticas, entre elas o latim, exige concordância é a flexão em caso. Se disséssemos concordo em gênero, número e caso, aí não haveria problema, exceto, é claro, o fato de não ser muito bem compreendido ou considerado um mala.
Uma outra curiosidade é a relação direta entre gênero gramatical e sexo. Aprendi na faculdade que gênero gramatical é uma categoria independente do sexo por uma razão muito simples: todos os substantivos têm gênero, mesmo que não tenham sexo. Por que diabos porta é feminino? E parede? E cadeira? E por que, então, carro, livro ou telefone são masculinos? Sei lá eu. É só mais uma arbitrariedade da língua. Curioso mesmo é quando uma menina engraçadinha se mete a discutir esse tipo de coisa. E solta uma que me faz rir repetidas vezes.

Veja o vídeo, veja o vídeo! Essas notas servem só como pretexto para que vejam a menina engraçadinha do exemplo acima!

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Lançamento



Menção de Olavo de Carvalho ao livro:

No plano intelectual, o estudante deve esforçar-se para obter a mais alta qualificação possível, adotando como modelos da sua auto-educação as práticas melhores registradas historicamente: as da Academia platônica, do Liceu aristotélico, da universidade européia no século XIII (com seus ecos residuais na filosofia cristã moderna, por exemplo La Vie Intellectuelle de A. D. Sertillanges e Conseils sur la Vie Intellectuelle de Jean Guitton), da intelectualidade superior alemã no século XIX e austríaca no começo do século XX (tal como descrita, por exemplo, nos depoimentos de Eric Voegelin, Otto Maria Carpeaux e Marjorie Perloff) e, last not least, da tradição americana de liberal education (v., além do clássico How to Read a Book de Mortimer J. Adler, The Trivium, de Sister Miriam Joseph, Another Sort of Learning, de James V. Schall, e The House of Intellect, de Jacques Barzun).

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O que de graça recebestes


— E assim termino a minha exposição. Muito obrigado!
Houve uma explosão de aplausos no auditório. O Dr. Müller, postado no centro do palco, permanece todo o tempo com os olhos fechados. Um ou outro percebe, mas consideram apenas como um tique de orador.
Henrique já estava ansioso. Suas pernas tremiam, suas mãos suavam. Com seu livrinho em mãos, já surrado, fica imaginando como seria conversar diretamente com seu mestre inspirador. Ao mesmo tempo em que imaginava como seria a conversa, hesitava, temia ser mal recebido. Decidiu que seria o último a cumprimentar o professor. Assim, com menos pessoas à sua volta, poderia ao menos vencer sua timidez.
— Olá, professor.
— Olá, tudo bem?
— Tudo bem, sim. É... É... — sempre que ficava nervoso, gaguejava — gostaria de pedir um a—a—autógrafo.
Enrubescido de vergonha por apresentar um livro já velho, estende a mão em direção ao professor, que percebe que este está tremendo.
— Está tudo bem, mesmo? Por que treme tanto?
— Desculpe por apresentar o livro assim. Juro, não é por falta de cuidado, mas por excesso de manuseio. É o meu preferido. Me serve de inspiração.
— Que isso..., como é seu nome? — pergunta o professor.
— Henrique.
Antes de postar a caneta, o professor se põe a folhear o livro.
— Nossa, pelo visto você fez uma leitura bastante minuciosa. Ao menos é o que indicam todas essas anotações que você fez nas margens.
A esta altura o auditório já está vazio. Ainda estão lá somente o Dr. Müller, seu assistente e Henrique.
— A cada vez que o leio, a história suscita novas emoções em mim. Essas anotações não são críticas. São apenas as sensações que tinha enquanto lia.
— Fico feliz por isso. Ainda me surpreendo quando fico sabendo que as minhas histórias alegram um pouco a vida dos outros.
Um tanto sem jeito, faz um gesto com a cabeça para seu assistente e diz:
— Preciso ir.
Eles vão saindo, mas continuam conversando corredor afora. Entre um elogio e outro, uma pergunta e outra, Henrique, já mais descontraído, diz:
— O senhor não sabe o quanto foi difícil estar aqui hoje. Terei de compensar essa minha ausência no trabalho.
— E o que você faz?
— Trabalho em uma padaria, mas alimento mesmo é o sonho de ser escritor.
— Jura?
— Sim. E faço tudo o que está ao meu alcance. Mas é tão difícil.
— Tenho certeza de que você é capaz.
— Talvez para pessoas como o senhor seja mais fácil, mas não pra mim. Tenho de trabalhar para ajudar em casa...
— Aí é que você se engana. Mas essa conversa vai render. Tem compromisso agora? Não gostaria de ir tomar um café comigo? Se a ficar muito tarde, prometo levá—lo até sua casa.
— Antes mesmo que pudesse pensar qualquer coisa com a cabeça, seu coração dispara e manda sua boca aceitar o convite.

***

Já assentados confortavelmente, o Dr. Müller começa então a contar a Henrique a sua própria história:
— Você não imagina o quanto estou feliz por ter essa oportunidade. Poucos sabem de fato de onde vim. Se consegui chegar onde cheguei, foi com muito trabalho, muito esforço, muito suor e muitas, muitas lágrimas. — Henrique, ainda atônito com a situação, ouve a tudo atentamente. — Sabe uma pessoa que tem tudo para não ser nada na vida? Pois bem, este era eu. Meu pai era militante comunista. Foi a uma missão especial à URSS e nunca mais voltou. Depois ficamos sabendo que desiludiu-se com o regime e teve o mesmo destino que alguns milhões de descontentes. Minha mãe, deprimida, resolveu começar a beber. Um de meus tios fez o que estava ao seu alcance para que largasse a bebida. Tudo em vão. Para me proteger, fui enviado a um colégio de padres. E foi lá que, pela primeira vez, ouvi um discurso que mudou a minha vida. Não me refiro à pregação religiosa, não. Foram as primeiras palavras do Padre José, o professor de literatura. Lembro—me como se fosse hoje:
"Todos vocês são livres para construir o próprio destino. Não importam as circunstâncias. Não importa o que dizem de você. Não importa o que pensam de você. Não importa nada disso. Se há algo que faz toda a diferença, este algo é a forma como você encara a tudo isso. Se te disserem que você não é capaz de algo, você tem duas opções: baixar a cabeça e dizer amém, "ah, eu sou um incapaz mesmo", ou enfrentar tais palavras como um desafio. É sempre assim. Não se sinta vítima de um mundo cruel e perverso. Sinta—se desafiado por ele."

Eu era um garoto, ainda mais novo que você. Mas aquelas palavras me comoveram, tocaram no mais profundo de minha alma. Entendi que eu era livre. Era livre mesmo com todas as minhas limitações. O tempo foi passando e chegou o momento de ir para a universidade. Nessa época, meu tio já estava um tanto decrépito. Entristeci—me muito com sua morte. Mas foi a herança que ele me deixou que permitiu que custeasse meus estudos.
Tudo isso, claro, com muitas privações. Eu era tachado como o filho do comunista com a bêbada. Aquilo me angustiava. Não fossem os livros que me acompanhavam, talvez eu não tivesse conseguido suportar tudo aquilo. E da companhia dos livros brotou naturalmente o desejo de me tornar escritor. Não almejava sucesso. Queria apenas escrever histórias que pudessem aliviar os sofrimentos das pessoas. Assim como eu recebera esse consolo, queria também que outros fossem consolados.
O sucesso me veio de forma inesperada. Meus escritos foram adquirindo certa popularidade, até que, sabe—se lá como, foram parar nas mãos de um grande editor. Quando leu pela primeira vez "A volta do herói", ainda manuscrito, ele ficou eufórico por ter "redescoberto a literatura"! Mas antes disso tive muitas portas na cara...
Seja como for, guardo em minha lembrança cada situação vivida, cada minuto de solidão, mas também cada palavra de incentivo, cada gesto de apoio... Guardo tudo comigo. Aliás, é por isso que fico sempre com os olhos fechados sempre que termino uma conferência e recebo aplausos. É que os aplausos podem inflar o ego, mas aquilo é momentâneo. Com os olhos fechados, assisto cada um desses momentos como um filme. Alimento—me não de aplausos, mas de cada vivência que experimentei.

***

A conversa continuou rendendo. Parecia que eram íntimos já há anos. Enfim o Dr. Müller deixa Henrique na porta de sua casa. Seus pais já estão dormindo. Henrique então toma um banho, se olha no espelho e sorri. Sentado na cama, lê a dedicatória que seu novo amigo que lhe escreveu, põe o livro debaixo do travesseiro e se deita, certo de que sua vida não seria mais a mesma. Ele era livre. Vislumbrava já a sua obra. Sua vida tinha sentido.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A cara do leão


Nos corredores do Conjunto Nacional, se via uma dessas jovens mães, descoladas, com seus óculos de armação grossa, botas e cachecol. O que ela tinha de curioso era o olhar atônito, um semblante de preocupação, como de quem perdeu algo importante:
– Lucas... Lucas? Cadê você? Chega, vai... Vamos, Luquinha! Acabou a brincadeira, vamos embora.
Quem circula por aquela bandas sabe que não é nada usual ver alguém gritando (um grito comedido, é fato, mas, ainda assim, grito) por aqueles corredores. Aos poucos, a mulher começou a ser tomada por uma aflição, um desespero, uma vontade de chorar... O tempo, claro, passava. Lá se iam mais de 30 minutos desde que o menino foi se esconder. A tensão não parava de crescer. Por fim, ela resolve perguntar para o segurança. Um suspiro e:
– Por gentileza, o senhor viu um menino de óculos, com uma jaqueta laranja por aí? Estávamos brincando de esconder quando, depois de quase derrubar a estátua do D. Quixote, ele resolveu ir se esconder mais longe.
– Infelizmente, senhora, não vi, não.
O rádio do segurança é acionado.
– Na escuta... Tumulto na Livraria Cultura? Ok, estou indo para lá.
– Moço, o senhor não vai me ajudar?
– Desculpe, senhora. Meu trabalho é mais importante do que te ajudar a encontrar um garoto traquinas que sabe se esconder.
A mulher, já atordoada, perambula aleatoriamente até que vê uma pequena aglomeração se formando na porta da Livraria. Avista, então, o garotinho com tantos livros quantos era capaz de carregar. Como quem não se dá conta da aglomeração ou da preocupação da mãe, o menino olha para ela, sorri e diz aliviado:
– Que bom que você chegou, mamãe. Eu achei a caixinha do Aslam, mas o homi não quer me deixar levar...
– Aqui o tempo não pára durante as aventuras infantis — pensou a mãe.

***

Mais um que vai para o concurso. Gostei da idéia. Acho que serviu ao menos para eu me desinibir e arriscar escrever alguma ficção. Será, será?

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Contos da Cultura

Bem, o texto abaixo pode parecer um merchan meio fajuto, mas pelo menos tem explicação: enviei para o Contos da Cultura. Tem uma porção de coisas bobinhas. Mas há bastante coisas boas também. Como o volume cresce vertiginosamente, não dou conta de ler tudo. Mas dentre os que li, há coisa que vale a pena. O requisito para a participação era que o texto contivesse no máximo 2000 toques e que nele constasse pelo menos uma vez Livraria Cultura.

Explicação dada.

O colecionador de relíquias


Tão logo chegou à casa do professor, percorreu efusivamente com o olhar os quadros, o lustre, a lareira, os livros. Havia livros por toda parte.
— Aceita um café?
— Hmm, aceito.
Enquanto o professor se ausentou para preparar o café, o jovem assentou-se e se pôs a folhear uma pasta que estava sobre a mesa. Nela se encontravam postais com caracteres que ele ignorava, dedicatórias, declarações de amor, assinaturas que ele suspeitava serem autógrafos, mas tudo muito amarelado, velho, alguns até um tanto amassados ou sujos.
— Ah, você está vendo a minha pasta? Cuidado com isso, viu. São relíquias.
— Estava aqui intrigado tentando descobrir o que são essas coisas todas.
— Não sabe? Que te parece?
Hesitou e preferiu nada dizer:
— Não faço nem idéia.
— Cada livro tem sua própria história. Muitos são dados de presente; outros passam de geração em geração; outros ainda são trocados ou pertencem a bibliotecas. O que você tem aí são uns poucos vestígios das histórias dos meus livros. Muitos já circularam pelo mundo. Vê esses caracteres? É russo. Alguém muito desiludido com a vida detrás da cortina de ferro enviou esse postal para um amigo no ocidente. E chegou até mim dentro de um livro.
— E esse? O que é?
— Ignoro as personagens. Mas foi uma dedicatória escrita na folha de rosto da primeira edição de Dom Casmurro. Como pode ver, foi uma forma indireta usar o livro: o autor acusava a esposa de ser uma espécie de Bentinho. Achei que merecia ser guardada.
— Nossa, que legal!
— Vai folheando. Devagar! Pára aí. Esta foto é do Graciliano com o avô de um amigo. Só cheguei a descobrir quem era anos depois, por acaso, quando este amigo veio me visitar e comentou sobre o livro de estimação de seu avô. Dentro do livro, a foto.
— E como chegou até você?
— Comprei num sebo. Muito do que há nessa pasta veio com livros que comprei em sebos.
— E eu achava o máximo comprar livros na Livraria Cultura...
— Mas é. Todo livro tem uma história extra: dos sebos, já escritas; da Cultura, por escrever.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

A experiência da efemeridade

Agradeço pelas mensagens de solidariedade que recebi em função do último post. Ele está lacônico assim porque foi escrito tão logo cheguei do velório de um amigo falecido em um acidente de moto. Como exorta o Eclesiastes, melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete; porque naquela se vê o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração. Saí do cemitério um tanto perplexo. O rapaz tinha apenas 22 anos. Era mais novo que eu.
Fui tomado por um temor, uma insegurança, uma sensação de que também eu, a qualquer momento, poderia cessar minha existência. Cheguei, sentei em frente ao computador e escrevi.
Repentinamente, me dei conta de quão mesquinho eu vinha sendo. A polêmica do dia é nada. A busca desenfreada pela atualidade é nada. O avanço tecnológico é nada. A oscilação da bolsa é nada. O resultado da eleição é nada. Tudo é nada quando experimentamos nossa própria efemeridade. E é importante sair daí sabendo que o tempo é curto, curto demais para encontrar o sentido da vida.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Como a neblina que desvanece...

Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É como a neblina que aparece por um pouco, e depois se desvanece. TG 4:14
Um nó na garganta, um aperto no peito, um lágrima indiscreta que insiste em querer mostrar-se. Nunca é fácil encarar momentos desse tipo. Olhares distantes, um grupo de amigos comenta aqui, outro acolá, a família se abraça. O motivo? Um acidente de moto. Como? Ninguém sabe! Quem foi o responsável? Ninguém sabe. Quanto tempo o socorro demorou? Ninguém sabe.

Não, não há indignação, não há furor, não há revolta. Há apenas um nó na garganta, um aperto no peito, uma lágrima indiscreta que insiste em querer mostrar-se. E um silêncio. Um silêncio sepulcral...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Não, não é o fim

Ao contrário do que a longa ausência de atualizações poderia sugerir, aviso: este blogue não morreu; aliás, tampouco os seus autores. Ouvi dizer que blogues são coisas de solitários ou de desocupados. Tirando, claro, o caso daqueles que de fato têm o que dizer e que conseguem até extrair dividendos de sua atividade. Os autores deste blogue não pertencem a nenhuma das categorias.
Basta um pouquinho de paciência e, em breve, contrariaremos o tal dito! Aguardem!

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Sai de retro, 16



Em algumas regiões do país ainda é comum os pais darem um incentivo para iniciar os filhos machos nos prazeres da vida. Levam o moleque até uma casa de pouca luz e muito fogo, e lá elegem uma funcionária para mostrar o desconhecido ao inocente. E o meninão, tremendo mais do que vara verde, perde a candura assim, à força. Não se trata de uma escolha, mas de uma imposição ritualística, litúrgica. E ai do guri que ousar questionar o método: ganhará, no mínimo, a alcunha de frouxo.

Lúcia Hippólito me fez refletir sobre o triste destino daqueles que ainda não se sentem preparados para empreitada; para aqueles que alimentam o desejo de encontrar um grande amor para juntos desbravarem os prazeres do desconhecido. “Baitola!”. E por que digo isso? Leio no blog da cientista política a iniciativa de um grupo de estudantes do Rio de Janeiro que estaria ressuscitando o “Se liga 16”— movimento criado pela UNE durante a Constituinte para conscientizar os jovens sobre a importância da participação política, e para convencer a Constituinte a diminuir a idade mínima para votar.

Lúcia, sempre inteligente e honesta, não deve ter passado por essa idade. Pulou da infância para a idade adulta. O que se faz com 16 anos? Inutilidades sociais. E digo isso não como censura, ou deboche. Ao contrário: é natural que as inutilidades sejam feitas nessa fase da vida. A idéia de “conscientizar” a molecada de 16 anos a participar do processo político me parece semelhante ao pai que quer ajudar o moleque a se tornar sujeito homem.

Não que ele não esteja preparado para isso — tanto ir à casa da luz vermelha, quanto às urnas —, mas porque parece ser inadmissível o sujeito com 16 anos (!) não se interessar pela(s) matéria(s). Alienado! Bicha! E o que é participar? Seria apertar o verde e confirmar? Tenho certeza de que a noção de “participação” dos defensores de nossos calouros não é a urna. Sempre que se fala em participação, a questão parece remeter à militância, ao proselitismo. “Participante” é quem levanta bandeira, pinta a cara, faz panelaço. Ao contrário, alienado é quem está pouco se lixando para a política.

O moleque de 16 anos que deixa a barba falhada crescer, usa camisa do Che, diz-se marxista (sem nunca ter lido o velho) e milita pela importância do voto para a consolidação da democracia, é logo tido por politizado. O pobre diabo, espinhudo, virgem e que só quer saber de estudar matemática para ser engenheiro igual ao papai, é, logo, um alienado. Tem tudo para ser um eleitor do DEM, coitado. Não serve para nada: será o alvo do “Se liga , 16”.

Barackmania


Num determinado trecho do texto, Lúcia diz que “ganhe ou não as eleições americanas, Barack Obama já tem o indiscutível mérito de ter trazido a juventude americana de volta para a política. Nos Estados Unidos, os jovens não tinham tamanha participação política há quase 40 anos”. Olha só: não é só nos Estados Unidos que Obama faz sucesso. Se a eleição fosse aqui, nossas crianças o elegeriam no primeiro turno. Mas pergunte ao imberbe uma única proposta do Barack. Pergunte qual é o plano do homem para o Iraque, para a economia, para a América Latina. “We can change” é tudo o que se sabe sobre o homem. E para os jovens isso parece o suficiente: uma oratória formidável e a palavra mudança. E o que é necessário mudar? Não importa. Mudar é preciso. “Ah, mas idade não resulta, necessariamente, em consciência política”. Jura? Mas o que questiono é a idéia de tomar a “consciência” política como um valor. Quem supostamente não a tem, deve logo obtê-la para não ser visto como um pária, um leproso.

E é justamente essa exigência de respostas por parte daqueles que ainda não tiveram tempo de formular as perguntas que faz dos jovens a classe mais suscetível ao alinhamento automático, ao espírito de rebanho. Pobrezinhos...

Defendamos o direito de cantar e andar para política; lutemos para que nossos jovens tenham o direito de assistir Malhação enquanto Lúcia Hippólito se delicia com o horário eleitoral.

Assim, eu proponho uma contra movimento: o Sai de Retro, 16. Socialmente mais responsável, minha proposta visa afastar, ainda mais, a molecada de 16 anos do cenário político. E todo mundo ganha com isso: os jovens, que poderão gastar energia com coisas mais divertidas; e a própria política, que se preserva da possibilidade de participação de quem só quer pagar de consciente para conquistar as menininhas.

***
Lúcia, desculpe, sei que não foi pra tanto. Acho que é a idade: estou me tornando um velho ranzinza...

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Sobre oportunidades perdidas


Em dezembro de 2001, ainda com meus 17 anos de idade, escrevi pela primeira vez ao filósofo Olavo de Carvalho. Dentre outras coisas, disse que meu primeiro contato com seus escritos fora de repúdio, de resistência. Passei a lê-lo avidamente, não com a intenção de aprender alguma coisa, mas para refutá-lo. Claro, tudo isso no melhor estilo imbecil juvenil.

(Ainda quando estava no ensino médio, cheguei a comentar sobre seus artigos com minha professora de história — uma professora séria, porém comprometida pelos ideais esquerdistas. A resposta dela foi uma recomendação para que parasse de lê-lo. Fiquei um tanto contrariado, insisti nas leituras, até que me dei conta de que muito do que ele dizia não estava meramente no plano da opinião pessoal ou de uma cosmovisão peculiar. Sobretudo quando ele denunciava os males do marxismo, para mim ficou claro que se tratava de uma questão de verdade factual: ou o comunismo era de fato um regime sagüinário, ou não era. Quando me dei conta disso, resolvi procurar, ainda com toda a minha limitação, as respostas àquelas perguntas. E, para minha surpresa, descobri que ele estava certo! Daí até me desfazer de minhas convicções todas foi um processo bastante doloroso. E, aliás, ainda não está de todo concluído.)

Naquele mesmo e-mail disse-lhe que gostaria muito de assistir suas aulas, mas que não podia porque eram muito caras. Sua resposta foi inacreditável: JAMAIS NENHUM ALUNO MEU DEIXOU DE ASSISTIR AULA POR CAUSA DE DINHEIRO. VENHA!
Compareci àquela aula num sábado ensolarado em que meus pais foram a uma churrascada num sítio! Fiquei em casa sozinho para ir à aula. No final, fui agradecer-lhe e, mais uma vez, me espantei: ele me disse que eu poderia continuar freqüentando suas aulas, e que passaria a pagar a partir de quando tivesse dinheiro.
Sabem o que o bestão aqui fez?
Não apareci mais! Só por causa de timidez!

Até hoje este é um dos maiores arrependimentos que carrego.

Para minha alegria, parte dele está remediado. É que o Olavo passará a disponibilizar em uma nova seção de seu site parte do material utilizado em suas aulas. É necessário fazer uma inscrição, mas o preço é simbólico perto do valor inestimável. Quem tiver oportunidade, aproveite! Mais informações, clique no banner no canto superior direito deste modesto blogue.

domingo, 20 de julho de 2008

O Coringa


A primeira impressão é a de que se trata de mais um filme de ação. Não é. Ou melhor, não é só isso. A despeito das cenas extraordinariamente barulhentas, com explosões intermináveis, perseguições de carros, tiros, brigas, torturas (a fórmula ideal para os filmes que nada têm a dizer), Batman – O Cavaleiro das Trevas é um filme altamente reflexivo, que traz às telas a discussão de quão tênue é a linha divisória entre o bem e o mal: Batman não é o homem perfeito, incorruptível, que se propõe a lutar contra o mal; nem tampouco o Coringa é o seu contrário. E a confusão fica evidente no fim do filme: afinal, quem triunfou?

O vilão construído por Heath Ledger é, como ele próprio se define, um “agente do caos”. O Coringa nos leva a pensar a respeito da existência de uma espécie de mal sem motivação ou objetivo aparente: da mesma forma que existe um amor incondicional, parece que há também seu oposto, um sadismo que é um fim em si próprio. O Coringa não quer dominar o mundo, ter dinheiro, fama ou poder: quer apenas se divertir explodindo coisas. E tal qual o bem, que precisa do mal para justificar sua existência, ele precisa do bem para ser mal. Parace lógico, não? E Ledger incorpora essas contradições com primazia.

Nelson Rodrigues já havia percebido quão dificultoso é prestar culto aos gênios que ainda vivem. Sem recorrer a subterfúgios, o dramaturgo confessou, em suas memórias, a inveja que sentia de Guimarães Rosa. Narrou com audácia a exultação que teve quando se deu a morte do escritor mineiro: poderia, enfim, reconhecer-lhe a genialidade. Nelson diagnosticara quão cômodo - e prazeroso - é reverenciar o gênio morto.

A interpretação de Heath Ledger parece prenunciar sua morte. É unânime o sentimento de que ali se deu uma atuação para ser lembrada como umas das mais impressionantes da história do cinema. Mas quanto dessa veneração é fruto da tendência que temos para adular cadáveres? Jamais saberemos.

***

Morreu, aos 101 anos, Dercy Gonçalves. Há pelo menos 15 anos eu não ouvia o nome da mulher na Rede Globo de Televisão. Há pouco, Alexandre Garcia anunciava no Jornal Nacional a morte da “atriz que dedicou um século ao humor”, “um símbolo da irreverência”. É mais um titã que elevamos à morada dos deuses. Com acerto? Sei lá eu. E o que importa?
Na verdade, o que me arrepia é saber que o óbito de Dercy é a prova inconteste da existência da morte. Se ela - até ela! - morreu, é bom nos conformarmos: morreremos.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

O vazio existencial



Como sabem, sou um carola. E, claro, como todo carola, me escandalizo quando vejo certas coisas. Mas, mesmo aqueles que têm pretensão de ser descolados ficam estarrecidos com uma estrovenga dessas. Isso não é diversão, isso não é humor, isso não é engraçado. Sim, eu tenho vergonha da geração a que pertenço.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

O próximo


Ainda não terminei a leitura do relatório de Protógenes. Confesso que a parte que mais me interessa é a que "esmiúça" a ligação entre o gênio do mal, Daniel Dantas, e a imprensa. Cada página, uma nova revelação: “Ele também?”, “Me parecia tão sério!”, “Até tu, Brutus?”. Pelo andar da carruagem, e, principalmente pela profundidade da argumentação do delegado, é provável que o irrepreensível Zé Bob apareça nas próximas páginas. Não vejo a hora!
Só tenho dó das donas-de-casa que botavam fé no rapaz...

quarta-feira, 16 de julho de 2008

A Lei Seca e os caprichos da física


Passadas três semanas desde a implantação da chamada Lei Seca, os números animam. O atendimento nos hospitais especializados em traumas, na cidade de São Paulo, caiu 55%. A relação é óbvia: apesar de “o” de bêbado não ter dono, quem tem tem medo. Imagino, porém, que essa panacéia logo passará. A fiscalização ficará mais frouxa, os policiais se renderão aos trocados da impunidade, os motoristas perderão o medo e as coisas voltarão ao normal na Banânia. Fique calmo, amigo pé inchado, em breve sua diversão estará novamente garantida.

Mas o detalhe mais surpreendente dessa discussão é a chamada “sorte de bêbado”. O Santo Protetor dos pau-d'águas é inquestionavelmente poderoso. Tente se recordar do último acidente envolvendo pinguços no trânsito: famílias dizimadas, carros destruídos, e eis que aparece o bonitão do motorista dando entrevista, sendo vítima apenas das enigmáticas “escoriações”. É batata: por algum capricho da física (mecânica ou cinética?) o motorista embriagado nunca morre. O álcool, me parece, é mais eficaz que os airbags e cintos de segurança. O problema, claro, é que essa proteção não se estende a terceiros. É pessoal e intransferível. E é para equacionar essa pendenga metafísica que surge a necessidade de uma legislação que coíba os excessos.

Só acho que as punições poderiam ser mais criativas. Tirar 900 pilas do bolso do ébrio não o fará refletir sobre seus atos. Nem mesmo a cassação da CNH produzirá efeito imediato. Nada de xilindró: minha sugestão é que o sujeito flagrado dirigindo alcoolizado seja obrigado a consumir cerveja sem álcool pelo resto da vida. Além de humilhante, a medida traria consigo um valor simbólico verdadeiramente eficaz: imagine o meninão pedindo uma Kronenbier no boteco. Nada é mais produtivo do que a pedagogia do ridículo.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Padrão e padrões



Comento ou não comento? Melhor não. Pra que estragar? As palavras dela falam por si mesmas. Apenas subscrevo!

Ops...

Meu caro amigo Elton mistura alhos com bugalhos em seu post sobre Paulo Coelho. É claro que muitos de seus críticos jamais leram sequer uma linha do mago da literatura; é claro que há muito ressentimento por causa de seu sucesso; é claro que ele suscita inveja em muita gente; é claro que, no Brasil, alguém ser bem-sucedido com seu trabalho acaba sendo coisa condenável(!); é claro também que, por oferecer um sucedâneo de vida espiritual, ele acaba vítima do preconceito tanto de ateus quanto de religiosos.
Tudo isso é fato. Mas é fato também que ele não é nenhum gênio da literatura. Uma crítica rigorosa, fiada em critérios sobretudo estéticos, também o relega a uma posição menor. Então é isso. O fato de sofrer de todos os preconceitos não o torna maior.

Quanto ao que faz uma obra ser grande, Antonio Fernando Borges já respondeu de maneira bastante pertinente (Ah, sim, juro maneirar nas referências a ele).

Ao ler um romance, quais são os critérios que você utiliza para dizer: “isto é bom”? E quais são as razões que te levam a, subjetivamente, preferir certos livros a outros?

Eis aí uma questão fundamental, difícil mesmo, que a maioria das pessoas em geral resolve pelo caminho fácil da filiação (no fim das contas ideológica) a uma corrente de opinião alheia – ou, então, empinando o nariz e citando os autores da hora… Na verdade, estes critérios (“por que isto é bom?”) envolvem o chamado cultivo do gosto, que tem a ver com a educação do espírito e até dos sentidos – e tudo isso tem a ver com a questão do autoconhecimento, um passo decisivo no caminho da sabedoria.

No Brasil, onde todos defendem o “direito de ter uma opinião”, esquecendo no mais das vezes o dever de buscar a verdade, as coisas sempre acabam se ajeitando num subjetivismo que pouco ou nada acrescenta à própria história de cada um. Mas o fato é que bom gosto e bom senso (elementos decisivos no modo ético-estético de encarar o mundo) são questões objetivas, concretas – e não uma “terra de qualquer um”. Mas, entre nós, cada um prefere “achar” o que quer – e fim de papo. Feliz, ou infelizmente, perdi há muito esta “inocência” (na verdade, uma malandragem das boas…), e então, quando me faço a pergunta estou me colocando um grande desafio: por que este romance é bom? Não me contento com a mera sensação de prazer que sua leitura acarreta: ele é apenas um dos fatores! Há fatores igualmente importantes, como a questão semântica (o que o romance diz, os valores que transmite), a forma como o assunto é tratado (sua sintaxe, a seleção e combinação das palavras), a harmonia do conjunto, a sensação de beleza que tudo transmite… São tantas coisas em jogo! Porque, para além da avaliação específica de cada livro, existe a obrigação de inseri-lo, comparativamente, no conjunto da literatura e da cultura – tarefa a que os tolos e poltrões também se furtam, contaminando o âmbito cultural de uma idéia equivocada de democracia igualitária. Mas, queiram ou não, cultura é hierarquia!

Trata-se de um questionamento solitário, que no fim das contas não difere muito do meu autoquestionamento de escritor. Porque em mim o leitor e o escritor sabem que se trata de um problema objetivo, e não de uma vaidade “subjetivista”. E aí começa todo o drama, que vai se precipitando sem máscaras e, no meu caso, também sem testemunhas, desde que abandonei a prática de escrever as malfadadas resenhas de suplementos literários.

Claro que este esforço de objetividade não elimina as arbitrariedades subjetivas. Mas, a cada livro que começo a ler, a esperança se renova: desta vez, eu chego um pouquinho mais perto!

***

PS1: Vê lá por onde anda, rapaz! Não me vá aderir ao politicamente correto!

PS2: Eu sou um ganso profissional. E nunca vi ninguém lendo Joyce no metrô. Nem Proust!

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O crime do mago


Na lata: Paulo Coelho é um bom escritor? Mesmo que você nunca tenha lido um livro do Mago, a resposta óbvia e ululante é não. Aliás, entre os círculos sociais que freqüento (que chique!) o preconceito contra o escritor é infinitamente maior do que contra negros, índios e gays. Penso se não seria o caso de estabelecer um sistema de cotas para os leitores de Paulo, já que o único lugar que ainda admite a pluralidade absoluta de leituras é o bom e velho Metrô (mais velho do que bom). Lá, tanto faz se você lê Joyce ou Zíbia Gasparetto; Paulo Coelho ou Proust; a Bíblia ou O Anticristo. Ninguém o censurará. Pelo contrário: pescoços se esticarão com o intuito de socializar o texto. Desconfio até que existam comunidades secretas que se reúnem periodicamente nos trens e metrôs para compartilhar suas leituras malditas.

Mas não ouse recitar uma passagem de “O Alquimista” numa roda de bem-pensantes. Nunca! Ler Paulo Coelho é crime inafiançável. Confesse um pecado, conte uma impostura, mas jamais caia na tentação de admitir uma passada de vistas nas letras coelhianas. Estaria eu defendendo a qualidade literária do mais novo biografado de Fernando Moraes? De forma alguma. O que eu desejo entender é a aversão a priori. Podemos dizer que Paulo Coelho escreve mal? Podemos, claro. Mas para isso é necessário desenvolver a árdua tarefa de determinar o que é escrever bem.

Durante uma fase da minha vida acreditei que “escrever bem” estava associado à invenção. Logo, escrever bem era “escrever diferente”. Nesse sentido, a grande referência era, sem dúvida, Guimarães Rosa – aquele que fazia pirâmides ao invés de biscoitos (para lembrar uma tirada de Nelson Rodrigues). Com o passar dos anos, confesso que fui me entediando com as invenções estilísticas do escritor mineiro. Passei a me interessar pelo texto cortante, “ineditável”, cuja referência era Graciliano Ramos. Impossível “editar” uma linha de Vidas Secas... Mas e o parceiro de Raul Seixas?

Acredito que todas as restrições ao Mago sejam motivadas menos pela sua questionável qualidade literária do que pelo seu sucesso mercadológico. O pecado de Paulo Coelho não é escrever mal ou errado: seu crime é vender livros a rodo. Escritor bom, na mente de nossos guias, são os marginais, que vivem na sarjeta, mendigando audiência. Escritor que vende não merece crédito. Onde já se viu, ganhar o pão e ainda desfrutar de um pouco de luxo apenas com as letras?! Inimaginável. Conselho aos aspirantes ao mundo literário: não vendam. Se vender, é certo que terão de trilhar o Caminho de Santiago do escracho crítico, ou sentar às margens do Rio Piedra e chorar...

Difícil?

Por muito pouco não comecei a redigir essas linhas queixando-me de que escrever é difícil. Fazer isso seria rematada tolice. Que é a sintaxe quando comparada à complexidade da vida? Que é a morfologia se comparada a todas as nossas crises de identidade? De que vale o rebuscamento lexical, se não somos capazes de fazer o mesmo em nossos relacionamentos? Verdade é que, ao menos nos textos, enquanto escrevemos, somos os senhores. Temos liberdade para criar um mundo à nossa imagem e semelhança, se assim o quisermos. Temos a tentação da divindade.
Escrever é fácil. Difícil mesmo é viver!

Surpreendido por C. S. Lewis


Numa oficina literária de que participei, Antonio Fernando Borges repetidas vezes disse que a vida real não rende boa literatura. Ou melhor, para que a banalidade da vida cotidiana renda boa literatura, é necessário que a pena esteja sob o jugo de um grande escritor. A epígrafe da apostila utilizada, uma citação de Stevenson, já nos exortava:
A vida é monstruosa, infinita, ilógica, abrupta e lancinante. Uma obra de arte, em comparação, é uma coisa bem-feita, finita, contida em si própria, racional, fluida e transfigurada. A vida se impõe pela sua energia bruta, inarticulada como a de um trovão. A arte seduz o nosso ouvido, por entre os ruídos mais altos de nossa experiência diária, como os sons produzidos por um músico discreto...

...O romance, que é uma obra de arte, justifica sua existência não por sua semelhança com a vida, que é forçada e meramente material (assim como um sapato se assemelha ao couro de uma vaca), mas por sua incalculável diferença de natureza em relação à vida, uma diferença que é deliberada e significativa – e que constitui tanto o método quanto o significado da obra.

Outra citação recorrente em aula era de Schopenhauer. Este dizia que havia dois tipos de escritores: os que escrevem por escrever e aqueles que escrevem por ter algo a dizer. Ainda na oficina, falou-se muito a respeito daqueles que, de tanto lerem, acabaram por se tornar escritores. Este o caso do próprio Fernando.

***

No lançamento da edição brasileira das obras de Eric Voegelin, Olavo de Carvalho recomendava entusiasticamente a leitura de biografias dos grandes homens de espírito, para que estes sirvam de inspiração e de exemplo para os brasileiros, que já ignoram de que se constitui uma vida intelectual efetiva. Olavo fazia referência às Reflexões Autobiográficas, de Voegelin. Mas creio que o mesmo vale para Surpreendido pela Alegria, de C. S. Lewis. Guardadas as devidas proporções, claro.

***

O livro não tem a pretensão de ser uma biografia compreensiva. É, na verdade, a história da conversão de seu autor. Mas, para chegar ao ponto culminante, no qual, enfim, se rende, ele nos brinda com seu relacionamento com os livros, fala sobre as escolas por onde passou, sobre seu relacionamento familiar e insistentemente sobre a Alegria. Como ele mesmo faz questão de frizar, a Alegria não deve ser compreendida em seu sentido comum, que se presta à confusão com um prazer vulgar. Lewis define a Alegria como aquele desejo não satisfeito que é mais desejável que qualquer satisfação. É uma experiência que quem quer que a tenha vivenciado vai querer senti-la novamente. Mas, apesar disso, é uma espécie de infelicidade, uma espécie de pesar. Diria eu, uma lacuna, um vislumbre.
Dentre os escritores mais determinantes para sua conversão, se encontram George Macdonald e G. K. Chesterton. Xeque-mate, o penúltimo capítulo do livro, é a mais bela passagem de C. S. Lewis que já li. Menciono apenas de esguelha porque desejo mesmo é que o leiam.

***
Passo a fazer um relato subjetivo das reverberações que o livro suscitou em mim, sem muita preocupação em fazer uma crítica do livro. O fato é que há tempos não lia algo que mexesse tanto comigo. À medida que Lewis narrava sua própria história, eu era convidado a olhar para minha própria experiência. Não apenas porque eu mesmo tenha uma certa inclinação para assuntos religiosos, mas porque, em alguma media, eu mesmo experimentei a Alegria e a ausência dela.

Não posso dizer que tive uma infância envolta por livros — aliás, minha iniciação foi bastante tardia; não posso dizer que minha infância fosse algo muito estimulante intelectualmente; não posso dizer que o ambiente em torno, a paisagem que se me apresentava, fomentasse grandes experiências imaginativas; não posso dizer que cheguei a ter uma relação bastante próxima com meus irmãos. Fomos amigos, sim, embora distantes da cumplicidade que havia entre os irmãos Lewis. Não creio que minha vida seja assim tão interessante para merecer ser relatada aqui. Comento, assim, de sobressalto, apenas algumas “bobagens”. As aspas se justificam. É que certos fatos, por mais significativos que sejam para aquele que os experimenta, não passam de tolice para um observador externo. Isso vale para o amor, mas vale para uma porção de outras situações.

Não creio ser necessário dizer que o turbilhão de coisas em que nos envolvemos, muitas vezes, tem como efeito o distanciamento de nós mesmos. Assim, distante como estava, lia e ouvia repetidamente: lembre-se de quem você é, lembre-se de quem você é. Pronto, o chamado à introspecção estava feito. E essa introspecção me fez voltar às minhas aulas na escola dominical. Algo que exerceu uma influência bastante marcante, da qual jamais me esqueci, e que me valeu durante o período de rebeldia na adolescência, foi o estudo do livro do profeta Daniel. Nada que fosse assim uma exegese rigorosa do livro, com direito a interpretação escatológica e tudo o mais. O que essas aulas me ensinaram foi a firmeza de caráter. Então Daniel resolveu firmemente não se contaminar com as finas iguarias do rei... Tais palavras se tornaram para mim, durante muito tempo, um norte ético.

Digo desde logo: toda a minha adolescência foi marcada por intensa atividade na igreja. Aos 12 anos de idade, lembro-me até de já pregar. Hoje acho que a Graça corroborava com a complacência dedicada a um menino de 12 anos que se presta a falar sobre as coisas de Deus. Seja como for, se sou o que sou hoje, devo isso, sim, à minha formação na igreja e à obra de três professores. Para não cometer injustiças, tive alguns outros marcantes, mas em menor medida. (Falo sobre eles outra hora.)

Volto à escola dominical. Um cântico que sempre me impressionou muito dizia:
Tu és soberano sobre a Terra,
Sobre os céus tu és Senhor absoluto.
Tudo o que existe e acontece, tu o sabes muito bem.
Tu és tremendo.

E apesar desta Glória que tens,
Tu te importas comigo também.
E este amor tão grande eleva-me, amarra-me a ti.
Tu és tremendo.
O que há de mais belo no cristianismo é que o próprio Deus se dirige ao homem. Aí o C. S. Lewis ilustra isso de um modo sublime. Diz ele:
Se Shakespeare e Hamlet pudessem um dia se encontrar, seria sem dúvida um ato de Shakespeare. A Hamlet não cabia nenhuma iniciativa.

Shakespeare poderia, teoricamente, fazer que ele mesmo aparecesse como Autor dentro da peça, escrevendo um diálogo em que ele mesmo conversasse com Hamlet. O "Shakespeare" inserido na peça seria, é claro, ao mesmo tempo Shakespeare e uma das criaturas de Shakespeare. Traria em si alguma analogia com a Encarnação.
Enfim, é isso. As orelhas do livro falam sobre duas rosas que brotaram da vida de Lewis. “A primeira delas abriu metade de suas pétalas em livros de profunda sabedoria e reflexão apologética, e a outra metade trouxe esplendor de um mundo de fantasia, sonhos e aventura a todas as crianças que vêm experimentando a felicidade de conhecer os seus livros infanto-juvenis. A segunda dessas rosas é a Alegria.”

Quanto a mim, digo apenas que a rosa azul que ilustra este post é uma terceira rosa — que brotou em mim como esse convite à introspecção, essa volta às origens, esse lembrete de que por ora vemos como espelho, mas veremos face a face; agora conhecemos em parte, mas conheceremos como também somos conhecidos. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.

Estilo axiomático

Vida saudável é vida feliz.

Contra o ceticismo

“Para responder ao cético arrogante, não adianta insistir que deixe de duvidar. É melhor estimulá-lo a continuar a duvidar, para duvidar um pouco mais, para duvidar cada dia mais das coisas novas e loucas do universo, até que, enfim, por alguma estranha iluminação, ele venha a duvidar de si próprio.”

G. K. Chesterton, in Ortodoxia.

domingo, 29 de junho de 2008

De como fui parar no Observatório da Imprensa


Essa história de interatividade na rede é uma coisa fabulosa mesmo. A que me refiro dessa vez? Dias atrás aconteceu o lançamento da revista Dicta&Contradicta, uma publicação do IFE. Como sou leitor do Martim desde os tempos do velho indivíduo e mantive contato com ele por conta dos cursos oferecidos pelo instituto de humanidades do IICS, a notícia da publicação da revista me encheu de entusiasmo. Não só a mim, mas a muita gente que acompanha um trabalho que vem sendo desenvolvido já há anos.

A revista tem o mérito de reunir muita gente boa, com ideais afins, numa mesma publicação. Pedro Sette Camara, Martim Vasquez da Cunha, Antonio Fernando Borges, Mendo Castro Henriques, Luiz Felipe Pondé... Cada qual com sua especialização, cada qual com seus interesses, mas todos críticos severos da establishment acadêmico brasileiro (com exceção de Mendo, que é português), todos estudiosos de autores que são rechaçados pela academia, todos muito competentes no que se propõem a fazer.

Às vezes declaramente, às vezes nem tanto, eles acabam assumindo posições um tanto polêmicas. O que não os diminui em nada, haja vista o fato de que não se trata de polêmicas gratuitas, mas tudo devidamente fundamentado. Mas não escrevo para falar deles. Pelo menos não diretamente.

Tudo o que disse até agora foi só para contextualizar uma referência a palavras minhas feita por Gabriel Perissé num texto do Observatório da Imprensa. A origem da citação foi um comentário que enviei ao blogue do Bruno Garschagen, na ocasião da cobertura do lançamento da revista. O Bruno considerou que meu comentário merecia virar post e o publicou com destaque.

Aí tomei um susto quando, ao ler as palavras de Perissé sobre a revista, vi que meu texto havia sido usado como mais uma evidência da pretensão de seus editores. Sim, aquele "jovem de impressões exaltadas" sou eu. Vai aqui então a minha explicação. Não desdigo o que disse. Mas é preciso que fique claro que quem disse aquilo fui eu. Não tenho nada a ver com os editores, nem com o Opus Dei. Minha relação com o Martim é a mesma que tenho com o Pedro, com o Olavo, com o Reinaldo: sou leitor. Só isso! Se é que posso fazer alguma emenda no que disse, corrigiria apenas uma droga de um erro de digitação:
E o que mais me chamou atenção foi a quantidade de jovens que ali se encontrava. Não eram senhor(E)zinhos caquéticos, nostálgicos de tempos passados, mas, sim, gente da minha geração, em cujos olhos pulsava entusiasmo.
A idéia de que educar todo mundo não dá certo não é minha. E a referência aos jovens tem uma razão de ser. Presumo que se estavam ali é porque algum interesse tinham. Mais do que isso: quem quer que leia os textos da revista — muitos dos quais, como também assinalou o Reinaldo Azevedo, de autores com menos de 30 anos — há de perceber que há segurança no que está sendo dito, o que evidencia uma boa dose de dedicação. Admitam ou não, Olavo de Carvalho contribui, sim, para a formação de uma nova postura intelectual no Brasil.

O que o texto do Perissé falava sobre a revista? Bem, nada. Apenas a especulação de que Dicta&Contradicta era uma revista da Obra. Ora, faça-me o favor! Sendo da Obra ou não, ela continua valendo o que vale. Quem quiser julgar por si mesmo que a leia! Não sei por que diabos insistem em reduzir a tarefa da inteligência ao serviço de um colocador de etiquetas. Aí, basta repetir os chavões, isto é, ler a etiqueta e fazer pose de grande conhecedor do assunto: Olavete, facista, de direita! E pronto: serviço concluído!

Gabriel Perissé nunca me pareceu leviano. O que acaba por sugerir que tal texto tenha alguma motivação que não ficou muito evidente... Vai saber...