quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Vida intelectual sob a ditadura



Por Andrei Pleşu[1]
Traduzido por William C. Cruz[2]

Em 1992, já no final do semestre que passamos juntos no Instituto de Estudos Avançados em Berlim, Bruce Ackerman, professor de direito na Universidade de Yale, perguntou-me, com uma espécie de perplexidade inocente, como sobrevivi intelectualmente num país comunista, durante 45 anos de regime totalitário. A pergunta era apenas o efeito superficial de perplexidades mais profundas e cheias de nuanças. Ela abriu um grande campo a outras questões subjacentes, algumas das quais surgiam de um legítimo espanto de senso comum, outras de uma inevitável falta de familiaridade com o tipo de sociedade nascida no Leste Europeu, sob a ocupação russa, depois da Segunda Guerra Mundial. Bruce queria saber como foi possível conciliar a liberdade constitutiva do espírito com a agressividade de uma ideologia inflexível, como alguém pôde se tornar um intelectual competitivo num contexto que ressistematizou toda a cultura do mundo segundo os critérios da luta de classes e que propôs tabus em vez de modelos; em outras palavras, ele queria saber como alguém podia agir de maneira normal num ambiente rigorosamente anormal como o de uma ditadura comunista. Até certo ponto, a pergunta de Bruce deixou-me lisonjeado. Significava que eu não tinha atendido às suas expectativas sombrias: eu não era desarticulado, tinha lido outros escritores além de Marx e Engels, talvez fosse mais cosmopolita que estreitamente tribal e podia ser aceito como um interlocutor plausível numa discussão. 

Devo confessar que eu mesmo partilho da perplexidade de Bruce. E minha perplexidade só aumenta quando, para além do meu caso em particular, levamos em consideração o desempenho geral do Leste Europeu. Como se podem explicar – contra o pano de fundo da censura stalinista, do Gulag, da vigilância autoritária incessante – os filmes russos, a música russa, Anna Akhmatova, Boris Pasternak, Vasily Grossmann ou Andrey Platonov? Como se podem explicar os filmes tchecos dos anos 1960, os filmes húngaros dos anos 1970, Roman Polanski, Milos Forman ou Andrzej Wajda, os matemáticos poloneses ou, se me permitem acrescentar, a poesia romena? E, em geral, como é possível que um sistema de ensino hiperideológico e um espaço cultural cujo eixo é a interdição produzam – não sempre, mas com mais frequência do que era de se esperar – tipos humanos que, uma vez fora do sistema, deixam uma impressão mais que honrosa? Aqui só serei capaz de esboçar brevemente uma resposta, uma coleção de sugestões que podem abrir a discussão, mas não esgotá-la.


[Cultura como necessidade vital] 


Uma forma de resolver este problema seria declarar – como costumava fazer meu professor de filosofia Constantin Noica, a quem devo retomar mais adiante – que “para a vida intelectual, condições ruins são boas e condições boas são ruins”. Aparentemente tratava-se de uma declaração cínica cuja intenção era, na verdade, preparar-nos mentalmente para a máxima valorização do mínimo e prevenir-nos da paralisia mental que a pobreza dos meios disponíveis e o dürftige Zeit [tempo de pobreza] podiam ter provocado. O escritor da Alemanha Oriental Stefan Heym, de modo semelhante, se refere ao efeito potencialmente desafiador das condições desfavoráveis quando diz: 
Como escritor no Ocidente, pode-se escrever praticamente qualquer coisa que se queira, não faz nenhuma diferença, ninguém dá a mínima. Claro, a obra está sendo lida, as pessoas podem entreter-se, mas há muito pouco efeito político. Deste lado do mundo é completamente diferente. O escritor tem mais peso; é por isso que há censura, porque sua palavra tem importância e porque os políticos devem levar a sério o que ele escreve. Portanto, é muito mais divertido trabalhar nesta parte do mundo chamada socialista.[3]
Do meu ponto de vista, o tom de Stefan Heym é displicente demais, e suas afirmações têm uma linearidade contestável. Tomando um dos comentários de Jacques Rupnik como ponto de partida, podemos perguntar se “temos censura porque a palavra do escritor tem mais peso ou se ela tem mais peso por causa da censura”.[4] E, neste caso, as lutas com a censura nem sempre são “divertidas”. Todavia, está claro que muitos dos limites impostos pelo estado totalitário se transformaram numa conflagração. A existência da censura levou à elaboração de subtextos engenhosos, alusões e camuflagens, técnicas praticadas com grande virtuosismo pelos escritores e assimiladas rapidamente pela massa de leitores. Os obstáculos – a interdição a certo conjunto de ideias e métodos típicos do espírito da época (como o estruturalismo e a psicanálise), rotulados pela crítica marxista como “formalista”, “reacionária” e “burguesa”– intensificaram a curiosidade intelectual e deram a transgressões mais ou menos conspiratórias o prestígio do risco político, o charme das opções não convencionais. Ser um estruturalista tornou-se excitante, ser um criptoestruturalista – isto é, passear furtivamente entre as linhas, princípios e procedimentos de tipo estruturalista – tornou-se romântico. O que num país normal é lido naturalmente ou com diligência burocrática, num país totalitário é lido com uma paixão tão intensa e tão transfiguradora quanto inútil. Para o intelectual do leste europeu, diz Gabriel Liiceanu, um dos mais notáveis representantes desta categoria, cultura não é o “ritmo natural da respiração espiritual”; é “oxigênio roubado”, “clandestinamente armazenado”, “uma variante da sobrevivência”.[5] Carregada de tais conotações, a vida intelectual sob a ditadura tem um aspecto dramático, inflamável, capaz de mobilizar todo o ser dos protagonistas, seus últimos recursos. A necessidade de cultura não é nutrida, nessas circunstâncias, somente pelos sabores gratuitos ou pela vertigem desinteressada do conhecimento e da criatividade. A necessidade de cultura brota de um instinto primário de sobrevivência e, ao mesmo tempo, da exigência de “salvação” individual num ambiente interessado apenas em soluções coletivistas. Alguém pode supor que essa exigência somente podia existir no pequeno círculo de uma elite. Na verdade, ela abarcava, por incrível que pareça, grandes grupos sociais: as pessoas se acostumaram a ficar em filas à espera de livros com a mesma paciência que ficavam à espera de comida; Platão e Heidegger eram vendidos às dezenas de milhares de cópias e, quando se esgotavam muito rapidamente, eram vendidos no mercado negro junto com manteiga, farinha e carne. Obviamente, é pouco provável que houvesse quarenta e dois mil heideggerianos na Romênia (essa era a tiragem de Holzwege[6]). O fenômeno indica antes certa fetichização dos livros e da cultura em geral, uma emulação intelectual provocada pelo fascínio da clandestinidade. 

Assim, podemos dizer que a vida intelectual sob a ditadura era possível porque, de modo paradoxal, era potencialmente impossível. Em outras palavras, a possibilidade reduzida de uma vida intelectual normal habilita sua força irruptiva, sua capacidade de tirar proveito de todas as falhas do sistema, que são enormes. 

[A imperfeição do mal] 


Um segundo conjunto de considerações deve levar-nos longe, até o nebuloso problema do mal. Aqueles que passaram pela experiência de um mal imanente (a guerra, uma doença que ameaça a vida, diferentes variantes do universo carcerário) sabem que mesmo em sua encarnação mais bárbara, o mal não pode ter uma textura homogênea e ser perfeitamente compacto. Ontologicamente – e teologicamente – o mal é imperfeito, o que quer dizer que sempre deixa um “espaço para o jogo”, uma chance de manobra, para aqueles sob sua influência. Mesmo o pior dos mundos é – eu diria – cosmótico; isso é, ilustra uma ordem na qual todos os ingredientes do mundo normal estão presentes. Qualquer mundo tem os atributos da totalidade. Nessa totalidade naturalmente surgem infinitas variantes de dose, mas o importante é que a “receita” é completa: somente a proporção, a distribuição interna das quantidades, está errada. Se o mundo comunista tivesse sido um mundo de mal consistente, os numerosos mecanismos de sobrevivência concretizados em performances artísticas e científicas como aquelas mencionadas acima nunca teriam acontecido dentro de suas fronteiras. 

Quando falamos de vida intelectual sob uma ditadura, devemos evitar os excessos do espírito geométrico, as simplificações apocalípticas e os chiliques sentimentais. A ideia – difundida no ocidente e que até hoje afeta a imagem dos países do Leste Europeu – de que sob a ditadura as pessoas só pensavam à luz do materialismo dialético, só pintavam em honra àqueles que estavam no poder, só compunham odes propagandísticas e só escreviam romances e poemas conformes ao realismo socialista corresponde apenas a alguns episódios da experiência do Leste Europeu e, mesmo assim, somente ao estrato oficial desses episódios. Sob o comunismo – no fronte ou nas prisões – também havia, simultaneamente ao terror, a experiência do amor, da esperança e da livre reflexão. E também havia o humor, que por si só se tornou um mecanismo de sobrevivência. “A Mente Cativa” – para evocar a expressão de Czeslaw Milosz, de 1952[7] – ainda é mente, e não necessariamente uma mente estúpida. O diário da prisão de Nicolae Steinhardt – um dos mais notáveis e fascinantes escritores romenos – se chama O Diário da Felicidade.[8] Naturalmente, a felicidade possível na prisão é diferente da felicidade bucólica, mas ainda é uma forma de felicidade, simultânea e, às vezes, consubstancial com a tragédia das circunstâncias. Quando digo isso, não quero minimizar de maneira alguma as atrocidades do totalitarismo comunista, absolver a ditadura em sua desumanidade essencial. Não digo que o mal é bom, mas simplesmente que é, como já disse, imperfeito – e que um inferno terreno sem horizonte é tão improvável quanto um paraíso terreno sem mácula. 

[A arte de sobreviver]


Gostaria de acrescentar à imperfeição do mal também a estritamente necessária condição para a adaptação ao mal, com seus inevitáveis riscos e benefícios. A vida intelectual sob a ditadura era possível porque, de uma maneira ou de outra, os intelectuais se tinham adaptado às condições da ditadura. A perspectiva de uma mudança de regime parecia – até o último minuto – quase inexistente. Como resultado, todos estávamos preparados para uma longa corrida, praticamente interminável. Resignação, sublimação das insatisfações, esperteza conjuntural, melancolia e humor – estas eram nossa tábua de salvação. Mihai Botez, que em 1988 se tornou refugiado político nos EUA (hoje é embaixador da Romênia nos EUA), ofereceu um claro resumo da situação:

Às vezes se diz que uma vida intelectual sob um regime comunista sempre será uma escolha entre ser um cortesão ou um dissidente. Esta é uma simplificação excessiva. Aceitar o contrato social comunista não significa automaticamente tornar-se um cortesão – muitos tecnocratas do Leste Europeu e até mesmo alguns “culturocratas” o provam. Porque há uma triste mas verdadeira “arte de sobreviver” – dignificada, eu acrescentaria – sob uma ditadura comunista, que combina submissão calculada, crítica autolimitada, manutenção tática de certa discrição e uso inteligente das oportunidades. Claro, para muitos intelectuais ocidentais, tais estratégias parecem estranhas, quando não repulsivas. Em princípio, estou pronto para concordar com eles, acrescentando o meu triste desejo de que nunca sejam obrigados a aprender tal arte.[9]

[Arbitrariedade desnorteadora] 


Um aspecto pouco analisado do mal imperfeito característico da ditadura é o componente da arbitrariedade. Como regra, associamos ditaduras a uma atmosfera de necessidade histérica, de absoluto rigor. De fato, as ditaduras comunistas, especialmente, se distinguem pelos surpreendentes interstícios em que as regras são suspensas. A lei pode repentinamente tornar-se frouxa, sem nenhuma razão aparente. Seja resultado de um capricho da liderança, de conflitos internos na alta cúpula seja de estratégias políticas obscuras ao comum dos mortais, a violação da norma totalitária desempenha uma parte importante na configuração da vida intelectual sob a ditadura. À primeira vista, a arbitrariedade parece apenas um enfraquecimento da rede funcional do poder. Na verdade, ela o consolida, ao somar um coeficiente confuso de imprevisibilidade. Este é o caso, por exemplo, de fulano de tal, um dissidente cujos telefonemas a amigos são proibidos, enquanto ao mesmo tempo permitem-lhe que dê longas entrevistas, também por telefone, a estações de rádio “hostis”, como a Rádio Europa Livre ou a Voz da América. Ou, num país de ateísmo militante, permitem que certo poeta publique um volume de poesia religiosa. Segundo a mesma “estratégia”, num país com uma das forças políticas mais severas, pode aparecer, para surpresa de todos, um romance cheio de passagens que são nitidamente críticas à Securitate. Tais exceções ocorrem para manter, no cenário cultural, uma atmosfera de confusão e insegurança muito valiosa para a nomenklatura. De qualquer forma, essa estranha mistura de intransigência e caos, de rigidez e dissolução, era típica do Leste Europeu e especialmente no Comunismo Sul-Europeu. 

E como se explicam – embora numa ditadura nem tudo possa ser explicado razoavelmente – os desvios da regra do autoritarismo absoluto a que nos referimos? Como surge um momento de arbitrariedade num mundo saturado de abuso normativo? Tanto quanto se pode explicar, precisamos de alguns elementos históricos.

[A evolução do comunismo romeno]


A evolução do comunismo romeno, como a evolução, com nuanças específicas, de todo o bloco político do Leste Europeu, passou por alguns estágios durante os quais houve fraturas com consequências radicais no plano cultural. Nicolae Ceauşescu, que chegou ao poder em meados dos anos 1960, decidiu suspender o modelo soviético e adotou estrondosamente o seu próprio. À russificação brutal do primeiro período comunista (em que o único marco ideológico era Andrei Zhdanov)[10] seguiu-se seu oposto, uma forma de nacionalismo que realizou mudanças no critério da censura: a tradição local, particularmente aquela rotulada como “progressista”, tornou-se mais importante do que qualquer filosofia tomada de empréstimo e, no limite, do que o próprio marxismo. A história foi reescrita mais uma vez (pela milionésima vez) a fim de criar, para o sistema e para o líder, uma legitimidade milenar autóctone, um pedigree nobre e antigo. Autores proibidos nos anos 1950 foram reabilitados nos anos 1960, e intelectuais que estavam na prisão até 1964 foram reintroduzidos na vida pública, de modo que os contornos da vida intelectual e acadêmica passaram por uma maciça reestruturação. Os tabus mudaram: as vacas sagradas já não eram mais os clássicos soviéticos e marxistas, mas a pátria e o presidente. Enquanto os Soviéticos tinham gostado da tradução de Immanuel Kant, de Sigmund Freud e de Gottlob Frege, a pátria e o presidente já não se importavam com tais heresias marginais. Os intelectuais agora tinham o direito de jogar o jogo das contas de vidro à medida que não ameaçassem, com gestos ou declaração expressa, o avanço do “socialismo desenvolvido multilateralmente”. 

Depois de 1971, deu-se uma nova reestalinização, mas de um tipo “peculiar”, uma reestalinização “patriótica”, organizada em torno de uma megalomania autóctone. A liberalização ideológica do fim dos anos 1960 continuou, portanto, a ter efeitos surpreendentes. Além dos autores mencionados acima, George Berkeley, Friedrich Schelling, Rudolf Carnap, Karl Popper (claro, não A Sociedade Aberta,[11] mas Logik der Forschung[12]), e outros foram traduzidos. O que podia ser traduzido também podia ser ensinado nas universidades e citado em artigos científicos e até na imprensa. Também surgiram textos patrísticos essenciais, se bem que em edições confidenciais e a preços proibitivos, no Instituto Bíblico de Bucareste. A função e o modo de agir da censura mudaram. E isso aconteceu não só na Romênia, mas em todos os países da Europa Comunista. Assim György Konrád descreve o processo: “Sob Stálin, a censura era ao mesmo tempo afirmativa e agressiva. Hoje, é negativa e defensiva. Antes, prescrevia o que dizer. Agora, determina o que não dizer”. “Da mesma forma” – acrescenta Jacques Rupnik –, “tem sido feita a transição do terror das massas para uma ‘violência civilizada’; os totalitarismos, agora, preferem a autocensura internalizada à censura institucionalizada”.[13]

Mas essa reformulação dos objetivos e estratégias do poder nem sempre explica o caráter arbitrário, ao mesmo tempo desnorteador e redentor, presente na “receita” da ditadura. Às vezes, a pura ignorância dos responsáveis pela ideologia desempenha um papel importante. Quando, no início dos anos 1980, o livro de Mircea Eliade Aspects du myth[14] foi publicado por uma editora de Bucareste, o ministro da cultura da época, informado por um simpatizante acerca da não conformidade ideológica do texto, pediu que o autor fosse imediatamente trazido à sua presença, junto com o secretário do partido da instituição em que o autor trabalhava. Um novo boato começou a circular entre os escritores: não devemos temer o ministro da cultura, mas a cultura do ministro.[15] Mas, além da ignorância, a astúcia dos culturniks também devia ser temida. Tomemos o caso de um romance que, embora se referisse afrontosamente à polícia política, também foi publicado e distribuído. Tal romance, deste modo, provava a inexistência da censura e a liberalidade do governo. Por outro lado, uma atmosfera de desconfiança começaria a rondar seu autor. Outros escritores, de cujas obras páginas de longe mais inocentes tinham sido suprimidas, não conseguiam entender como a severa “sinceridade” de seu colega tinha sido aceita. Suspeitariam de um acordo obscuro, traiçoeiro, uma concessão secreta, uma traição. Garantia-se assim um conveniente núcleo de discórdia com essa manobra. E se alguém começasse a fazer perguntas desconfortáveis quanto aos excessos da polícia que o romance apresentava, a resposta já estava pronta: na verdade, a polícia retratada no romance era a dos anos 1950, do stalinismo pré-Ceauşescu ou de sua sobrevida acidental. 

Em outros momentos, a aparição de um texto “corajoso” podia ser explicada por um acesso passageiro de magnanimidade da parte de um “ativista” superior. Lisonjeado por sua própria atitude bem disposta perante “artistas”, ele anestesiava sua consciência ao acrescentar uma boa ação às incontáveis desgraças pelas quais era responsável em todo o tempo. Há também o caso em que um livro ou um autor de repente tem autorização de ser publicado simplesmente porque o responsável pela interdição desapareceu. Heidegger só pôde finalmente ser publicado quando um dos guardiães mais rigorosos da pureza ideológica desertou e se tornou professor de estética marxista no ocidente. 

Eis quão complicada pode ser a “arqueologia” da arbitrariedade. Às vezes, trata-se de uma arbitrariedade encenada, uma dissimulação arbitrária para manobras ocultas, mas, em outros momentos, era arbitrariedade pura, resultante de um gosto das Bálcãs por aproximação e o beau geste

[A redenção da marginalidade] 


A técnica da sobrevivência intelectual sob a ditadura não era só uma técnica para fazer o melhor com os meios precários, as imperfeições do mal e os meandros da arbitrariedade. Também repousava sobre um exercício bem conduzido de marginalidade. Normalmente, esquecemo-nos de que todos os países comunistas, com exceção da Rússia e da China, eram países pequenos, inevitavelmente marcados pela obsessão do isolamento, pela distância de um “centro”, pela insignificância histórica. “O orgulho de uma pessoa nascida numa cultura pequena sempre está ferido”, diz E. M. Cioran num livro publicado antes de partir para a França.[16] Este orgulho, que com frequência toma a forma de um complexo de inferioridade, favorece, por um lado, uma tendência masoquista à autoanulação, à resignação diante do que se sente como uma desigualdade histórica irreparável; por outro lado, favorece um senso de realização compensador, de autoafirmação apesar das condições desfavoráveis. O intelectual que pertence a uma pequena cultura sempre se comporta de maneira demonstrativa: ele tem de mostrar que é igual a seus colegas pertencentes às grandes culturas, que se tem mantido a par da última ideia da moda, que não está deformado por vícios provincianos. Sua diligência é a diligência da exasperação, suas ambições são tão grandes quanto suas frustrações. Este intelectual nunca representa apenas a si mesmo. Ele tem a ideia fixa de que representa seu país, de que é responsável pela imagem que a cultura de seu povo terá por meio dele aos olhos do mundo. Convencido de que é o porta-voz de uma comunidade que tem a infelicidade de estar mal localizada geográfica e espiritualmente, o intelectual que temos em mente mobilizará todos os seus esforços a fim de provar sua capacidade de competir, independentemente das desvantagens de que partiu. Logo, a “normalidade” de sua obra pode ser explicada por seu grande esforço para camuflar a anormalidade da marginalidade, a precariedade de seu treinamento e das ferramentas em sua pátria. 

Uma passagem do diário de Mircea Eliade ilustra bem este ponto. Quando um erudito francês lhe perguntou como ele conseguia sempre dar a impressão de uma exaustiva documentação em sua obra, respondeu:

Uma vez que pertenço a uma cultura menor, na qual o diletantismo e a improvisação são quase inevitáveis, entrei na vida acadêmica cheio de complexos, permanentemente amedrontado por pensar que não poderia dispor de informação “atualizada”. Isso sempre me impediu de enviar um manuscrito para ser publicado antes de ter certeza de que tinha lido quase tudo que já havia sido escrito sobre o assunto.[17]

O medo de “descobrir” coisas que já são bem conhecidas, de repetir observações alheias e, sobretudo, de ignorar um documento fundamental, inexistente nas bibliotecas romenas, são motivações decisivas para a diligência e precisão de intelectuais formados, como Eliade, na periferia dos grandes impérios. 

[O intelectual abnegado]


O que temos de ter em mente, então, é que o funcionamento relativamente normal da vida intelectual sob as condições da marginalidade imposta pela ditadura comunista ocasiona uma experiência de marginalidade que, no caso dos países pequenos, não depende do comunismo, mas o precede. De qualquer forma, a partir desta combinação sui generis de dois tipos de marginalidade, surgiu uma espécie de intelectual que, nas sociedades ocidentais, já há muito saiu de moda e que, provavelmente, está prestes a desaparecer também no Leste Europeu. Eu o chamaria de “intelectual abnegado (noprofit)”, um intelectual que faz seu trabalho sem nenhuma motivação externa, sem nenhuma finalidade palpável. Não delimita sua vocação de acordo com as prioridades do momento, não regula seus esforços sob a pressão de cronogramas fixos, não formula questões de maneira que garantam generosos patrocínios. Sob a influência alucinatória da especulação pura, livre da obsessão de ser competitivo e do ritmo mecânico da promoção acadêmica, este tipo de pesquisador não se integra facilmente na vida institucional. Ele é sua própria instituição. Na pior das hipóteses, ele se perde em brilhantes apresentações retóricas e corre o risco de se tornar um fracasso pitoresco. Mas, se for bem sucedido, seu sucesso é o sucesso da livre investigação, da abordagem pouco convencional, do imprevisto. O intelectual que tenho em mente não tem inibições quanto às fronteiras das disciplinas. Uma vez que aprendeu a sobreviver sem apoio oficial, não se sente responsável perante autoridades externas; sente-se justificado por seus dons e sua eficiência e não tem de prestar contas a respeito de sua “originalidade”. É um economista, mas se interessa por Edmund Husserl e Ludwig Wittgenstein; é um erudito classicista, mas também estuda a economia de mercado nos países pós-comunistas; é um físico muito interessado em literatura mística. Tem um critério e um motivo apenas: curiosidade, a curiositas que Cícero considerava a fonte do conhecimento desinteressado, nulla utilitate obiecta. O estudioso de hoje corre o risco de ser um erudito e deixar de ser curioso. O intelectual abnegado é mais fiel à tradição socrática, segundo a qual a pergunta é mais consistente que a resposta, o caminho é mais certo que o fim.[18]

[Paladinos da oralidade] 


A invocação de Sócrates numa discussão acerca da sobrevivência intelectual sob uma ditadura é significativa. Onde quer que a cultura escrita seja uma empreitada difícil, a oralidade tem um papel essencial a desempenhar: adquire enorme importância como meio privilegiado de comunicação livre, sem censura. Da mesma forma, onde o sistema educacional oficial está sujeito à ideologia desumanizante, a identificação de uma didática autônoma, de um mestre fora do sistema, é essencial. Encontros de pequenos grupos em cafés, parques ou casas de amigos se tornam um substituto – até certo ponto tolerados – da vida acadêmica institucional. Uma história nada convencional do espírito incluiria, dos países ex-comunistas, uma galeria de paladinos da oralidade, sem obra alguma senão a evanescente conversação, improvisação e discussão (retort). Segundo os critérios correntes de uma carreira universitária, seria uma galeria de fracassos. De fato, a fala era um depositório da vitalidade das culturas locais, o fundamento de sua continuidade. Parece-me que, particularmente na Romênia, a euforia da oralidade explica a ausência de uma “literatura de gaveta” ou de samizdat. Tudo era consumido na discreta “ágora” do diálogo, da palavra sem registro, da volatilidade. 

Ironicamente, a prisão política também era um espaço extraordinário para o exercício oral inspirador. Nas celas com muitos prisioneiros, onde quer que o “programa” imposto permitisse, ocorriam palestras e discussões de todo tipo; a memória era refrescada coletivamente, por meio de histórias, recitais e orações. A oralidade se tornou, nessas circunstâncias, uma forma acrobática de sobrevivência espiritual, uma rigorosa disciplina mental que, por sua vez, deu origem a uma geração inteira de “profissionais”. Surgiu um vasto inventário de anedotas, variando estilisticamente entre os sábios paradoxos do Zen Budismo, histórias de tipo chassídico e apotegmas dos Padres do Deserto dos primeiros séculos da Era Cristã. A história tinha criado uma variante da prisão que libertava da história, de suas determinações conjecturais. Nessa prisão, a vida intelectual só podia desenvolver-se fora de qualquer motivação razoável, alimentando-se de sua própria substância. Certa vez, por exemplo, um prisioneiro, filósofo fervoroso, foi ouvido explicando a um encanador estupefato, seu colega de cela, a diferença entre Karl Jaspers e Heidegger. “Que insensatez”, seus colegas lhe disseram mais tarde, “tratar desses assuntos perante uma audiência tão inadequada”. “Essa diferença tinha de ser traçada de uma vez por todas”, respondeu o filósofo. O episódio me faz lembrar uma passagem de Wilhelm Meister, de Goethe, em que um grupo de artistas itinerantes dá um show que tinha sido anunciado, e ninguém o assiste. É uma parábola perfeita da vida intelectual sob a ditadura, porque a única razão para alguém preocupar-se com cultura, para fazer cultura num sistema totalitário, é que esta deve ser feita, independentemente da audiência, das circunstâncias e dos resultados. O risco é, obviamente, uma drástica descontextualização, uma atrofia da necessidade de compromisso público. Mas, sem assumir este risco, a sobrevivência é impossível. 

Consequentemente, como era de se esperar, o modelo de prisões se estendeu a toda grande prisão de qualquer ditadura. E gostaria de acrescentar que os intelectuais mais representativos da minha geração foram o produto dos estágios “formativos” passados perto de ex-prisioneiros. Anistiado depois de 1964, tiveram a oportunidade de se tornarem transmissores de uma tradição de normalidade intelectual que o ambiente em torno tinha perdido. 

Educados antes da Segunda Guerra Mundial na Romênia democrática com boas escolas e bons professores que tinham estudado em grandes universidades da Europa – uma Romênia que tinha possibilitado o surgimento de Constantin Brancuşi, Tristan Ţzara e, mais tarde, da tríade Mircea Eliade, Eugène Ionesco e E. M. Cioran – esses ex-prisioneiros políticos foram, para nós, uma garantia de continuidade. O mundo ao nosso redor só falava da fratura, do “novo” que tinha de afastar “o velho”, do “brilho futuro” do comunismo. Sentíamos mais que tudo a necessidade de uma legitimidade que somente o contato com a geração anterior poderia nos dar. Precisávamos sentir, terapeuticamente, que embora estivéssemos numa “terra desolada”, não éramos criaturas fracas vivendo num deserto. E este sentimento foi consolidado pela presença pedagógica daqueles que haviam estado na prisão. 

Para mim – e para muitos outros – o prisioneiro providencial foi Constantin Noica. Colega de escola e amigo de Eliade, Ionesco e Cioran, Noica escolheu não emigrar – o que para ele significou nove anos de prisão domiciliar e seis de prisão, seguindo-se um julgamento político no qual foi acusado, entre outras pessoas, de incitar jovens a forjar seus documentos de identidade. (A prova apresentada era um comentário sobre a “identidade” que começava com a Fenomenologia do Espírito, de Hegel.) Quando o conheci, ele estava velho e eufórico. De alguma forma, ele tinha se conduzido para integrar harmonicamente o episódio da detenção, alegando que sua prisão acontecera no momento certo, quando suas próprias ideias tinham entrado num círculo vicioso e precisavam de uma infusão vital – pouco importa quão dramática. (Por causa dessas declarações, Cioran o tinha caracterizado, num de seus livros, como um “camuflado na face do mal”, culpado de ter adotado, bem no meio do inferno, o comportamento “de turista”.) Em 1975, a fim de evitar os aborrecimentos da capital, Noica voltou a uma atmosfera de reclusão ao isolar-se num pequeno refúgio na montanha (Păltiniş), “quatro mil pés acima da humanidade”, como gostava de dizer. Lá ele tinha um quarto de 8 metros quadrados numa velha cabana, aquecida por um forno a lenha, e comia numa taberna do guarda-florestal. O isolamento não durou muito, todavia. Gradativamente, muitas pessoas diferentes – jovens, no princípio – sedentos de sabedoria e de um maitre à penser começaram a visitá-lo. A polícia política não podia desprezar tais peregrinações. Podia tolerá-las, até certo ponto, com a condição de que pudesse controlá-las, sempre confirmando sua “inocência”. A polícia exerceu seu controle entrevistando regularmente o ex-prisioneiro e de quando em quando um visitante mais pusilânime. (Após a revolução de 1989, descobrimos que um quarto inteiro dos arquivos da polícia em Sibiu [a cidade mais próxima de Păltiniş] estava repleto de fitas com a gravação das conversas entre o velho filósofo e seus visitantes.)[19] Dentro dos limites impostos por estas precauções, os encontros em Păltiniş continuaram até a morte de Noica, que ocorreu em 1987 devido a uma fratura no quadril. Ele sofrera uma queda enquanto estava atrás de um rato que tentava comer-lhe o iogurte.[20]


[A pedagogia de Constantin Noica][21]


Em que consistia a pedagogia de Noica? Em primeiro lugar, ela exigia certa proficiência técnica. Ele oferecia a qualquer jovem que declarasse amar a filosofia 10 lições introdutórias de grego antigo e os instava a aprender alemão e ler “cem importantes interpretações”. Participei, por exemplo, de seminários sobre Platão (com ênfase especial nos diálogos aporéticos da primeira fase), sobre Hegel e de algumas discussões sobre Plotino e Descartes. Daí seguiu-se uma vívida troca de ideias sobre nossos próprios projetos de pesquisa e sobre alguns dos projetos do professor. Mas, para além de todos os exercícios técnicos (cuja importância é difícil de ser apreendida por quem não tenha uma noção exata da pobreza do contexto), a pedagogia de Noica era uma forma de treinar o espírito para a atividade cultural, desencorajada pela pobreza das condições de vida e de trabalho oferecidas pela sociedade comunista. “Descobrireis que os limites interiores são mais difíceis de transpor do que os exteriores” – era uma de suas fórmulas favoritas. Ou “Não presteis atenção às circunstâncias imediatas. Considerai a história pura meteorologia: não mudeis vosso destino e vossas ideias dependendo do clima. A história precisa de cavalos. Peço-vos que sejais cavalos de corrida”. Quando indagado por que nunca pensou em emigrar, ele elaborava um longo discurso sobre o júbilo do limite assumido, sobre a insuficiência enriquecedora em oposição à plenitude empobrecedora.

Prefiro viver num país onde tudo ainda está por fazer a viver num país em que as grandes aventuras do espírito já foram realizadas. O que eu faria se fosse para a Europa Ocidental? Não encontraria nenhum espaço a menos que dirigisse minha atenção a algum obscuro comentador de Aristóteles, a algum texto apócrifo, a algum fragmento incerto. Aqui posso tranquilamente ocupar-me com o próprio Aristóteles. O tempo do “alexandrinismo” ainda está distante. Regozijemo-nos no frescor do “arcaico” e não esqueçamos – sob a influência de uma deficiência real – a experiência privilegiada do possível.

Não sei se Constantin Noica queria dizer o que disse. Talvez ele só quisesse distrair nossa atenção do drama diário, dar-nos coragem. Se, no entanto, queria dizer o que disse, não tenho tanta certeza de que estava certo. Mas foi extremamente eficiente. Muitos de nós, e eu mesmo, sobrevivemos graças à “obnubilação” que sua maneira de pensar transmitia a nós. Não compreendo muito bem, nem agora, qual é o preço real da sobrevivência, em que medida ela criou distorções mentais e físicas irreversíveis. Às vezes, inclino-me a crer que a resposta certa à pergunta de Bruce Ackerman “Como conseguiste sobreviver sob uma ditatura comunista?” deve ser: “Consegui?”.



[1] Filósofo, ensaísta e crítico de arte romeno. Foi Ministro da Cultura e das Relações Exteriores na Romênia pós-comunista. Em português, por enquanto, a única obra publicada é: Da Alegria no Leste Europeu e na Europa Ocidental e Outros Ensaios. Trad. Elpídio Mário Dantas Fonseca. São Paulo, É Realizações, 2013.
[2] Tradução de William Campos da Cruz. O tradutor agradece vivamente a leitura atenta e as emendas e sugestões feitas por Elpídio Fonseca.
[3] Stefan Heym, apud: Jacques Rupnik, The Other Europe. London, 1988, p. 201.
[4] Rupnik, The Other Europe, 201-02.
[5] Gabriel Liiceanu, Jurnalul de la Păltiniș. 2. Ed. Bucharest, 1991, p. 6. Salvo indicação contrária, todas as traduções são do autor.
[6] Caminhos Interrompidos ou Caminhos de Floresta (1950). (N. T.)
[7] Czeslaw Miłosz, Mente Cativa. Trad. Dante Nery. São Paulo, Novo Século, 2010. (N. T.)
[8] Nicolae Steinhardt, O Diário da Felicidade. Trad. Elpídio Mário Dantas Fonseca. São Paulo, É Realizações, 2009. (N. T.)
[9] Mihai Botez, Intelectualii din Europa de Est. Bucharest, 1993, p. 52-42.
[10] Andrei Aleksandrovich Zhdanov (1896-1948), líder do partido soviético e homem de estado que exerceu importantes funções na nomenklatura stanilista, contribuiu para a criação do Cominform, e foi um zeloso defensor da ideologia comunista ortodoxa.
[11] Karl Popper, A sociedade aberta e seus inimigos (2 volumes). São Paulo, EDUSP, 1974.
[12] Idem, A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix, 1993. (N. T.)
[13] György Konrád, apud: Rupnik, The Other Europe, p. 238.
[14] Mircea Eliade, Aspectos Do Mito. Lisboa, Edições 70, 1989.
[15] O efeito cômico desta passagem se deve ao fato de Eliade estar exilado na França desde 1945.
[16] E. M. Cioran, Schimbarea la faţă a României [A transfiguração da Romênia]. Bucharest, 1936, p. 33.
[17] Mircea Eliade, Fragments d’um jornal, vol. 1. Paris, 1973, p. 13.
[18] Como sabemos, o destino europeu da “curiosidade” é bastante complexo. O cristianismo condenou o excesso de curiosidade como um vício, a cupiditas noscendi que mina os fundamentos da fé junto com a superbia e a concupiscentia. A curiosidade pode, de fato, ser uma indiscrição e uma blasfêmia. E, ainda assim, o livre exercício da curiosidade – com todos os seus riscos – era o eixo do espírito grego (Sêneca invocava a curiosidade como um Graecus morbus), e a Europa, assim a velha como a nova, seriam inimagináveis sem o Urphänomen da Grécia.
[19] Essa história é contada também por Olavo de Carvalho, na apresentação à edição brasileira de Constantin Noica, As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo. Trad. Fernando Klabin e Elena Sburlea. Rio de Janeiro, Best Bolso, 2011, p. 10. Outra obra de Constantin Noica publicada no Brasil é Diário Filosófico. Trad. Elpídio Mário Dantas Fonseca. São Paulo, É Realizações, 2011.
[20] Em O Diário de Păltiniş, Liiceanu não sabe se atribui esta passagem a um delírio de Noica ou à realidade que este estava vivendo.
[21] Um dos relatos mais importantes a respeito da atividade pedagógica de Noica se encontra em Gabriel Liiceanu, O Diário de Păltiniş (que será publicado em breve pela É Realizações.)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Nova edição da Revista Digital Terminal

Abaixo, a nova edição da Revista Digital Terminal. Neste volume, ao lado de textos de G. K. Chesterton, Léon Bloy, Nicolas Gomez Dávila, encontra-se o ensaio A Igreja e o escritor de ficção, de Flannery O'Connor, com tradução minha (p. 57). Espero que gostem!


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Da formação do gosto e compreensão do estilo


Por José Oiticica
In: Manual de Estilo. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1940, p. 8. 
(Nota de advertência redigida em 16 de novembro de 1925.)


Podemos afirmar que, no Brasil, a generalidade dos homens públicos, jornalistas, advogados, médicos, engenheiros, funcionários, historiadores, geógrafos, escrevem mal.

Relatórios, conferências, livros didáticos ou de polêmica, entre nós, surpreendem pelo desmanchado, pela incorreção, pelo excesso, prolixidez ou amontoamento.

Qual o motivo desse desalinho no estilo? Minha observação no magistério, sobretudo nas bancas de preparatórios, me confirma numa causa única: desorientação geral dos professores primários e secundários. Sem terem aprendido nunca a técnica de escrever, cada qual corrige a esmo as composições dos seus alunos, emendando e aconselhando conforme o seu gosto pessoal, muitas vezes mal formado.

Citarei, para ilustrar minha asserção, um caso eloquente.

Tendo assumido minha regência de uma turma na Escola Normal, determinei, para avaliar o adiantamento das alunas, uma composição com elementos descritivos de paisagem e tipo.

Em todos os trabalhos, observei um sem número de velhas chapas, o estilo alambicado e meloso dos falsos românticos, perífrases contínuas e o vago do inexpressivo jeito arcádico, diluído em lirismo à Herculano. Eram os mimosos cantores da floresta saltitando de galho em galho; eram dentes comparados a um colar de finas pérolas, ou o orvalho semelhante a lágrimas da noite.

Tomei uma das composições e fiz-lhe a crítica em aula, mostrando os vícios de tal estilo. A autora, vaidosa de ter sido, no ano anterior, uma das primeiras, declarou-me escrever assim, por assim lhe haver aconselhado o professor. Disse-me textualmente:

–Meu professor me dizia que era necessário florear o estilo. 

Ao que retruquei ser mau conselho e consistir a virtude exatamente no oposto, em fugir, por todos os meios, o estilo floreado.

Essa mesma aluna, meses depois, fazia composições ótimas, algumas admiráveis de precisão, cor local e originalidade. Era um notável temperamento artístico, desaproveitado e transviado pelo mau gosto do professor.

Nas bancas examinadoras tenho lidado com sábios colegas, os quais louvam composições insulsas e palavrosas, e nenhum valor dão a algumas excelentes pela simplicidade, concisão e elegância.

Cumpre consignar, efetivamente, o pendor artístico dos rapazes e moças brasileiros. Com alguns preceitos simples e bons modelos podemos leva-los facilmente a escrever bem, suscitar mesmo, não raro, escritores, poetas e poetisas.

Certo disso, resolvi condensar, em regras práticas, muito simples, o essencial do que ensinam os mestres na matéria. Este Manual, fruto de laboriosa seleção, contém as normas fundamentais, apenas, para quem quer escrever satisfatoriamente, com elegância, simplicidade, clareza e vigor. Não visa, de modo algum, e insisto neste ponto, fabricar escritores. Ministra, tão somente, os princípios clássicos, segundo os quais, podem os mais destituídos de veia literária redigir a contento dos leitores. Entretanto, os mesmo gênios necessitam de iniciação. A arte de escrever, como todas as artes, é difícil e a de hoje é resultado de multisseculares aperfeiçoamentos conseguidos por grandes mestres, cujos processos a crítica esmiúça e apura. Supor que o talento natural, por si só, tudo adivinha, e descobre, de salto ou de oitiva, o que gerações de gênios pouco a pouco revelaram, é incorrer no lamentável erro de tantos músicos, pintores, escultores, perdidos para a arte por não quererem conquistá-la de mansinho, nem lhe aprender custosamente a técnica severa.

Para amenizar o texto ou confirmar-lhe a doutrina, valorizei o livro com passos de tratadistas, conselhos de mestres desparzidos sob a forma de leituras.

Aos professores novos advirto não se limitem ao indispensável deste Manual, mas versem as obras dos especialistas até se familiarizarem com todas as variedades de estilo e conseguirem discriminar o bom do mau. Demais, importa, ao corrigirem uma frase ou período, que expliquem ao aluno o motivo, o porquê da correção, dando-lhe a liberdade de aceitar, ou não, a emenda. Só assim lograrão formar-lhe o gosto, criar nele o sentimento de responsabilidade e o esforço de pesquisa, caminho de toda a arte.

Aos meus colegas, tarimbados no ofício, rogo o favor de me apontarem falhas, omissões, descuidos. De tudo me valerei para melhorar este Manual e torná-lo, se possível, guia seguro nas escolas.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

John Bunyan: Um Milton Popular

Por Otto Maria Carpeaux


A influência moral [de John Milton] [...] não aparece nos seus contemporâneos, pelo menos quando se presta atenção apenas aos escritores cultos. Mas, no sentido moral, havia um miltoniano inconsciente entre a gente iletrada: o caldeireiro ambulante John Bunyan é o único escritor de língua inglesa que pode ser comparado com Milton. Bunyan, puritano sectário, serviu no exército do Parlamento, era soldado valente, mas pouco aproveitável, porque gostava de perdoar aos inimigos, para combater com a maior resolução outros inimigos, que apenas existiam nas suas alucinações. O pobre visionário caminhava pelo país, consertando caldeiras e pregando sermões aos camponeses. A Igreja, restaurada pela monarquia, não podia tolerar essa concorrência ilegal, e Bunyan passou metade da vida nas prisões, pregando aos companheiros de desgraça. As visões continuaram: nem na prisão o deixaram em paz os seus inimigos, que sempre o acompanharam, porque eram os seus próprios pecados personificados. Essas experiências, descreveu-as numa autobiografia espiritual, Grace Abounding to the Chief of Sinners; e depois resolveu transformar a narração em uma espécie de romance ou epopeia em prosa, The Pilgrim’s Progress.
“As I walked through the wilderness of this World”,
assim começa Bunyan; e logo nos ocorre outro começo: “Nel mezzo del cammin di nostra vita”. Assim como o outro mundo de Dante é a imagem fantástica da Itália do século XIII, assim o mundo de Christian, herói do Pilgrim’s Progress, é uma imagem fantástica da Inglaterra do século XVII, povoada de personagens alegóricas que acompanham, perturbando ou ajudando, o pobre Christian na sua viagem, da City of Destruction para Zion, a City of God. Passa pelos lugares mais estranhos, o Desfiladeiro do Desespero, a Aldeia da Moral, a Colina da Dificuldade, o Vale da Humilhação, onde tem de lutar contra o terrível Apollyon; é preso na Feira das Vaidades (a “Vanity Fair” que Thackeray tomou como título de romance), atravessa o Rio da Morte, e chega enfim à Cidade Santa. Quanto mais pormenorizado for o resumo do livro, tanto mais infantil parecerá. Mas a leitura causa outra impressão: todas aquelas paisagens fantásticas respiram a atmosfera terrificante do “dejà vu” nos sonhos, todas aquelas personagens alegóricas estão tão vivas que acreditamos tê-las conhecido pessoalmente; a leitura torna-se pesadelo, como se fosse o maior thriller entre os romances policiais; e o fim vitorioso é um alívio enorme, como uma verdadeira salvação. Tudo isso está narrado numa linguagem popular, na qual abundam metáforas militares – reminiscências do serviço no exército – e sobretudo as citações e alusões bíblicas. Organizou-se uma estatística, segundo a qual a maior parte do texto do Pilgrim’s Progress é literalmente tomada da Bíblia, a leitura principal do caldeireiro. Com efeito, The Pilgrim’s Progress é a segunda Bíblia das nações anglo-saxônicas, o Paradise Lost do homem do povo. Mas não só dele. “The Pilgrim’s Progress”, diz Macaulay “is perhaps the only book about which, after the lapse of hundred years, the educated minority has come over to the opinion of the common people.” [O Peregrino é, talvez, o único livro sobre o qual, após um período de cem anos, a minoria educada se rendeu à opinião das pessoas comuns.]

O espírito inglês possui uma capacidade especial de se exprimir em alegorias. Abundam em toda a parte na literatura inglesa, e uma das maiores obras dessa literatura, a Fairie Queen, de Spenser, é alegoria elaboradíssima. The Pilgrim’s Progress é, porém, a maior obra alegórica da literatura inglesa. Parece mera leitura popular, feita sem arte alguma; e Bunyan não era, evidentemente, artista, ou então, quando muito, seria artista contra a sua vontade que era só pregar e pregar, assustar e consolar os pecadores. Na sua memória intervieram, além da Bíblia, reminiscências de outras leituras. As semelhanças com Piers the Plowman, outra obra-prima alegórica da literatura inglesa, e com os “Morality Plays”, são casuais, porque Bunyan não os conheceu; mas conheceu alguns tratadinhos místicos, e conheceu edições populares de velhos romances de cavalaria, talvez o próprio Malory. Daí certas analogias assombrosas com os Exercitia spiritualia, de são Ignácio de Loyola, que fora também leitor de romances de cavalaria. Daí a maneira vivíssima de contar aventuras romanescas. Bunyan é romancista e, em certo sentido, precursor do romance moderno: em outra obra de Bunyan, The Life and Death of Mr. Badman, o caminho de perdição de um pecador é descrito com o realismo de um Defoe e com as minúcias psicológicas de Samuel Richardson. The Pilgrim’s Progress é um romance arcaico: o que seria definição da epopeia. Bunyan seria o Milton do povo.

Mas é o The Pilgrim’s Progress realmente uma epopeia? A obra revela, na apresentação das cenas e na caracterização das personagens, as mesmas qualidades dramáticas do Paradise Lost. Bernard Shaw afirmou ocasionalmente que Bunyan era um grande dramaturgo, afastado do teatro pelo puritanismo, e que uma versão do The Pilgrim’s Progress para o teatro revelaria força dramática maior do que a de Shakespeare. O paradoxo chega a exprimir uma verdade histórica. Em Bunyan, o puritanismo encontrou a aproximação entre a sua literatura e o teatro, o caminho que Milton não acertou, por causa dos preconceitos classicistas da sua erudição literária, enquanto que Bunyan era homem do povo. The Pilgrim’s Progress não é teatro; mas é a transformação e continuação histórica do teatro elisabetano. Em 1642, fecharam-se os teatros, e em 1661 só se reabriram para o gosto aristocrático. No The Pilgrim’s Progress, o povo inglês encontrou de novo as angústias que o tinham comovido diante das peças de Shakespeare e Webster; encontrou personagens alegóricas, mas tão vivas e imortais como Hamlet. E mais uma coisa que Shakespeare não fora capaz de criar: um enredo inventado, que na imaginação do leitor se torna verdade vivida, acompanhando-o e guiando-o pela vida afora. Bunyan é, segundo a expressão de um crítico moderno, um criador de mitos.

Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental. São Paulo, Leya,  2012, p. 878.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Mendo Henriques e a filosofia da Consciência

Não é que eu esteja fazendo propaganda gratuita para os outros; tampouco estou divulgando o evento com vistas à autopromoção só porque, enfim, trabalhei nos três volumes da História das Ideias Políticas de Voegelin. Mas o fato é que o evento tem tudo para ser uma oportunidade ímpar para a divulgação das ideias de Eric Voegelin. Mais do que isso: pode ser uma oportunidade de esclarecer dúvidas que se acumulam, uma vez que já há brasileiros que estudam a obra de Voegelin e que talvez sintam falta de informações adicionais ou de uma visão de conjunto de toda a obra voegeliniana. O professor Mendo Henriques pode ser um auxílio e tanto para esses esclarecimentos.

Pois bem, no primeiro dia, o tema é a História das Ideias Políticas. No segundo dia, o escopo da palestra é mais abrangente e tratará da filosofia da consciência, passando por autores como Bernard Lonergan, René Girard, Paul Ricoeur e Kierkegaard.

Por fim, no terceiro dia, a proposta é um pouco mais amena. Mendo Henriques e Nazaré Barros escreveram uma introdução à filosofia com a proposta de ser, digamos, pouco traumática. E o professor Mendo falará da obra. Fica o convite. Para mais informações, clique aqui.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Mais Pleșu no Brasil

FLORIN CIUBOTARU

Por Andrei Pleșu

Biografia

Nasceu em Focșani em 1939, Romênia. Estudou no Instituto de Arts Plastiques "Nicolae e Grigorescu", Bucareste, e pintura e marketing, em 1963.


Florin Ciubotaru pode passar sem vitórias, mas gosta muito de partir para batalhas. Ambicionar píncaros de glória é ser complacentemente burguês; para ele, o valor real está em participar do alvoroço prazeroso dos ataques, ou tramar alguma perigosa emboscada contra fortificações invencíveis. Consequentemente, suas exposições não são de maneira alguma conclusivas e finais, mas tentativas para deixar energias autossuficientes se desenvolverem através de um processo cuja etapa decisiva é difícil prever antecipadamente. Convoca agora um exército de obras para sitiar o cume da tradicionalmente chamada arte do retrato. Embora retratos apareçam copiosamente em todos os estilos, os “experts” geralmente concordam que a genuína arte do retratista apenas raramente prosperou, enquanto que em nossos dias tem sido evidentemente negligenciada. Logo de início, os retratos concentravam-se menos sobre os indivíduos e mais em certas categorias (Faraós do antigo Egito, por exemplo). Além disso, durante o século passado, transformou-se lentamente – em pretexto para aplicação formal. Tivemos períodos interessantes dessa arte. Refiro-me à idade áurea do Império Romano, à Renascença, o século XVII da pintura holandesa e flamenga e algumas décadas do século XIX. Entretanto, por mais auspiciosos que tenham sido esses períodos, a pintura de retratos viu ainda seu prestígio diminuído pelas funções mundanas, em que o pintor ilustrava vidas particulares ou satisfazia as vaidades de famílias abastadas.

Nos tempos modernos, grandes pintores reassumiram a prática dos retratos, revertendo aquela ênfase dada à necessidade de imitação em favor das exigências de interpretação, as quais reavaliaram o tratamento profissional do tema. Mario Prassions vê fisionomias em todos os lugares, “no bolor das paredes, no cascalho das alamedas, no contraste de tons das folhagens, nas lajes de mármore dos edifícios ...” Em outras palavras, o retrato transforma-se de imagem mimética em imagem analógica. Evidencia ainda algo parecido com um rosto, mas insinuando uma semelhança indefinida.

Os “retratos” de Florin Ciubotaru são esses rostos destituídos de qualquer semelhança. A abordagem que faz parece-me mais audaciosa e mais sutil, onde a semelhança não é perdida, mas virtual. Em seus trabalhos, as feições parecem contorcer-se para readquirirem a forma humana. Os artistas modernos dão a impressão de serem incapazes de notar as pessoas ao seu redor. Surpreendentemente, Ciubotaru nada vê, exceto seres humanos. Um Arcimboldo revivido, ele encontra novas maneiras de identificar todos os traços humanos possíveis em toda parte de nosso universo. Seus retratos preparam a futura ascensão da fisionomia humana sob a aparência de montanha, flor, rostos celulares, geológicos, galácticos, feições na forma de um jardim ou carta, figuras aquosas ou aéreas, algumas em erupção como um vulcão, outras com sulcos e saliências como um precipício, cabeças-paisagem com gigantescas órbitas como nos trabalhos de Koninck, rostos minerais e geométricos, natureza morta. A cabeça humana reduzida a eixos principais e seu contorno circular podem facilmente tornar-se a própria configuração do mundo e também o manual mais prático da arte de pintar. Tudo no mundo é um rosto, Ciubotaru parece dizer. De qualquer forma, tudo o que existe anseia por corporificação, da mesma maneira que o losango em algumas composições anseia pela redondez do círculo. Baseada numa simetria fundamental, a face legitimamente representa a máscara orgânica de um código inflexível, quase imperceptível. O homem é apenas a pulsação de uma partícula geométrica: um rigor em florescência, um delicado cristal colorido – o halo de uma lei.


 Na exposição de Florin Ciubotaru não percebemos nenhuma devoção “humanitária” inferior e nenhum antropomorfismo vulgar. Sua visão apela para as antigas fontes, onde o homem age como um espelho miniaturizado do mundo, ao passo que o mundo é apenas uma analogia ampliada do homem. De acordo com esta visão, o universo é um homem gigante, uma grande face (Arikh Anpin da Kabala) do homem terrestre. Cada anatomia é uma cosmologia e, reciprocamente, cada evento cósmico é fisiológico, isto é, pertence à história do homem. Intuitivamente sintonizado com esta tradição, não mais insiste na “expressividade”, “restauração do indivíduo”, “fidelidade” ao modelo ou símiles líricas. Porém, mais apropriadamente, recupera a humanidade do stratum primitivo da realidade, onde objeto e sujeito, e “espírito objetivo” ainda não foram divididos. Há humanidade mais além do homem, diz o artista.

Este amplo escopo foi indubitavelmente alcançado gradativamente. É hábito de Ciubotaru adotar para suas exposições uma disposição honesta e descontraída de todos os estágios, trabalhos terminados juntamente com esboços e modelos de pura premonição. O mesmo acontece aqui: os trabalhos mais recentes estão colocados ao lado das tentativas iniciais, esboços simples e um tanto quanto incertos, mais obviamente resultantes do retrato clássico. Se a exposição em sua totalidade é autêntica e atraente, deve-se isto também à oportunidade dada aos espectadores de compreender o longo caminho percorrido e a gradual depuração conseguida na busca. Mais interessante fica à medida que a mão do pintor aparece segura e ágil mesmo quando a ideia é ainda hesitante. Certamente, o artista é um profissional completo a julgar somente pela rica substância de cores parecendo fibras, pelas tensões das estruturas, campos alternadamente espessos e transparentes e os redemoinhos levemente assimétricos em torno da simetria usualmente bem estável de suas composições. Não estamos certos ainda quanto à escolha de qual fortaleza ele está assediando. Mas o ardor empregado, por si só, já é uma conquista compensadora.

O livro, veneno e antídoto



Discurso de abertura da Feira do Livro de Leipzig, que teve a Romênia como tema principal, em 1998.

No país de onde eu venho, nos anos 1980, quem tivesse uma máquina de escrever era tratado como um criminoso – em potencial. Todo ano era obrigado a copiar uma página do texto de um discurso de Ceauşescu sobre os prazeres da vida sob o regime comunista. O possuidor da máquina devia comparecer diante de uma repartição policial com esta página datilografada, que servia para a imediata identificação dos tipos, e com a própria máquina, para obter a permissão de uso, válida por um ano. Se você não tivesse essa permissão, que lhe conferia o direito de usar a sua própria máquina de escrever, era passível de sanções penais. Esta é uma das muitas possíveis explicações para a inexistência de uma literatura de samisdats [clandestina] na Romênia.

A ironia, a amarga ironia encerrada nesta situação, consistia em que tal absurdo só foi possível devido à autoridade conquistada na Europa por um texto altamente explosivo, um livro extremamente subversivo: O Manifesto do Partido Comunista. O ódio diante de todo e qualquer texto foi incentivado pela idolatria de um determinado texto. O texto ao qual estou me referindo começa com a famosa frase: “Um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo...” Ora, graças ao êxito retumbante deste texto, no mundo comunista tudo se tornou sombrio, fantasmagórico – tudo, menos o próprio fantasma. A cultura tornou-se uma quimera, a propriedade também. O materialismo levou ao desaparecimento da matéria; a ideologia levou à repressão das ideias; o culto à liberdade revolucionária levou à supressão de todas as liberdades. Um punhado de livros de Marx e Engels, Lênin e Stálin, pôs finalmente em questão todo o universo do livro. Dizem que uma mulher de verdade, por sua mera atitude, pela sua presença, neutraliza todas as outras. Mas quando se trata de livros, a situação é, na minha opinião, exatamente a oposta. Um livro legítimo, um livro de verdade, abre o caminho de todos os outros livros. Mas se, pelo contrário, um livro assume o objetivo de se tornar o livro único, o único habitante das bibliotecas e das almas, então este é um livro perigoso. Um livro que contradiz a própria essência do livro.

A partir desse ponto de vista, o comunismo pode ser considerado como o motivo de uma guerra gigantesca e invisível, a guerra do livro de livre escolha contra o livro imposto. Dito de outra forma, sob o comunismo, nós todos fomos testemunhas dos esforços desesperados dos livros para readquirir o seu rosto, para fazer justiça a sua essência. O livro-veneno, o livro envenenador, era obrigado a se apresentar com sinal invertido à sua imagem espelhada, ao livro-salvação, ao livro-salvador.

A nossa presença aqui, nesta renomada Feira do Livro de Leipzig, é justamente a consequência desta disputa, é a história da nossa resistência contra o livro ditatorial, através do livro amistoso, libertador, salvador. Combater o livro com o livro, vencer o livro com o livro... Essa foi a nossa salvação, a nossa ressurreição. O livro bom contra o livro mau. O livro conseguido e lido clandestinamente contra o livro imposto, arbitrariamente prescrito, detestado. O comunismo – como, aliás, toda ditadura – é uma espécie de esquizofrenia do livro. A própria nomenclatura tem uma peculiar relação de amor e ódio para com o livro.

Aquele que mal domina a escrita torna-se chefe – do Partido ou do Estado – e quer aniquilar o intelectual. Antes, porém, ele tenta seduzir os intelectuais, trazê-los para o seu lado, imitá-los. Ele, que quase não sabe ler, quer virar autor, quer ver o seu nome nas lombadas da longuíssima série de volumes de uma Obra Completa.

Os quadros da nomenclatura esforçam-se constantemente em provar a si mesmos e aos outros que podem medir-se com as elites intelectuais. Têm um pavor quase que supersticioso diante da palavra escrita. E, como o livro de propaganda pode exercer influência, fica mais do que claro que também o livro de protesto é eficiente. É por isso que precisa ser introduzida a censura. A censura é, paradoxalmente, um sinal do respeito do ditador diante da palavra e do livro em geral.

A vida cultural sob o domínio das ditaduras caracteriza-se por um significativo encadeamento de atitudes equívocas. Quase ninguém lê os livros obrigatórios. Depois da guerra, os clássicos do marxismo-leninismo foram lidos mais intensamente no Oeste do que no Leste. Pelo contrário, a leitura dos livros proibidos é o prazer arriscado e plenamente degustado de todos, inclusive dos quadros do Partido, que podem se permitir o privilégio de ter acesso a estes livros. Por seu lado, os escritores aperfeiçoam a arte de espreitar a censura – ou de barganhar com ela. Aos censores resta a recôndita satisfação de passar por cima de algumas licenças políticas... e assim, sentem-se no papel de dissidentes.

Também a relação entre proibição e reabilitação caracteriza-se por um dinamismo dificilmente previsível. Autores que ontem eram indefensáveis amanhã serão astros ideológicos – e vice-versa. Mesmo o discurso anti-russo que Ceauşescu pronunciou em 1968 foi incluído em fins da década de 1970 – devido à diligência do aparato – na categoria dos textos “não acessíveis” (textos que ficaram protegidos num fundo secreto). Mas, em fins da década de 1980, Heidegger tornou-se “acessível”. Ninguém menos do que a Editora Política publicou a tradução, com uma tiragem de perto de 40.000 exemplares!

Falei dos livros-veneno e dos livros-salvação. Do jeito como um país, ou uma região inteira do mundo, podem ser assassinados por um livro, e do jeito como a ressurreição é possível através de outros livros. Às vezes, porém, um mesmo livro foi tanto veneno quanto antídoto, tanto perdição quanto salvação. Um livro bom, lido e emprestado de boa fé para outros, podia se transformar em passagem para o inferno para todos os seus leitores. No fim da década de 1950, um comentário manuscrito da Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie dês Geistes), ou uma carta de E. M. Cioran, lida em voz alta a um grupo de amigos, eram elevados à categoria de complô contra a segurança nacional. Os culpados eram presos e condenados rapidamente a longas penas de prisão. A mais inocente das leituras podia, portanto, ter as mais sangrentas consequências.

Na prisão, contudo, a salvação vinha também através dos livros. Através daqueles livros que cada prisioneiro contava sussurrando aos seus companheiros de cela, quando eles não estavam sendo interrogados ou executando trabalhos forçados.

Cabe acrescentar que, na prisão, o livro também podia servir de castigo. Pouco antes de sua soltura, concedia-se aos intelectuais o direito à leitura, com a finalidade de sua “reeducação”. Claro que não era um direito a ler qualquer coisa, mas apenas Marx e Lênin. Após longos anos de abstinência, é claro que tudo era devorado com avidez. Para um filósofo, mesmo que fosse um idealista, a oportunidade de compulsar O Capital prometia ser uma benção. Afinal, tratava-se de um especialista.

Às vezes, porém, este tipo de castigo também dava errado. Um teólogo, ao qual foi ministrado semanalmente um volume das obras completas de Lênin, sofreu um colapso nervoso. Preferiu um prolongamento da pena a mais um volume de Lênin. “É uma loucura”, ele me disse mais tarde, depois que foi solto, “usar milhares e milhares de páginas para dizer uma coisa só...”

Agora, as coisas estão se encaminhando para a normalidade. Não sem a ajuda dos livros. O espírito cidadão – como outrora, durante a Revolução Francesa – é um produto colateral da leitura. É verdade: lemos menos do que antigamente. Surgiram novas tentações, a Internet, por exemplo, e desapareceu a volúpia da leitura às escondidas e da escrita ambígua, que poderia enganar a censura. Além disso, o livro ficou caro. Alguns escritores viraram parlamentares; outros, editores; outro, Ministro das Relações Exteriores.

Mas estamos felizes de esquecer por um instante as nossas dignidades passageiras, assim como as dificuldades deste tempo de transição, as crises, os aumentos de preços e os conluios políticos. Estamos felizes de podermos encontrar os nossos colegas de tudo quanto é lugar aqui, em Leipzig, numa cidade que tem uma posição chave no mercado livreiro europeu desde há três séculos. Em maior medida do que em Estrasburgo, Bruxelas ou Maastricht, em Leipzig a unidade europeia não se apresenta apenas como projeto, como processo, como ambição. Aqui, a unidade europeia é um fato consumado. Os livros sempre estão na dianteira dos homens.

Na proximidade dos livros, nós, que viemos do Leste, nunca chegamos à ideia de que temos de “nos integrar”, de que a Europa deveria estar em algum lugar diferente do que nas nossas bibliotecas, no nosso sangue e no nosso espírito. Agora nos está sendo dito que a realidade não seria exatamente assim. Que haveria uma distância entre nós e a Europa, um pequeno deserto, que temos de atravessar. Nós vamos atravessá-lo, provavelmente por sobre uma ponte de livros.

Antes de encerrar, permitam-me chamar a sua atenção para o fato de que nos estandes da Romênia desta notável feira não há apenas livros propriamente ditos. Também estão os livros invisíveis, os livros não escritos de todos aqueles cujo destino foi, de uma ou outra forma, abolido pela história. Todos aqueles que, como não podiam publicar, perderam a coragem de escrever. Todos aqueles que tiveram que cuidar de sua subsistência executando trabalhos modestos e extenuantes e que não tiveram mais tempo nem forças para as atividades criativas, assim como todos aqueles cujos textos foram confiscados e destruídos. Assim como todos os livros não escritos daqueles que morreram nas prisões antes de poderem dar o que lhes era dado dar.

Permitam-me que dedique a participação romena nesta feira – na qual perambulam sombras impressionantes por entre os livros – a todos aqueles destinos que não se cumpriram e aos seus livros ausentes.



Andrei Pleșu foi o primeiro ministro da Cultura da Romênia pós-comunista, até 1992, ocupando depois o cargo de ministro do Exterior.

O livro, veneno e antídoto. Trad. George Sperber. Revista Humboldt, 1998. Original: André Plesu, Das Buch als Gift und Heilmittel. Inter Nationes, Bonn, 1998. Encontrei este texto num post de 2010, neste blog.