segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Caridade intelectual

Por Ernest Hello
Tradução de William Campos da Cruz (a partir da edição americana)



Sempre que há uma necessidade de caridade material, podem-se encontrar pessoas prontas a ajudar. Da mesma forma, quando há necessidade de ensino das verdades fundamentais da religião às nações imersas na ignorância, invariavelmente alguns heróis se dispõem a devotar a própria vida a essa tarefa heroica. Mas quero falar agora de um tipo de caridade geralmente esquecido – a caridade intelectual. 

O homem tem milhares de necessidades. Ele pode ser definido como uma criatura que tem necessidades. Nem só de pão vive o homem; vive também do dom divino da fala. Alguns homens têm mais necessidades peculiares e excepcionais que outros – necessitam de Luz. Outros ainda precisam que as ideias lhes venham vestidas de palavras nobres. Não só a satisfação do intelecto, mas a própria vida de sua alma (e talvez eu possa acrescentar, de seu corpo) parece depender da Verdade apresentada a ele de tal forma que possa desejá-la, aceitá-la, assimilá-la. Esses homens pertencem a uma categoria especial de pobres, pois têm uma necessidade a mais que a maioria dos homens, uma necessidade que raramente é atendida. São, de fato, pobres, e a caridade que se lhes cabe é a mais rara de todas. O Evangelho fala em muitas passagens dos que têm fome e sede, dando-nos claramente a entender que essas expressões são usadas em seu sentido mais amplo e abrangente. Ter fome e sede de justiça está listado entre as bem-aventuranças. Mas os homens curiosamente parecem dispostos a restringir o sentido da fome e da sede que têm como missão tentar aliviar. Quanto mais material uma necessidade é, mais piedade ela desperta. Por outro lado, quanto mais alto é o tipo da necessidade, menos compaixão se sente por ela. Muitos homens que nem sequer sonhariam deixar alguém morrer de fome, no sentido material do termo, não receiam cometer o mesmo ato num sentido intelectual. 

Ora, a palavra escrita pode ser uma grande caridade, e sua difusão, sempre que é bela e verdadeira, é um dos atos de caridade mais adequados ao nosso tempo. Em muitas almas, a fome e a sede existentes só podem ser saciadas por palavras impressas. Entre esses leitores ávidos e o escritor (que pode ser igualmente ávido) pode estabelecer-se uma corrente de caridade sublime, em que todos dão e todos recebem. O leitor dá uma imensa contribuição ao escritor, e o próprio escritor não sabe o quanto recebe de seu leitor. “Compreender é igualar-se”, diz Raphael. Ninguém pode sobrestimar a importância dos periódicos hoje – seus direitos, deveres, responsabilidades, bem como as obrigações que temos perante eles, pois os periódicos distribuem o pão do intelecto. Com frequência chegam a lugares onde os livros não chegam. Educam a mente dos homens. Sua influência é muito profunda, porque para a maioria das pessoas é imperceptível. Seu ensino é o mais eficaz, porque não demonstra ensinar. Não é pedante. Não assume ares professorais. O Evangelho nos narra as palavras com que a raça humana será julgada no Último Dia. Todos julgamos compreender essas palavras, surpreendentes em sua simplicidade e profundidade. Mas como muitos de nós realmente as compreendemos? 

“Tive fome, e me destes de comer.” 

“Tive fome, e não me destes de comer.” 

Que estranhas formas, ignoradas e insuspeitas, assumirão esta fome e esta sede, no Dia do Juízo! Que surpresa não causarão aos homens! Uma necessidade que foi completamente ignorada, uma necessidade da qual riram sobre a terra, uma necessidade da alma humana que, a olhos desdenhosos e malignos, parece mero capricho de repente se tornará de importância capital. E a Eternidade – Eternidade, com a dupla perspectiva da alegria sem fim e do desespero desesperado – pode depender da resposta que um homem deu a um apelo nos dias de sua vida sobre a terra. 

Chegará a hora em que quem quer que tenha contribuído, positiva ou negativamente, por ação ou por omissão, para satisfazer ou deixar de satisfazer as necessidades de uma alma, será surpreendido pelas consequências do que pode ter-lhe parecido uma decisão desimportante. 

“Senhor”, ele dirá, “quando foi que tiveste sede e não lhe dei de beber?” E então se lembrará e ficará sem resposta. 

Direis, talvez, que esta é uma forma muito elevada de considerar a Imprensa, sua missão, e a nossa obrigação para com ela. 

Sem dúvida. É elevada porque é verdadeira. 

Abra o grande Livro em que se encontram os fundamentos do Direito e as fontes da Luz, e o qual é a primeira palavra que nos salta aos olhos? Caridade. 

Sobretudo nos Evangelhos, a caridade brilha como uma chama diante de nossos olhos. O bom samaritano, o filho pródigo, a ovelha perdida, a moeda perdida, a lista de exemplos não tem fim. Para chegar ao fim, eu teria de citar tudo. Mas, para citar tudo que se refere à caridade nos Evangelhos, tenho de transcrever os quatro evangelhos na íntegra, da primeira à última linha. Pois mesmo onde a caridade não é nominalmente mencionada, ela está subentendida. Os Evangelhos sempre estão tratando de caridade, porque estão sempre tratando de Deus, e São João nos diz que Deus é caridade. 

A caridade está tão profundamente ligada ao mundo do pensamento que é difícil até imaginar um sistema de religião que não a prescreva. Doutrinas errôneas distorcem seu verdadeiro sentido, e até mudam sua natureza; mas ainda que a adotem, a preguem, edificam sobre ela como sobre um fundamento necessário. Diga o que os homens querem, e eles defenderão a caridade. Podem-se imaginar as coisas mais loucas, mais monstruosas, mas não se pode imaginar uma exortação como a seguinte: 

“Queridos filhos, não vos ameis uns aos outros. Que cada um pense apenas em si mesmo. Pobre daquele que ama seu irmão! Pobre daquele que se lembra do pobre!” 

Não! Tais princípios nunca foram ensinados, e nunca serão. Isso, então, é certo: Caridade é o fundamento de toda doutrina que tem alguma relação com a raça humana. Parece evidente, portanto, que todo homem que cuidadosamente ouve sua consciência é, acima de tudo, cuidadoso na prática da caridade. E não só na teoria. E não só na prática. 

Na vida de muitos homens, atentos a sua consciência e desejosos de não feri-la, a caridade, que ocupa o primeiro lugar na teoria, ocupa o último na prática. Este fenômeno é tão extraordinário que me parece necessário declará-lo com toda clareza, pois, para curar um mal, temos primeiro de encará-lo. 

Todo homem que se esforça para obedecer à consciência é muito cuidadoso, e algumas vezes muito escrupuloso, em certos pontos de moralidade e conduta. Mas seu cuidado e sua solicitude nem sempre alcançam a prática da caridade. Faço uma exceção, claro, àqueles que devemos tratar como excepcionais. Os Santos – cujas vidas formam algo como uma continuação prática dos Evangelhos, e aqueles que buscam de todo coração seguir nos passos dos Santos – põem a caridade antes de todas as coisas em seu pensamento e em sua vida. Mas não estou falando de Santos aqui, ou daqueles que em algum grau se assemelham a eles. Estou falando de certos homens que estão se esforçando para ser conscienciosos. 

E ainda assim, direis, há uma grande quantidade de obras de caridade atualmente. Muitas coisas são feitas pelos pobres. 

Certamente, muita coisa é feita para os pobres oficiais – para aqueles que são oficialmente rotulados e assistidos como pobres. Aqueles que ocupam no mundo a posição de homens pobres não são esquecidos. 

Mas não estou falando destes. Não estou falando das obras oficiais de caridade. Estou falando da própria caridade. Estou falando da caridade aplicada a todos os tipos de necessidade, e não faço exceção às necessidades da alma. Estou falando daquela caridade profunda, interior, que se pergunta na presença de outra alma, de outra mente: “Quais são suas necessidades? O que posso fazer para ajudar a satisfazê-las?” 

Aqui, por exemplo, está um homem que pensa, que medita, o qual precisa dar aos outros os frutos de sua vida interior. E outros homens precisam receber esses frutos. O que posso fazer pelos homens que têm necessidade de dar? O que posso fazer por aqueles que têm necessidade de receber o que o primeiro deseja dar? Se eu ajudar o homem que está na posição de dar, ajudo ao mesmo tempo o homem que tem necessidade de receber. O benefício é duplo. 

A caridade de que falo é aquela caridade intelectual e inteligente que brota da alma e procura outra alma. Por que esta caridade sublime é negligenciada por muitas pessoas conscienciosas? Porque essas pessoas conscienciosas temem fazer o mal, mas não temem omitir-se de fazer o bem. Temem pecar por ação, mas não temem pecar por omissão. 

Devemos amar de todo o nosso coração, de toda a nossa alma e de todo o nosso entendimento. Não sei se essas pessoas amam de todo o coração e de toda a sua alma, embora possa admitir que sim, se preferirdes. Mas não amam com todo o entendimento. A mente é aquilo que busca, que especula, que discerne. É a espada da caridade. 

É a mente que separa o bom do mau; é a mente que vê a diferença entre um homem e outro. É a mente que examina e explora, que sonda as profundezas ocultas das coisas. Amar com todo o entendimento é acrescentar a justiça à caridade de alguém. Amar com todo o entendimento é perdoar imperfeições supérfluas, e vincular-se à nobreza oculta por trás delas. Amar com o entendimento – com todo o entendimento – é compreender as necessidades da mente do outro, da alma do outro. 

Amar com todo o entendimento é detectar, onde quer que exista, a fome e a sede do intelecto, e correr para aliviá-las. Amar com todo o entendimento é ir em auxílio da mente, onde quer que viva, onde quer que sofra. 

“Bem-aventurado aquele que atende ao pobre e ao necessitado”, diz a Sagrada Escritura. 

Ora, há muitos tipos de pobreza. 

Repito as palavras sagradas: 

“Tive fome, e não me destes de comer.” 

Quem ama com todo o entendimento é aquele que tem sido capaz de sentir as necessidades dos outros. 

Traduzido do inglês por William Campos da Cruz. In: Life, Science and Art: Being Leaves from Ernest Hello. London, R. & T. Washbourne, 1912. Disponível aqui.

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