sexta-feira, 19 de novembro de 2010

UNIVERSIDADE MACKENZIE: EM DEFESA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA

A Universidade Presbiteriana Mackenzie vem recebendo ataques e críticas por um texto alegadamente “homofóbico” veiculado em seu site desde 2007. Nós, de várias denominações cristãs, vimos prestar solidariedade à instituição. Nós nos levantamos contra o uso indiscriminado do termo “homofobia”, que pretende aplicar-se tanto a assassinos, agressores e discriminadores de homossexuais quanto a líderes religiosos cristãos que, à luz da Escritura Sagrada, consideram a homossexualidade um pecado. Ora, nossa liberdade de consciência e de expressão não nos pode ser negada, nem confundida com violência. Consideramos que mencionar pecados para chamar os homens a um arrependimento voluntário é parte integrante do anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. Nenhum discurso de ódio pode se calcar na pregação do amor e da graça de Deus.

Como cristãos, temos o mandato bíblico de oferecer o Evangelho da salvação a todas as pessoas. Jesus Cristo morreu para salvar e reconciliar o ser humano com Deus. Cremos, de acordo com as Escrituras, que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23). Somos pecadores, todos nós. Não existe uma divisão entre “pecadores” e “não-pecadores”. A Bíblia apresenta longas listas de pecado e informa que sem o perdão de Deus o homem está perdido e condenado. Sabemos que são pecado: “prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, rivalidades, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias” (Gálatas 5.19). Em sua interpretação tradicional e histórica, as Escrituras judaico-cristãs tratam da conduta homossexual como um pecado, como demonstram os textos de Levítico 18.22, 1Coríntios 6.9-10, Romanos 1.18-32, entre outros. Se queremos o arrependimento e a conversão do perdido, precisamos nomear também esse pecado. Não desejamos mudança de comportamento por força de lei, mas sim, a conversão do coração. E a conversão do coração não passa por pressão externa, mas pela ação graciosa e persuasiva do Espírito Santo de Deus, que, como ensinou o Senhor Jesus Cristo, convence “do pecado, da justiça e do juízo” (João 16.8).

Queremos assim nos certificar de que a eventual aprovação de leis chamadas anti-homofobia não nos impedirá de estender esse convite livremente a todos, um convite que também pode ser recusado. Não somos a favor de nenhum tipo de lei que proíba a conduta homossexual; da mesma forma, somos contrários a qualquer lei que atente contra um princípio caro à sociedade brasileira: a liberdade de consciência. A Constituição Federal (artigo 5º) assegura que “todos são iguais perante a lei”, “estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença” e “estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. Também nos opomos a qualquer força exterior – intimidação, ameaças, agressões verbais e físicas – que vise à mudança de mentalidades. Não aceitamos que a criminalização da opinião seja um instrumento válido para transformações sociais, pois, além de inconstitucional, fomenta uma indesejável onda de autoritarismo, ferindo as bases da democracia. Assim como não buscamos reprimir a conduta homossexual por esses meios coercivos, não queremos que os mesmos meios sejam utilizados para que deixemos de pregar o que cremos. Queremos manter nossa liberdade de anunciar o arrependimento e o perdão de Deus publicamente. Queremos sustentar nosso direito de abrir instituições de ensino confessionais, que reflitam a cosmovisão cristã. Queremos garantir que a comunidade religiosa possa exprimir-se sobre todos os assuntos importantes para a sociedade.

Manifestamos, portanto, nosso total apoio ao pronunciamento da Igreja Presbiteriana do Brasil publicado no ano de 2007 [LINK http://www.ipb.org.br/noticias/noticia_inteligente.php3?id=808] e reproduzido parcialmente, também em 2007, no site da Universidade Presbiteriana Mackenzie, por seu chanceler, Reverendo Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes. Se ativistas homossexuais pretendem criminalizar a postura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, devem se preparar para confrontar igualmente a Igreja Presbiteriana do Brasil, as igrejas evangélicas de todo o país, a Igreja Católica Apostólica Romana, a Congregação Judaica do Brasil e, em última instância, censurar as próprias Escrituras judaico-cristãs. Indivíduos, grupos religiosos e instituições têm o direito garantido por lei de expressar sua confessionalidade e sua consciência sujeitas à Palavra de Deus. Postamo-nos firmemente para que essa liberdade não nos seja tirada.

Este manifesto é uma criação coletiva com vistas a representar o pensamento cristão brasileiro.
Para ampla divulgação.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Mais Viktor Frankl




Este blogue está moribundo, mas não morto. De tempos em tempos, apareço por aqui e posto alguma coisa. Dessa vez, publico mais uma entrevista do Dr. Viktor Frankl. Nesta, ele fala a respeito do lugar da religião na logoterapia. A tradução e as legendas são minhas. E, por isso, peço desculpas antecipadamente...

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O mundo, a arte e eu



Sou um sujeito tardio. Demorei para andar. Demorei para falar. Demorei para ler, e mais ainda para escrever. Também no amor fui iniciado tardiamente. Lembro-me de que, enquanto os garotos da minha idade já andavam acompanhados e às escondidas, eu brincava ingenuamente com meus “comandos em ação”. Para fazer jus à minha lerdeza, também no mundo das artes minha iniciação foi tardia. Já era adulto quando fui pela primeira vez a uma galeria de artes. E, claro, pouco pude compreender do que se passava ali.
Mas aconteceu um fato curioso. Não demorei nadinha para desviar o olhar dos quadros dependurados e começar a observar o comportamento das pessoas ali. Percebi que havia pessoas que realmente admiravam aquelas figuras disformes, traços aleatórios e desenhos quase infantis. Mas havia também grupos de estudantes – alguns acompanhados de seus professores e outros apenas atônitos, olhando em torno, como quem não vê sentido naquelas imagens.
Um comportamento em particular me chamou a atenção. Os estudantes não olhavam exatamente para as obras. Antes, sua atenção se dividia entre a placa que identificava o autor da obra e seu caderninho de anotações, ávidos que estavam de exibir em sala de aula uma galeria de nomes ilustres. Cá com meus botões, duvido que alguém seja capaz de, com apenas um lance de olhar, guardar na memória a imagem, o nome do artista, o título da obra e o século de sua produção. Por isso disse que nos cadernos havia apenas nomes.
A minha inquietação só crescia. Tentei pegar no ar algumas migalhas de explicação. De um professor, que por dever de ofício explicava a exposição a seus alunos, ouvi falar de “influências clássicas”. Noutro corredor, uma mulher de sotaque francês falava com suas companheiras algo a respeito de “arte conceitual”. Lembro-me também de ouvir coisas como “vanguarda”, “denúncia da hipocrisia burguesa” e “deformidade do mundo moderno”.
Desisti. Desisti de entender o que estavam falando. Desisti de entender o que estava vendo. Desisti de entender o comportamento dos estudantes. Apenas sentei-me relaxadamente e li o folder da exposição distribuído na entrada. Ao abandonar o folder, um dos quadros me chamou para perto de si. Não é que eu quisesse olhar para ele; ele é que me chamou. Tratava-se da imagem de um homem, sozinho, sentado no topo de uma montanha, próximo a uma queda d’água. Era um cenário triste e imponente. Enquanto eu olhava, o quadro ia me dizendo:
– Está vendo a sua real condição? Está vendo a sua pequenez? Está vendo sua limitação? Pouco importa onde você está. Você sempre estará sozinho num mundo hostil. Você pode até fingir que se sente seguro, mas a sua condição é essa, a mais absoluta solidão.
Perplexo com o que ouvi, saí rapidamente e fui embora. E sequer anotei o que ia na placa ao lado do quadro. Ainda penso em voltar lá. Talvez os outros quadros também queiram me dizer alguma coisa. Seja como for, o que ouvi foi suficiente para saber que os quadros têm muito a dizer sobre nós. Mas é necessário entender a língua deles.
Onde se aprende isso?

domingo, 2 de maio de 2010

Cadeia

No capítulo III de Vidas Secas, Graciliano Ramos, com sua mestria, nos faz sentir a latência da alma de Fabiano. A injustiça salta aos olhos, mas tudo o que FAbiano é capaz de fazer é lamentar sua incapacidade de expressar-se:

Ouviu o falatório desconexo do bêbedo, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais - aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?
Se não fosse aquilo ... Nem sabia. O fio da idéia cresceu, engrossou – e partiu-se. Difícil pensar. Vivia tão agarrado aos bichos... Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos. Enfim, contanto ... Seu Tomás daria informações. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu Tomás da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.
...
Fabiano também não sabia falar. As vezes largava nomes arrevesados, por embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse ... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.

Vidas secas

No capítulo VIII de Vidas Secas, os meninos, filhos de fabiano, ficam deslumbrados diante do cenário que contemplavam. E assim segue a cena:

... Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem.

O abandono dos ideais

Por Olavo de Carvalho
Quando as palavras saem da moda, as coisas que elas designam ficam boiando no abismo dos mistérios sem nome; e como tudo o que é misterioso e inexprimível oprime e atemoriza o coração humano com uma sensação de cerceamento e impotência, é natural que a atenção acabe por se desviar desses tópicos nebulosos e constrangedores. Pois o que desaparece do vocabulário logo acaba por desaparecer da consciência: o que não tem nome não é pensável, o que não é pensável não existe — tal é a metafísica dos avestruzes. Só que a coisa desprovida do direito à existência continua a existir numa espécie de extramundo, inominada e inominável, tanto mais ativa quanto mais secreta, tanto mais temível quanto mais envolta nas pompas tenebrosas do nada. A restrição do vocabulário povoa o mundo de temores e presságios. Desprovido da capacidade de nomear, eis o homem devolvido a todos os terrores que ele imaginava primitivos, mas que são uma pura criação da mais avançada e requintada decadência: o barbarismo artificial.

Aqui.

Linguagem e consciência

Em meados de 2008, li pela primeira vez as crônicas de Paulo Rónai. Lembro-me de que, na ocasião, estava estudando um pouco de teoria da tradução para melhor fundamentar intervenções que vinha fazendo em meu trabalho como revisor de textos. Ainda hoje tenho a impressão de que foi uma temeridade entregar a mim a tarefa de fazer o cotejo entre textos traduzidos e seus originais. Assumi tal responsabilidade mais como quem aceita um desafio do que como quem sabe com segurança o que está fazendo.
Durante a graduação em letras, já tinha visto circular os livrinhos de Rónai para o ensino do latim. Aliás, trago em minha memória o lamento de um dos meus professores:
— Vocês estão achando difícil um livrinho que o Rónai escreveu para dar aulas para os alunos da 5ª série!
Alguns ficaram ofendidos; outros ignoraram a fala do professor; eu, bem, eu fiquei com aquilo na cabeça e anos depois é que comecei a me dar conta da dimensão do lamento do meu professor. Li Escola de tradutores, A tradução vivida e somente então, já bastante empolgado com o estilo do autor, conheci o livro Como aprendi português e outras aventuras.
Li-o de um só tiro, com uma empolgação experimentada poucas vezes antes. Supreendi-me com a fluência de seu texto português. Inquietei-me com o fato de um estrangeiro escrever com tamanha naturalidade uma língua que é considerada difícil por boa parte de seus falantes nativos. Em cada página, pude ver um homem que demonstrava uma verdadeira devoção à língua do país que o acolheu em seu tempo de exílio.
E foi justamente neste livro que encontrei a crônica aqui publicada na última semana (Uma geração sem palavras). Envergonhei-me ao lê-la e perceber que sua percepção não só estava correta, como agravada com os anos que se passaram. O texto foi escrito em 1954; desde então — creio que ninguém há de por em dúvida — as coisas só pioraram.
Ruminando esta leitura, comecei a lembrar-me de outros textos que de certa forma versam sobre o mesmo tema. E fiquei pasmo. Não articulei muito bem o que se pode depreender dessas coisas e gostaria apenas de elencá-las, para que outros possam me ajudar nessa reflexão. Os próximos posts serão esses textos. Em breve!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Uma geração sem palavras


Por Paulo Rónai, em 1954
Escritor nas horas vagas, sou professor por vocação e destino. “A quem os deuses odeiam, fazem-no pedagogo”, diz o antigo anexim; assim, pois, dando minhas aulas há tantos anos, talvez esteja expiando algum crime que ignoro, cometido porventura nalguma existência anterior. Apesar disto, não tenho maiores queixas de um ofício que, mantendo-me sempre no meio dos moços, me dá a ilusão de envelhecer menos rapidamente do que aqueles que passam a vida inteira entre adultos solenes e estereotipados.
Outra vantagem da minha profissão principal é fornecer material copioso para a profissão acessória. Se fosse ficcionista, que mina não teria à mão no mundo da adolescência, mina ainda insuficientemente explorada e cheia de tesouros! Mas, como não sou ficcionista, utilizo-me desse cabedal apenas para observação e reflexão; às vezes o aproveito nalgum monólogo inócuo, como este.
Não sei se isto só acontece a mim, mas estou verificando no meu contato diário com a nova geração um fenômeno impressionante e que me parece merecedor de reparo. Devo dizer primeiro que a matéria que mais frequentemente ensino é o latim, essa gata borralheira do currículo, de que todos falam mal. Entretanto, quando ensinado por professores que sabem sorrir, torna-se a disciplina mais atraente. Ela faz reviver o passado da nossa cultura e da nossa língua, constitui um centro de interesse sem igual, um esteio das demais matérias; desenvolve nos jovens cérebros em formação o senso histórico, ensina-lhes o amor ao esforço intelectual – aspectos esses que parecem ter escapado a nossos sôfregos reformadores, que mais uma vez querem matar esta língua morta de sete fôlegos.
Mas não estou aqui desta vez para fazer a apologia do latim, nem para dar palpites de metodologia. Esse preâmbulo foi necessário para melhor explicação do fenômeno que venho observando em minhas aulas com frequência cada vez maior.
Todo professor sabe que existem duas espécies de atenção. Uma é mecânica e aparente: os alunos olham para o mestre, seguem-lhe os gestos e o movimento da boca, ouvem-no, mas a explicação não lhes chega até o cérebro. Se interrogados bruscamente, são capazes de repetir a última frase ouvida, mas não saberiam reproduzir a sequência das ideias. A outra atenção é instintiva e verdadeira: acompanha as sinuosidades da explanação, alegra-se com as dificuldades superadas e, quando bem orientada, explode sob forma de questões e mesmo de interrupções. Em toda aula, até na mais interessante, há um oscilar da atenção ativa para a passiva, e vice-versa. Cabe ao professor perceber quando esta sobrepuja aquela e intervir oportunamente para sustar a sonolência coletiva.
É de minha praxe encorajar os meus alunos a formular perguntas cada vez que não entendem algum ponto da explicação. Chego a recompensar com grau dez certas perguntas inteligentes que me dão sugestões ou me revelam a existência de alguma obscuridade onde tudo me parecia claro. E assim vamos distinguindo os elementos constitutivos de um período, progredindo passo a passo no labirinto da sintaxe e desvendando um a um os mistérios da frase latina.
Agora já está ela toda analisada e traduzida. Por sinal que é até uma oração bastante simples, que se refere ao triste fim de Ícaro, o menino desobediente que voou alto demais. “Sic puerum audacem perire vidimus.” Eliminadas uma a uma as dificuldades da construção, o sentido está claro e líquido: “Assim vimos perecer o menino audaz.” No entanto, em muitos olhos, em vez da chama inteligente da atenção ativa, só percebo a névoa da atenção passiva.
O busílis está na versão portuguesa. Descubro com sincero assombro que as meninas – alunas da 3ª série ginasial – não entendem o verbo perecer, que geralmente confundem com parecer. Poucas têm idéia, por outro lado, da significação exata de audaz. Faz-se mister traduzir mais uma vez a frase já traduzida em vernáculo, desta vez para uma espécie de português básico, a única língua que as minhas alunas entendem.
Várias experiências semelhantes me convenceram de que as minhas gentis alunas – que, entretanto, são, na maioria, inteligentes e esforçadas – não compreendem parte considerável do vocabulário português comum. Assim, noutro trecho latino encontramos patrimonium e elas, com presteza, vertem-no por patrimônio. Que felicidade traduzir latim para uma língua tão parecida! Pois é, mas na sala ninguém sabe o que é patrimônio. Depois de alguma insistência da minha parte, uma menina das mais desembaraçadas se sai com essa interpretação: patrimônio significa casamento!
Apesar do hábito que lhes inculquei de me interrogarem sobre os pontos duvidosos da aula, raramente as minhas alunas me perguntam o sentido de uma palavra vernácula. Não se dá isso por preguiça, nem sequer, como alguém poderia pensar, por constrangimento e vergonha: elas simplesmente não percebem que ignoram tal sentido. A maioria das palavras portuguesas que ouvem diariamente, pelo menos na escola, boiam-lhes na cabeça como formas vagas e inconsistentes, incorpóreas, nebulosas, feitas uns fantasmas.
Eis uma pequena relação de mais alguns dos muitos vocábulos que, conforme verifiquei, nenhum conceito preciso evocam no espírito da maioria das alunas da 2ª, da e, até, da série ginasial: os substantivos prado, recinto, artífice, tamanho, preceito, adágio, máxima; os adjetivos indigente, diligente, afável, vultuoso, rugoso, ulterior, os verbos admoestar, corroborar, estabelecer, resolver, saciar, deliberar, acudir, etc. Alguns testes feitos por técnicos competentes demonstrariam, é provável, que elas ignoram quase todo o vocabulário abstrato e muitos termos concretos indispensáveis.
Mas, perguntará alguém, como então essas meninas que carecem (cuidado! o senhor acaba de empregar mais uma dessas palavras incompreensíveis!), essas meninas que carecem de número tão grande de vocábulos podem entender, não digo já uma explicação de matemática, porém a mais simples lição de história, ou mesmo de português. A verdade é que elas não as entendem; e que as aprender mesmo sem entendê-las é uma demonstração comovedora de boa vontade, pela qual merecem a nossa admiração, mas também a nossa compaixão.
Há vinte anos, o domínio de um razoável vocabulário não era julgado nenhum luxo intelectual; pelo contrário, parecia indispensável não somente para alguém se exprimir, mas sobretudo para pensar, uma vez que essa última operação é inseparavelmente ligada às palavras, símbolos dos conceitos. “Mais nous avons changé tout cela!” Nesse ponto, vejo-me assaltado por uma dúvida cruel. Semelhante falta de vocabulário não será a causa e, ao mesmo tempo, a consequência de uma escassez alarmante de conceitos, de ideias?
É de temer que sim. É o que faz supor, entre outros fenômenos, a incapacidade que têm nossos alunos de resumir uma página que acabam de ler, ou de ir até o fim de um livro, mesmo escrito para adolescentes. A falta de qualquer atividade intelectual autônoma criou neles uma indolência estranha. Basta uma descrição algo demorada, algumas páginas sem parágrafos, duas palavras empregadas em sentido figurado, uma frase irônica, para que atirem de lado o livro que pegaram por insistência dos pais ou dos professores. Certo dia, ocorreu-me premiar uma das minhas melhores alunas da série ginasial com um delicioso livrinho para adolescentes. Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnar, que eu mesmo traduzira do húngaro com o intuito de divulgá-lo em português. Estranhando a falta de qualquer reação da parte dela depois de decorridos dois meses, pedi-lhe as impressões. A resposta não deixou de me surpreender: não conseguira ler o livro porque as personagens tinham nomes estrangeiros. Esse único empecilho, evidentemente, não seria bastante para fazê-la abandonar a leitura, se já não estivesse, embora sem sabê-lo, à procura de um pretexto para isso.
A pobreza do vocabulário é uma consequência sobretudo da falta de leitura. Os nossos alunos de hoje não têm tempo de ler. Costuma-se culpar os programas malfeitos e sobrecarregados. Mas a esses os jovens sabem opor uma reação natural e eficiente, que consiste em estudarem em casa o menos possível. Não têm tempo, porque o rádio e o futebol, e sobretudo as histórias em quadrinhos e o cinema ocupam-lhes todos os lazeres (e note-se que não falo nos passeios em automóvel, nem na televisão, por enquanto privilégio de uma minoria). Todos esses divertimentos contribuem para desprestigiar a palavra escrita e, em geral, o esforço mental. Quem devora uma história em quadrinhos não vai parar se lhe escapa o sentido de algumas palavras. Se fosse livro de verdade, ele recorreria ao dicionário ou consultaria alguém. Mas o desenho explica tudo e permite que a gente prossiga na “leitura” sem que tenha uma idéia muito clara dos pormenores da história. Se analisássemos os demais passatempos, chegaríamos a resultados mais ou menos idênticos.
Mas talvez eu me deixe levar apenas pelas idiossincrasias devidas a uma educação diferente. Os alunos de hoje lerão menos, mas levam, sem dúvida alguma, uma vida mais intensa, mais rica em sugestões. De acordo; apenas, eles não chegam a tomar inteira consciência dessa vida, dessas sugestões, e isso precisamente por causa da falta de vocábulos e de ideias.
Há tempos, passei para meus alunos de francês – a outra matéria que ensino – um fácil exercício de redação: três frases com três tempos do verbo aller. A maioria elaborou frases iguais: Hier je suis allé au cinéma; aujourd'hui jé vais au cinéma; demain j'irai au cinema”. Alguns em vez de “au cinéma” escreveram “à un jeu de football”. Mandei refazer a lição, proibindo nas frases o emprego das palavras cinema e football. Em face dessa proibição, parte da turma não conseguiu fazer o trabalho, pois não lhes ocorreu nenhum complemento de lugar a não ser aqueles dois.
Trata-se de uma crise geral da civilização, está certo. A cultura que nos criou, baseada toda ela na palavra escrita, está em via de se transformar e, forçosamente, transformar-se-ão também seus meios de expressão. Mas o ritmo dessa metamorfose é menos rápido que o do empobrecimento intelectual dos nossos jovens, que estão abrindo mão de uma ferramenta preciosa antes que a nova marca se encontre à venda.