terça-feira, 15 de outubro de 2013

John Bunyan: Um Milton Popular

Por Otto Maria Carpeaux


A influência moral [de John Milton] [...] não aparece nos seus contemporâneos, pelo menos quando se presta atenção apenas aos escritores cultos. Mas, no sentido moral, havia um miltoniano inconsciente entre a gente iletrada: o caldeireiro ambulante John Bunyan é o único escritor de língua inglesa que pode ser comparado com Milton. Bunyan, puritano sectário, serviu no exército do Parlamento, era soldado valente, mas pouco aproveitável, porque gostava de perdoar aos inimigos, para combater com a maior resolução outros inimigos, que apenas existiam nas suas alucinações. O pobre visionário caminhava pelo país, consertando caldeiras e pregando sermões aos camponeses. A Igreja, restaurada pela monarquia, não podia tolerar essa concorrência ilegal, e Bunyan passou metade da vida nas prisões, pregando aos companheiros de desgraça. As visões continuaram: nem na prisão o deixaram em paz os seus inimigos, que sempre o acompanharam, porque eram os seus próprios pecados personificados. Essas experiências, descreveu-as numa autobiografia espiritual, Grace Abounding to the Chief of Sinners; e depois resolveu transformar a narração em uma espécie de romance ou epopeia em prosa, The Pilgrim’s Progress.
“As I walked through the wilderness of this World”,
assim começa Bunyan; e logo nos ocorre outro começo: “Nel mezzo del cammin di nostra vita”. Assim como o outro mundo de Dante é a imagem fantástica da Itália do século XIII, assim o mundo de Christian, herói do Pilgrim’s Progress, é uma imagem fantástica da Inglaterra do século XVII, povoada de personagens alegóricas que acompanham, perturbando ou ajudando, o pobre Christian na sua viagem, da City of Destruction para Zion, a City of God. Passa pelos lugares mais estranhos, o Desfiladeiro do Desespero, a Aldeia da Moral, a Colina da Dificuldade, o Vale da Humilhação, onde tem de lutar contra o terrível Apollyon; é preso na Feira das Vaidades (a “Vanity Fair” que Thackeray tomou como título de romance), atravessa o Rio da Morte, e chega enfim à Cidade Santa. Quanto mais pormenorizado for o resumo do livro, tanto mais infantil parecerá. Mas a leitura causa outra impressão: todas aquelas paisagens fantásticas respiram a atmosfera terrificante do “dejà vu” nos sonhos, todas aquelas personagens alegóricas estão tão vivas que acreditamos tê-las conhecido pessoalmente; a leitura torna-se pesadelo, como se fosse o maior thriller entre os romances policiais; e o fim vitorioso é um alívio enorme, como uma verdadeira salvação. Tudo isso está narrado numa linguagem popular, na qual abundam metáforas militares – reminiscências do serviço no exército – e sobretudo as citações e alusões bíblicas. Organizou-se uma estatística, segundo a qual a maior parte do texto do Pilgrim’s Progress é literalmente tomada da Bíblia, a leitura principal do caldeireiro. Com efeito, The Pilgrim’s Progress é a segunda Bíblia das nações anglo-saxônicas, o Paradise Lost do homem do povo. Mas não só dele. “The Pilgrim’s Progress”, diz Macaulay “is perhaps the only book about which, after the lapse of hundred years, the educated minority has come over to the opinion of the common people.” [O Peregrino é, talvez, o único livro sobre o qual, após um período de cem anos, a minoria educada se rendeu à opinião das pessoas comuns.]

O espírito inglês possui uma capacidade especial de se exprimir em alegorias. Abundam em toda a parte na literatura inglesa, e uma das maiores obras dessa literatura, a Fairie Queen, de Spenser, é alegoria elaboradíssima. The Pilgrim’s Progress é, porém, a maior obra alegórica da literatura inglesa. Parece mera leitura popular, feita sem arte alguma; e Bunyan não era, evidentemente, artista, ou então, quando muito, seria artista contra a sua vontade que era só pregar e pregar, assustar e consolar os pecadores. Na sua memória intervieram, além da Bíblia, reminiscências de outras leituras. As semelhanças com Piers the Plowman, outra obra-prima alegórica da literatura inglesa, e com os “Morality Plays”, são casuais, porque Bunyan não os conheceu; mas conheceu alguns tratadinhos místicos, e conheceu edições populares de velhos romances de cavalaria, talvez o próprio Malory. Daí certas analogias assombrosas com os Exercitia spiritualia, de são Ignácio de Loyola, que fora também leitor de romances de cavalaria. Daí a maneira vivíssima de contar aventuras romanescas. Bunyan é romancista e, em certo sentido, precursor do romance moderno: em outra obra de Bunyan, The Life and Death of Mr. Badman, o caminho de perdição de um pecador é descrito com o realismo de um Defoe e com as minúcias psicológicas de Samuel Richardson. The Pilgrim’s Progress é um romance arcaico: o que seria definição da epopeia. Bunyan seria o Milton do povo.

Mas é o The Pilgrim’s Progress realmente uma epopeia? A obra revela, na apresentação das cenas e na caracterização das personagens, as mesmas qualidades dramáticas do Paradise Lost. Bernard Shaw afirmou ocasionalmente que Bunyan era um grande dramaturgo, afastado do teatro pelo puritanismo, e que uma versão do The Pilgrim’s Progress para o teatro revelaria força dramática maior do que a de Shakespeare. O paradoxo chega a exprimir uma verdade histórica. Em Bunyan, o puritanismo encontrou a aproximação entre a sua literatura e o teatro, o caminho que Milton não acertou, por causa dos preconceitos classicistas da sua erudição literária, enquanto que Bunyan era homem do povo. The Pilgrim’s Progress não é teatro; mas é a transformação e continuação histórica do teatro elisabetano. Em 1642, fecharam-se os teatros, e em 1661 só se reabriram para o gosto aristocrático. No The Pilgrim’s Progress, o povo inglês encontrou de novo as angústias que o tinham comovido diante das peças de Shakespeare e Webster; encontrou personagens alegóricas, mas tão vivas e imortais como Hamlet. E mais uma coisa que Shakespeare não fora capaz de criar: um enredo inventado, que na imaginação do leitor se torna verdade vivida, acompanhando-o e guiando-o pela vida afora. Bunyan é, segundo a expressão de um crítico moderno, um criador de mitos.

Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental. São Paulo, Leya,  2012, p. 878.