quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Lançamento



Menção de Olavo de Carvalho ao livro:

No plano intelectual, o estudante deve esforçar-se para obter a mais alta qualificação possível, adotando como modelos da sua auto-educação as práticas melhores registradas historicamente: as da Academia platônica, do Liceu aristotélico, da universidade européia no século XIII (com seus ecos residuais na filosofia cristã moderna, por exemplo La Vie Intellectuelle de A. D. Sertillanges e Conseils sur la Vie Intellectuelle de Jean Guitton), da intelectualidade superior alemã no século XIX e austríaca no começo do século XX (tal como descrita, por exemplo, nos depoimentos de Eric Voegelin, Otto Maria Carpeaux e Marjorie Perloff) e, last not least, da tradição americana de liberal education (v., além do clássico How to Read a Book de Mortimer J. Adler, The Trivium, de Sister Miriam Joseph, Another Sort of Learning, de James V. Schall, e The House of Intellect, de Jacques Barzun).

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O que de graça recebestes


— E assim termino a minha exposição. Muito obrigado!
Houve uma explosão de aplausos no auditório. O Dr. Müller, postado no centro do palco, permanece todo o tempo com os olhos fechados. Um ou outro percebe, mas consideram apenas como um tique de orador.
Henrique já estava ansioso. Suas pernas tremiam, suas mãos suavam. Com seu livrinho em mãos, já surrado, fica imaginando como seria conversar diretamente com seu mestre inspirador. Ao mesmo tempo em que imaginava como seria a conversa, hesitava, temia ser mal recebido. Decidiu que seria o último a cumprimentar o professor. Assim, com menos pessoas à sua volta, poderia ao menos vencer sua timidez.
— Olá, professor.
— Olá, tudo bem?
— Tudo bem, sim. É... É... — sempre que ficava nervoso, gaguejava — gostaria de pedir um a—a—autógrafo.
Enrubescido de vergonha por apresentar um livro já velho, estende a mão em direção ao professor, que percebe que este está tremendo.
— Está tudo bem, mesmo? Por que treme tanto?
— Desculpe por apresentar o livro assim. Juro, não é por falta de cuidado, mas por excesso de manuseio. É o meu preferido. Me serve de inspiração.
— Que isso..., como é seu nome? — pergunta o professor.
— Henrique.
Antes de postar a caneta, o professor se põe a folhear o livro.
— Nossa, pelo visto você fez uma leitura bastante minuciosa. Ao menos é o que indicam todas essas anotações que você fez nas margens.
A esta altura o auditório já está vazio. Ainda estão lá somente o Dr. Müller, seu assistente e Henrique.
— A cada vez que o leio, a história suscita novas emoções em mim. Essas anotações não são críticas. São apenas as sensações que tinha enquanto lia.
— Fico feliz por isso. Ainda me surpreendo quando fico sabendo que as minhas histórias alegram um pouco a vida dos outros.
Um tanto sem jeito, faz um gesto com a cabeça para seu assistente e diz:
— Preciso ir.
Eles vão saindo, mas continuam conversando corredor afora. Entre um elogio e outro, uma pergunta e outra, Henrique, já mais descontraído, diz:
— O senhor não sabe o quanto foi difícil estar aqui hoje. Terei de compensar essa minha ausência no trabalho.
— E o que você faz?
— Trabalho em uma padaria, mas alimento mesmo é o sonho de ser escritor.
— Jura?
— Sim. E faço tudo o que está ao meu alcance. Mas é tão difícil.
— Tenho certeza de que você é capaz.
— Talvez para pessoas como o senhor seja mais fácil, mas não pra mim. Tenho de trabalhar para ajudar em casa...
— Aí é que você se engana. Mas essa conversa vai render. Tem compromisso agora? Não gostaria de ir tomar um café comigo? Se a ficar muito tarde, prometo levá—lo até sua casa.
— Antes mesmo que pudesse pensar qualquer coisa com a cabeça, seu coração dispara e manda sua boca aceitar o convite.

***

Já assentados confortavelmente, o Dr. Müller começa então a contar a Henrique a sua própria história:
— Você não imagina o quanto estou feliz por ter essa oportunidade. Poucos sabem de fato de onde vim. Se consegui chegar onde cheguei, foi com muito trabalho, muito esforço, muito suor e muitas, muitas lágrimas. — Henrique, ainda atônito com a situação, ouve a tudo atentamente. — Sabe uma pessoa que tem tudo para não ser nada na vida? Pois bem, este era eu. Meu pai era militante comunista. Foi a uma missão especial à URSS e nunca mais voltou. Depois ficamos sabendo que desiludiu-se com o regime e teve o mesmo destino que alguns milhões de descontentes. Minha mãe, deprimida, resolveu começar a beber. Um de meus tios fez o que estava ao seu alcance para que largasse a bebida. Tudo em vão. Para me proteger, fui enviado a um colégio de padres. E foi lá que, pela primeira vez, ouvi um discurso que mudou a minha vida. Não me refiro à pregação religiosa, não. Foram as primeiras palavras do Padre José, o professor de literatura. Lembro—me como se fosse hoje:
"Todos vocês são livres para construir o próprio destino. Não importam as circunstâncias. Não importa o que dizem de você. Não importa o que pensam de você. Não importa nada disso. Se há algo que faz toda a diferença, este algo é a forma como você encara a tudo isso. Se te disserem que você não é capaz de algo, você tem duas opções: baixar a cabeça e dizer amém, "ah, eu sou um incapaz mesmo", ou enfrentar tais palavras como um desafio. É sempre assim. Não se sinta vítima de um mundo cruel e perverso. Sinta—se desafiado por ele."

Eu era um garoto, ainda mais novo que você. Mas aquelas palavras me comoveram, tocaram no mais profundo de minha alma. Entendi que eu era livre. Era livre mesmo com todas as minhas limitações. O tempo foi passando e chegou o momento de ir para a universidade. Nessa época, meu tio já estava um tanto decrépito. Entristeci—me muito com sua morte. Mas foi a herança que ele me deixou que permitiu que custeasse meus estudos.
Tudo isso, claro, com muitas privações. Eu era tachado como o filho do comunista com a bêbada. Aquilo me angustiava. Não fossem os livros que me acompanhavam, talvez eu não tivesse conseguido suportar tudo aquilo. E da companhia dos livros brotou naturalmente o desejo de me tornar escritor. Não almejava sucesso. Queria apenas escrever histórias que pudessem aliviar os sofrimentos das pessoas. Assim como eu recebera esse consolo, queria também que outros fossem consolados.
O sucesso me veio de forma inesperada. Meus escritos foram adquirindo certa popularidade, até que, sabe—se lá como, foram parar nas mãos de um grande editor. Quando leu pela primeira vez "A volta do herói", ainda manuscrito, ele ficou eufórico por ter "redescoberto a literatura"! Mas antes disso tive muitas portas na cara...
Seja como for, guardo em minha lembrança cada situação vivida, cada minuto de solidão, mas também cada palavra de incentivo, cada gesto de apoio... Guardo tudo comigo. Aliás, é por isso que fico sempre com os olhos fechados sempre que termino uma conferência e recebo aplausos. É que os aplausos podem inflar o ego, mas aquilo é momentâneo. Com os olhos fechados, assisto cada um desses momentos como um filme. Alimento—me não de aplausos, mas de cada vivência que experimentei.

***

A conversa continuou rendendo. Parecia que eram íntimos já há anos. Enfim o Dr. Müller deixa Henrique na porta de sua casa. Seus pais já estão dormindo. Henrique então toma um banho, se olha no espelho e sorri. Sentado na cama, lê a dedicatória que seu novo amigo que lhe escreveu, põe o livro debaixo do travesseiro e se deita, certo de que sua vida não seria mais a mesma. Ele era livre. Vislumbrava já a sua obra. Sua vida tinha sentido.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A cara do leão


Nos corredores do Conjunto Nacional, se via uma dessas jovens mães, descoladas, com seus óculos de armação grossa, botas e cachecol. O que ela tinha de curioso era o olhar atônito, um semblante de preocupação, como de quem perdeu algo importante:
– Lucas... Lucas? Cadê você? Chega, vai... Vamos, Luquinha! Acabou a brincadeira, vamos embora.
Quem circula por aquela bandas sabe que não é nada usual ver alguém gritando (um grito comedido, é fato, mas, ainda assim, grito) por aqueles corredores. Aos poucos, a mulher começou a ser tomada por uma aflição, um desespero, uma vontade de chorar... O tempo, claro, passava. Lá se iam mais de 30 minutos desde que o menino foi se esconder. A tensão não parava de crescer. Por fim, ela resolve perguntar para o segurança. Um suspiro e:
– Por gentileza, o senhor viu um menino de óculos, com uma jaqueta laranja por aí? Estávamos brincando de esconder quando, depois de quase derrubar a estátua do D. Quixote, ele resolveu ir se esconder mais longe.
– Infelizmente, senhora, não vi, não.
O rádio do segurança é acionado.
– Na escuta... Tumulto na Livraria Cultura? Ok, estou indo para lá.
– Moço, o senhor não vai me ajudar?
– Desculpe, senhora. Meu trabalho é mais importante do que te ajudar a encontrar um garoto traquinas que sabe se esconder.
A mulher, já atordoada, perambula aleatoriamente até que vê uma pequena aglomeração se formando na porta da Livraria. Avista, então, o garotinho com tantos livros quantos era capaz de carregar. Como quem não se dá conta da aglomeração ou da preocupação da mãe, o menino olha para ela, sorri e diz aliviado:
– Que bom que você chegou, mamãe. Eu achei a caixinha do Aslam, mas o homi não quer me deixar levar...
– Aqui o tempo não pára durante as aventuras infantis — pensou a mãe.

***

Mais um que vai para o concurso. Gostei da idéia. Acho que serviu ao menos para eu me desinibir e arriscar escrever alguma ficção. Será, será?

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Contos da Cultura

Bem, o texto abaixo pode parecer um merchan meio fajuto, mas pelo menos tem explicação: enviei para o Contos da Cultura. Tem uma porção de coisas bobinhas. Mas há bastante coisas boas também. Como o volume cresce vertiginosamente, não dou conta de ler tudo. Mas dentre os que li, há coisa que vale a pena. O requisito para a participação era que o texto contivesse no máximo 2000 toques e que nele constasse pelo menos uma vez Livraria Cultura.

Explicação dada.

O colecionador de relíquias


Tão logo chegou à casa do professor, percorreu efusivamente com o olhar os quadros, o lustre, a lareira, os livros. Havia livros por toda parte.
— Aceita um café?
— Hmm, aceito.
Enquanto o professor se ausentou para preparar o café, o jovem assentou-se e se pôs a folhear uma pasta que estava sobre a mesa. Nela se encontravam postais com caracteres que ele ignorava, dedicatórias, declarações de amor, assinaturas que ele suspeitava serem autógrafos, mas tudo muito amarelado, velho, alguns até um tanto amassados ou sujos.
— Ah, você está vendo a minha pasta? Cuidado com isso, viu. São relíquias.
— Estava aqui intrigado tentando descobrir o que são essas coisas todas.
— Não sabe? Que te parece?
Hesitou e preferiu nada dizer:
— Não faço nem idéia.
— Cada livro tem sua própria história. Muitos são dados de presente; outros passam de geração em geração; outros ainda são trocados ou pertencem a bibliotecas. O que você tem aí são uns poucos vestígios das histórias dos meus livros. Muitos já circularam pelo mundo. Vê esses caracteres? É russo. Alguém muito desiludido com a vida detrás da cortina de ferro enviou esse postal para um amigo no ocidente. E chegou até mim dentro de um livro.
— E esse? O que é?
— Ignoro as personagens. Mas foi uma dedicatória escrita na folha de rosto da primeira edição de Dom Casmurro. Como pode ver, foi uma forma indireta usar o livro: o autor acusava a esposa de ser uma espécie de Bentinho. Achei que merecia ser guardada.
— Nossa, que legal!
— Vai folheando. Devagar! Pára aí. Esta foto é do Graciliano com o avô de um amigo. Só cheguei a descobrir quem era anos depois, por acaso, quando este amigo veio me visitar e comentou sobre o livro de estimação de seu avô. Dentro do livro, a foto.
— E como chegou até você?
— Comprei num sebo. Muito do que há nessa pasta veio com livros que comprei em sebos.
— E eu achava o máximo comprar livros na Livraria Cultura...
— Mas é. Todo livro tem uma história extra: dos sebos, já escritas; da Cultura, por escrever.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

A experiência da efemeridade

Agradeço pelas mensagens de solidariedade que recebi em função do último post. Ele está lacônico assim porque foi escrito tão logo cheguei do velório de um amigo falecido em um acidente de moto. Como exorta o Eclesiastes, melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete; porque naquela se vê o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração. Saí do cemitério um tanto perplexo. O rapaz tinha apenas 22 anos. Era mais novo que eu.
Fui tomado por um temor, uma insegurança, uma sensação de que também eu, a qualquer momento, poderia cessar minha existência. Cheguei, sentei em frente ao computador e escrevi.
Repentinamente, me dei conta de quão mesquinho eu vinha sendo. A polêmica do dia é nada. A busca desenfreada pela atualidade é nada. O avanço tecnológico é nada. A oscilação da bolsa é nada. O resultado da eleição é nada. Tudo é nada quando experimentamos nossa própria efemeridade. E é importante sair daí sabendo que o tempo é curto, curto demais para encontrar o sentido da vida.