quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O que de graça recebestes


— E assim termino a minha exposição. Muito obrigado!
Houve uma explosão de aplausos no auditório. O Dr. Müller, postado no centro do palco, permanece todo o tempo com os olhos fechados. Um ou outro percebe, mas consideram apenas como um tique de orador.
Henrique já estava ansioso. Suas pernas tremiam, suas mãos suavam. Com seu livrinho em mãos, já surrado, fica imaginando como seria conversar diretamente com seu mestre inspirador. Ao mesmo tempo em que imaginava como seria a conversa, hesitava, temia ser mal recebido. Decidiu que seria o último a cumprimentar o professor. Assim, com menos pessoas à sua volta, poderia ao menos vencer sua timidez.
— Olá, professor.
— Olá, tudo bem?
— Tudo bem, sim. É... É... — sempre que ficava nervoso, gaguejava — gostaria de pedir um a—a—autógrafo.
Enrubescido de vergonha por apresentar um livro já velho, estende a mão em direção ao professor, que percebe que este está tremendo.
— Está tudo bem, mesmo? Por que treme tanto?
— Desculpe por apresentar o livro assim. Juro, não é por falta de cuidado, mas por excesso de manuseio. É o meu preferido. Me serve de inspiração.
— Que isso..., como é seu nome? — pergunta o professor.
— Henrique.
Antes de postar a caneta, o professor se põe a folhear o livro.
— Nossa, pelo visto você fez uma leitura bastante minuciosa. Ao menos é o que indicam todas essas anotações que você fez nas margens.
A esta altura o auditório já está vazio. Ainda estão lá somente o Dr. Müller, seu assistente e Henrique.
— A cada vez que o leio, a história suscita novas emoções em mim. Essas anotações não são críticas. São apenas as sensações que tinha enquanto lia.
— Fico feliz por isso. Ainda me surpreendo quando fico sabendo que as minhas histórias alegram um pouco a vida dos outros.
Um tanto sem jeito, faz um gesto com a cabeça para seu assistente e diz:
— Preciso ir.
Eles vão saindo, mas continuam conversando corredor afora. Entre um elogio e outro, uma pergunta e outra, Henrique, já mais descontraído, diz:
— O senhor não sabe o quanto foi difícil estar aqui hoje. Terei de compensar essa minha ausência no trabalho.
— E o que você faz?
— Trabalho em uma padaria, mas alimento mesmo é o sonho de ser escritor.
— Jura?
— Sim. E faço tudo o que está ao meu alcance. Mas é tão difícil.
— Tenho certeza de que você é capaz.
— Talvez para pessoas como o senhor seja mais fácil, mas não pra mim. Tenho de trabalhar para ajudar em casa...
— Aí é que você se engana. Mas essa conversa vai render. Tem compromisso agora? Não gostaria de ir tomar um café comigo? Se a ficar muito tarde, prometo levá—lo até sua casa.
— Antes mesmo que pudesse pensar qualquer coisa com a cabeça, seu coração dispara e manda sua boca aceitar o convite.

***

Já assentados confortavelmente, o Dr. Müller começa então a contar a Henrique a sua própria história:
— Você não imagina o quanto estou feliz por ter essa oportunidade. Poucos sabem de fato de onde vim. Se consegui chegar onde cheguei, foi com muito trabalho, muito esforço, muito suor e muitas, muitas lágrimas. — Henrique, ainda atônito com a situação, ouve a tudo atentamente. — Sabe uma pessoa que tem tudo para não ser nada na vida? Pois bem, este era eu. Meu pai era militante comunista. Foi a uma missão especial à URSS e nunca mais voltou. Depois ficamos sabendo que desiludiu-se com o regime e teve o mesmo destino que alguns milhões de descontentes. Minha mãe, deprimida, resolveu começar a beber. Um de meus tios fez o que estava ao seu alcance para que largasse a bebida. Tudo em vão. Para me proteger, fui enviado a um colégio de padres. E foi lá que, pela primeira vez, ouvi um discurso que mudou a minha vida. Não me refiro à pregação religiosa, não. Foram as primeiras palavras do Padre José, o professor de literatura. Lembro—me como se fosse hoje:
"Todos vocês são livres para construir o próprio destino. Não importam as circunstâncias. Não importa o que dizem de você. Não importa o que pensam de você. Não importa nada disso. Se há algo que faz toda a diferença, este algo é a forma como você encara a tudo isso. Se te disserem que você não é capaz de algo, você tem duas opções: baixar a cabeça e dizer amém, "ah, eu sou um incapaz mesmo", ou enfrentar tais palavras como um desafio. É sempre assim. Não se sinta vítima de um mundo cruel e perverso. Sinta—se desafiado por ele."

Eu era um garoto, ainda mais novo que você. Mas aquelas palavras me comoveram, tocaram no mais profundo de minha alma. Entendi que eu era livre. Era livre mesmo com todas as minhas limitações. O tempo foi passando e chegou o momento de ir para a universidade. Nessa época, meu tio já estava um tanto decrépito. Entristeci—me muito com sua morte. Mas foi a herança que ele me deixou que permitiu que custeasse meus estudos.
Tudo isso, claro, com muitas privações. Eu era tachado como o filho do comunista com a bêbada. Aquilo me angustiava. Não fossem os livros que me acompanhavam, talvez eu não tivesse conseguido suportar tudo aquilo. E da companhia dos livros brotou naturalmente o desejo de me tornar escritor. Não almejava sucesso. Queria apenas escrever histórias que pudessem aliviar os sofrimentos das pessoas. Assim como eu recebera esse consolo, queria também que outros fossem consolados.
O sucesso me veio de forma inesperada. Meus escritos foram adquirindo certa popularidade, até que, sabe—se lá como, foram parar nas mãos de um grande editor. Quando leu pela primeira vez "A volta do herói", ainda manuscrito, ele ficou eufórico por ter "redescoberto a literatura"! Mas antes disso tive muitas portas na cara...
Seja como for, guardo em minha lembrança cada situação vivida, cada minuto de solidão, mas também cada palavra de incentivo, cada gesto de apoio... Guardo tudo comigo. Aliás, é por isso que fico sempre com os olhos fechados sempre que termino uma conferência e recebo aplausos. É que os aplausos podem inflar o ego, mas aquilo é momentâneo. Com os olhos fechados, assisto cada um desses momentos como um filme. Alimento—me não de aplausos, mas de cada vivência que experimentei.

***

A conversa continuou rendendo. Parecia que eram íntimos já há anos. Enfim o Dr. Müller deixa Henrique na porta de sua casa. Seus pais já estão dormindo. Henrique então toma um banho, se olha no espelho e sorri. Sentado na cama, lê a dedicatória que seu novo amigo que lhe escreveu, põe o livro debaixo do travesseiro e se deita, certo de que sua vida não seria mais a mesma. Ele era livre. Vislumbrava já a sua obra. Sua vida tinha sentido.

Um comentário:

Osmar. disse...

Ai, me desculpa a demora pra ler, mas antes tarde do que nunca...

Parabéns ficou muito legal.