quinta-feira, 6 de junho de 2013

Do outro lado do balcão


Depois de trabalhar por alguns anos como preparador e revisor de textos, surgiu-me a oportunidade de mudar de lado do balcão e trabalhar como produtor editorial. Isso quer dizer que, entre outras atribuições, cabe a mim avaliar e validar as intervenções feitas por preparadores e revisores em textos de terceiros (autores e tradutores). Qual não foi minha surpresa ao descobrir que havia uma espécie de consenso tácito que atestava uma tendência à vulgarização, à substituição do termo preciso pelo vago, do erudito pelo raso, da frase torneada pela ordem direta mais vulgar. Isso quer dizer que preparadores e revisores estavam interferindo em todos os planos do texto: sintático, lexical e prosódico/fonético.
Na editora em que trabalho, temos, sim, um manual de padronização, mas não um Manual de Padronização e Estilo. Não sugerimos que expressões, palavras ou construções frasais sejam censuradas de antemão, sempre e arbitrariamente, como que por ordem dos deuses. E isso me leva, novamente, à minha birra com os chamados comandos paragramaticais, na expressão do Marcos Bagno (com quem tenho lá minhas discordâncias). Quanto a este assunto, acho mesmo que está certo o que diz o Professor Olavo de Carvalho, em ensaio memorável sobre a arte de escrever. Manuais de redação e estilo são mesmo verdadeiros manuais da falta de estilo:
Que [os profissionais da imprensa] baixem regras, vá lá. Mas deveriam ter ao menos o bom senso de admitir que especificações ditadas pela mera conveniência tecno-industrial não têm nenhum valor de critério estético, não constituem, em nenhum sentido, as regras de estilo, a não ser que se entenda por estilo a uniformidade coletiva, isto é, a falta de estilo. Servem para medir a adequação de um texto ao perfil mercadológico de um determinado produto editorial, e não para julgar sua qualidade literária, sua expressividade, sua exatidão, sua coerência, elegância e veracidade. Não servem nem mesmo para aquilatar do seu valor jornalístico, se tomado em sentido geral e fora dos cânones daquela publicação em particular. Como julgar por elas, digamos, o jornalismo de um Mauriac, de um Ortega y Gasset, de um Alain, ou, mais próximo de nós, de um Monteiro Lobato? Estilo é a adequação da linguagem de um sujeito às suas próprias necessidades expressivas, ou às exigências do assunto, e não a qualquer molde externo prévio, seja ele folgado ou estreito. É só metaforicamente, e forçando a barra, que a palavra "estilo" pode designar o sistema uniforme de trejeitos verbais imitado por todo um corpo de redatores; mais propriamente, esse sistema seria dito uma padronização da falta de estilo.
Às voltas com essas ideias, foi com grande surpresa, consternação e felicidade (sim, porque, afinal de contas, descobri que não estou ficando maluco) que li o comentário da tradutora Ivone Benedetti, a respeito de intervenções feitas em traduções dela. Não poderia concordar com mais entusiasmo. Talvez devesse fazer alguma ressalva, para não ser injusto com os bons profissionais. Mas estes, justamente por serem bons, já saberão de antemão que não são o objeto da crítica aqui presente. Diz Ivone:
Está havendo por parte dos preparadores de textos, já imbuídos da demonização da norma culta, um tenaz esforço de nivelar por baixo, de facilitar o texto para um leitor que eles subliminarmente veem como deficiente mental. A coisa é feita no pior estilo "rede globo" de didatismo rasteiro. As construções sintáticas menos usuais não são entendidas. Eles as substituem por coisas que acabam tendo outro significado. Algumas palavras são "cassadas". Recentemente, num texto meu, "otário" foi substituído por "panaca" (!), qualificativo este que nunca vai sair do meu teclado (antes era pluma) nem era o sentido do texto original; "denodado" foi substituído por "corajoso" (logo depois do verbo desencorajar); "abstruso" foi substituído por "obscuro" (como se fossem perfeitos sinônimos); "espocar" não pode, tem de ser "estourar"; "jaez" não pode: o revisor tascou "característica", como se fosse sinônimo, ou seja, algo "desse jaez" virou algo "dessa característica"; "medrar", que talvez possa ter certo odor duvidoso, está proscrito, substituído por "difundir", que não é o que medrar quer dizer, mas só quer, porque não diz; "mansuetude" não pode: tem de ser "mansidão", nem que seja de Jesus. E não adianta passar horas pesquisando até concluir que o jogo a que o autor se refere é o bilhar (francês), porque o tal preparador decidiu que tudo é sinuca. Lamento, Paulo, mas nem nesse solo há húmus. O esforço é, sim, no sentido do empobrecimento. O grande desserviço prestado nos últimos anos pelos neolinguistas foi o de levar a crer que a língua só serve à comunicação – entenda-se: cotidiana –, esquecendo-se de que ela é (entre outras coisas) um repositório cultural. E os tais preparadores não descobriram ainda que quem se dá o trabalho de ler não está buscando o meio mais fácil de passar o tempo, e sim de entrar no intrincado universo do "pensamento" através do melhor instrumento inventado até agora para traduzi-lo: a língua, de preferência a escrita.
Os exemplos dados são muito bons. Mas eu já peguei casos mais esdrúxulos. Por exemplo, "infirmar",  substituído sistematicamente por "confirmar", seu exato oposto; ou numa sofisticada exposição filosófica, o preparador inventou de substituir repetições de certos termos por pretensos sinônimos (perdendo-se toda a precisão do caso em pauta). Mas me alongo.
Termino, mais uma vez, recomendando vivamente a leitura dos poucos manuais de estilo que merecem ser lidos. De fato, posso ignorar outros igualmente bons; mas estes são indispensáveis:

  1. Olavo de Carvalho, A Dialética Simbólica. São Paulo, É Realizações, 2007. (Sobretudo os ensaios Aprendendo a escrever, A arte de escrever: lição número 1, esqueça o manual de redação e Ainda a arte de escrever)
  2. Othon Moacyr Garcia, Comunicação em Prosa Moderna. São Paulo, FGV, 2010. (várias edições anteriores)
  3. Gladstone Chaves de Melo, Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Livraria Editora Padrão, 1976. (Esgotado, só se encontra em sebos. Mesmo se for caro, vale o quanto custa!)
  4. Antonio Albalat, A Arte de Escrever em 20 lições
  5. Idem, A Formação do Estilo pela Assimilação dos Autores. (Idem – são livros velhos e preciosos. Affonso Romano de Santana disse que foram estes livros do Albalat que fizeram dele um escritor!)
  6. Francine Prose, Para Ler como um Escritor. Trad. Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
  7. Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa. São Paulo, Martins Editora, 1998.
  8. Nilce Sant'anna Martins, Introdução à Estilística: A Expressividadena Língua Portuguesa. São Paulo, Edusp, 2008.
  9. José Oiticica, Manual de Estilo. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1940. (Livro velho, datado, mas, nem por isso, menos relevante. Importante, sobretudo, para chamar a atenção para a evolução da língua. Coisas outrora condenáveis que hoje já são legítimas, estrangeirismos que hoje já estão plenamente incorporados à língua, essas coisas) 


E, se têm de resolver problemas práticos, consultem estas obras, que, ainda que bastante incisivas em suas respostas, não prescindem, de maneira alguma, da reflexão e do juízo do consulente:
  1. Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo, Editora Ática, 2003. (Livro datado em muitos aspectos; arbitrário em outros; divertido, em muitos; mas não é desprezível!)
  2. Domingos Paschoal Cegalla, Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Lexikon, 2009.