domingo, 2 de maio de 2010

Cadeia

No capítulo III de Vidas Secas, Graciliano Ramos, com sua mestria, nos faz sentir a latência da alma de Fabiano. A injustiça salta aos olhos, mas tudo o que FAbiano é capaz de fazer é lamentar sua incapacidade de expressar-se:

Ouviu o falatório desconexo do bêbedo, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais - aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?
Se não fosse aquilo ... Nem sabia. O fio da idéia cresceu, engrossou – e partiu-se. Difícil pensar. Vivia tão agarrado aos bichos... Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos. Enfim, contanto ... Seu Tomás daria informações. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu Tomás da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.
...
Fabiano também não sabia falar. As vezes largava nomes arrevesados, por embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse ... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.

Vidas secas

No capítulo VIII de Vidas Secas, os meninos, filhos de fabiano, ficam deslumbrados diante do cenário que contemplavam. E assim segue a cena:

... Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem.

O abandono dos ideais

Por Olavo de Carvalho
Quando as palavras saem da moda, as coisas que elas designam ficam boiando no abismo dos mistérios sem nome; e como tudo o que é misterioso e inexprimível oprime e atemoriza o coração humano com uma sensação de cerceamento e impotência, é natural que a atenção acabe por se desviar desses tópicos nebulosos e constrangedores. Pois o que desaparece do vocabulário logo acaba por desaparecer da consciência: o que não tem nome não é pensável, o que não é pensável não existe — tal é a metafísica dos avestruzes. Só que a coisa desprovida do direito à existência continua a existir numa espécie de extramundo, inominada e inominável, tanto mais ativa quanto mais secreta, tanto mais temível quanto mais envolta nas pompas tenebrosas do nada. A restrição do vocabulário povoa o mundo de temores e presságios. Desprovido da capacidade de nomear, eis o homem devolvido a todos os terrores que ele imaginava primitivos, mas que são uma pura criação da mais avançada e requintada decadência: o barbarismo artificial.

Aqui.

Linguagem e consciência

Em meados de 2008, li pela primeira vez as crônicas de Paulo Rónai. Lembro-me de que, na ocasião, estava estudando um pouco de teoria da tradução para melhor fundamentar intervenções que vinha fazendo em meu trabalho como revisor de textos. Ainda hoje tenho a impressão de que foi uma temeridade entregar a mim a tarefa de fazer o cotejo entre textos traduzidos e seus originais. Assumi tal responsabilidade mais como quem aceita um desafio do que como quem sabe com segurança o que está fazendo.
Durante a graduação em letras, já tinha visto circular os livrinhos de Rónai para o ensino do latim. Aliás, trago em minha memória o lamento de um dos meus professores:
— Vocês estão achando difícil um livrinho que o Rónai escreveu para dar aulas para os alunos da 5ª série!
Alguns ficaram ofendidos; outros ignoraram a fala do professor; eu, bem, eu fiquei com aquilo na cabeça e anos depois é que comecei a me dar conta da dimensão do lamento do meu professor. Li Escola de tradutores, A tradução vivida e somente então, já bastante empolgado com o estilo do autor, conheci o livro Como aprendi português e outras aventuras.
Li-o de um só tiro, com uma empolgação experimentada poucas vezes antes. Supreendi-me com a fluência de seu texto português. Inquietei-me com o fato de um estrangeiro escrever com tamanha naturalidade uma língua que é considerada difícil por boa parte de seus falantes nativos. Em cada página, pude ver um homem que demonstrava uma verdadeira devoção à língua do país que o acolheu em seu tempo de exílio.
E foi justamente neste livro que encontrei a crônica aqui publicada na última semana (Uma geração sem palavras). Envergonhei-me ao lê-la e perceber que sua percepção não só estava correta, como agravada com os anos que se passaram. O texto foi escrito em 1954; desde então — creio que ninguém há de por em dúvida — as coisas só pioraram.
Ruminando esta leitura, comecei a lembrar-me de outros textos que de certa forma versam sobre o mesmo tema. E fiquei pasmo. Não articulei muito bem o que se pode depreender dessas coisas e gostaria apenas de elencá-las, para que outros possam me ajudar nessa reflexão. Os próximos posts serão esses textos. Em breve!