sábado, 30 de agosto de 2014

Quando a integridade pessoal não basta - parte 1

Herta Müller e Gabriel Liiceanu discutem sobre língua e dissidência


Herta Müller tem criticado publicamente os intelectuais romenos por sua passividade durante o regime de Ceausescu. Em conversa com o editor e filósofo Gabriel Liiceanu em Bucareste, em outubro de 2010, a romancista laureada com um Nobel de literatura defendeu sua visão geralmente impopular de que preservar a integridade intelectual pessoal sozinho era uma forma inadequada de resistência política.

Entrevista publicada na revista romena Dilema Veche
e traduzida no Eurozine. Original, aqui.

Gabriel Liiceanu: Posso sugerir que comecemos com o texto que a senhora leu, Atemschaukel? A senhora diz o seguinte: “mas a fome fica como um cachorro em frente a uma tigela e se farta”. Ser um escritor significa ver a relação entre coisas que ninguém mais vê, perceber uma nuança em coisas que ninguém percebe, estabelecer uma relação entre elas e as palavras de uma forma que ninguém mais faz. Na minha opinião, um escritor é um ser privilegiado que dá nome a relações entre coisas de uma forma que ninguém o fez antes. Esta é a minha tentativa de dizer que o escritor estabelece com o mundo uma relação que não existia antes. Ele é um Vorläufer, um bandeirante. E, ainda assim, tenho a impressão de que, em mais de uma ocasião, você se recusou a admitir que um escritor tem de desempenhar esse papel excepcional.

Herta Müller: Acredito que cada pessoa é única no mundo e tem uma relação singular com este mundo. Toda e qualquer pessoa. E tudo que cada um de nós faz o faz de maneira diferente, porque não temos outra opção. Você pode fazer esse teste com escritores porque o trabalho deles é escrever – e isso é algo que se pode ver por si mesmo e discutir. No caso das outras pessoas, coisas e ideias não são expressas exteriormente, então não podemos vê-las. Essa é a diferença. Encontrei tantas pessoas sensíveis nos caminhos da vida, que fazem trabalhos de todos os tipos, e nunca pensei que eu fosse capaz de ver algo que essas pessoas que não escrevem não pudessem. A língua, se pode expressar vida, é a língua daqueles que não escrevem, e eu tenho de usar aquela linguagem. Se escrevo na linguagem deles de certa forma, então produzo o que se pode chamar literatura, poesia, atmosfera poética. 

GL: Isso quer dizer que alguns de nós – aqueles que, por exemplo, viram em seu romance Atemschaukel uma nova forma de juntar palavras, um choque provocado pela linguagem quando o leitor lê primeira vez – estamos enganados. Vamos falar de outra coisa. Vamos falar de “coisas sérias”. 
Você aceitaria que algumas das coisas que lhe preocupam, e das quais nasceram suas obsessões, também preocupam outras pessoas, alguns de nós? Logo no início de sua reunião de ensaios Der König verneigt sich und totet, você cita Jorge Semprun: “Não é a língua que é a pátria, mas aquilo que se fala”. E este é o seu comentário: “Jorge Semprun sabe que, para pertencer a uma comunidade, é necessário ter um mínimo acordo interior com os conteúdos pronunciados”. Nem você, nem eu, nem muitos, muitos outros romenos de nossa geração, atingimos esse consenso interior durante a vida. Se nunca tivéssemos identificado com o que se diz publicamente, com o discurso oficial, então o que seria a nossa pátria? Temos um pátria? Não somos – todos aqueles de quem se diz que pela linguagem foram roubados, aqueles que se encontraram em meio a um discurso público com o qual nunca se identificaram – sem uma pátria?

HM: Gostaria de fazer uma distinção aqui. “Pátria” é uma palavra que tem sido superestimada para fins ideológicos. Seja na história da Alemanha, o nacional-socialismo, o stalinismo da Alemanha Oriental, ou em outros países socialistas, esta palavra tem sido usada com muita frequência. “Lar” quer dizer muito menos, mas também muito mais: Se você se sente em casa, acho que isso basta. Citei Semprun porque tenho encontrado com frequência escritores alemães em conferências ou simpósios que achavam que era interessante dizer que sua língua é sua pátria. E eu me irritava. Perguntava-me a mim mesma: “Quem diabos perguntou sobre essa pátria?” Nunca tiveram na vida nenhum problema com sua pátria. Nunca se perguntou àqueles que nasceram no Ocidente nos anos 1950 se eles amavam sua pátria ou não, eles podiam sair do país e voltar. Esta frase “minha pátria é minha língua” foi criada por imigrantes durante o período nazista, por aqueles que fugiram da ditadura hitlerista. Com Semprun, percebi que ele sabia o que isso significava – porque ele também teve de exilar-se durante o regime de Franco, então ele lutou contra os nazistas na França, e depois foi escondido à Espanha várias vezes, usando nomes falsos. Então ele sabe do que está falando. A língua comum também me pertence – pela minha vida, pelo meu nascimento. Mas se esta língua me é hostil, de que me serve? Mostra-me ainda mais como nela não estou em casa.
Esta noção de “estar em casa” também tem seu contrário. A palavra alemã para pátria, Heimat, quer dizer algo que não se pode suportar mas que não pode abandonar. Pode-se deixar com os pés, mas você leva tudo na cabeça – porque muitas coisas aconteceram e todos os momentos difíceis pelos quais passou são grandes demais para serem ignorados. Goste ou não, aquela pátria estúpida vai te acompanhar e te torturar, mesmo ali no lugar para onde você foi para salvar sua vida. Geralmente, quando estou no exterior, pátria como “lar” vem à minha mente. Uma vez estava em Barcelona quando estava acontecendo um festival público. Eu não sabia que festival era aquele e perguntei a algumas pessoas que também não sabiam do que se tratava. Pessoa de todas as gerações estavam dançando na praça. Ele tinham deixado suas bolsas e sapatos numa pilha no meio da praça e calçaram sapatos de dança. Dançavam música popular, mas era muito agradável. Em momentos como este, caio em lágrimas, porque percebo que há muitas pessoas neste mundo que nunca tiveram de deixar seu país, que puderam conservar certos pressupostos, algo que eles nunca tiveram de questionar. Porque se você tem de questionar a sua pátria quando quer ter uma discussão, então algo não está certo.

GL: O que eu perguntei foi se aqueles de nós que ficaram em casa sem ter uma casa representam um novo modo de ser, pelo menos no século XX. O que acontece a uma geração inteira que nunca se sentiu em casa justamente porque nunca se identificaram com a língua que teria de lhes dar expressão pública? Não foram a lugar algum, não provaram o sabor da alegria de calçar sapatos de dança e dançar em praça pública. Estão traumatizados?

HM: Isso que o senhor está dizendo é uma questão completamente diferente: Você está na Romênia, nasceu aqui e ficou aqui, com tudo o que veio a acontecer. Eu passei por quase tudo isso até 1987 e então fui expulsa por eles. Não podia voltar agora, seria uma ilusão. A história do exílio sempre foi assim: Você nunca volta da mesma forma que saiu. Não porque não queira, mas porque teve de mudar no lugar para onde foi a fim de arranjar a vida, saber o que está fazendo a si mesmo. Você volta, mas coisas foram interrompidas, a ameaça não existe mais, mas não se pode continuar. Talvez seja uma ilusão, talvez seja inveja também. Não estou argumentando em causa própria, o exílio é uma perda enorme para qualquer país. E é geralmente aqueles com integridade, aqueles que não podem continuar, aqueles que são sensíveis, que são os primeiros a tentar e sair.

GL: Às vezes alguns destes sensíveis ficam...

HM: Romenos ficaram em seu país porque havia gente demais no contexto em que viviam para serem dispersos. A maioria dos alemães da Romênia, por outro lado, teve de partir. A cultura germânica da Romênia pertence ao passado, virou história. Há apenas uns poucos idosos vivendo sozinhos em vilarejos. Casas de repouso são o futuro da minoria germânica neste país. Se eu quisesse vir e continuar algo aqui, não teria nada nem ninguém com quem contar. Seria impossível. Todos os alemães que um dia viveram neste lugar agora estão em outra parte do mundo. Isso às vezes me machuca, mas em outras digo a mim mesmo que foi por sorte. Não tenho a menor dúvida de que tive sorte por deixar a Romênia. Não sei o que teria continuado a fazer na Romênia, não sei se estaria aqui hoje tendo escrito alguns livros. E, além disso, incomoda-me que minha sorte tenha sido o reverso do infortúnio. Poderia ter sido diferente. Conheço muita gente que partiu e que não fez nada da vida; continuaram empacados e não conseguiram achar um lugar para si. Também houve tragédias. Também tive sorte por causa da minha profissão: Eu escrevo. Outros foram deixados para sempre vagando.

GL: Esta profissão “banal”... 

HM: Sim. Esta profissão em que tenho de enfrentar apenas a mim mesma. Outros, que tinham profissões normais, estavam enredados pelas circunstâncias. Tinham de ter um diploma, de ser qualificados, para encontrar um emprego. É isso o que acontece com a maioria das profissões que não pertencem às chamadas artes, ou pelo menos àquelas artes que se pode praticar sozinho.


Continua...

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Técnica, inspiração e arte


Toda arte dispõe de um conjunto de regras, de processos que auxiliam a execução dos atos. Neste ponto, a arte literária não difere das outras, nem mesmo dos simples misteres profissionais. Se cair alguém numa piscina e começar a mover os braços e pernas, poderá nadar. Mas se tomar um técnico, se seguir as regras dos movimentos, combinando-os com os da respiração, nadará mais perfeita e facilmente. A representação no teatro, o canto, a música ficarão realmente artísticos se os dons naturais do indivíduo forem desenvolvidos, aperfeiçoados pela técnica dos conservatórios. Da mesma forma, o falar, o expressar-se cotidiano se aperfeiçoa e encontra novos recursos de força expressiva após os exercícios técnicos da gramática, da oratória. A arte literária – a prosa menos, mais a poesia – não se circunscreve unicamente à inspiração, que é a essência; nem ao gosto, que é princípio dirigente. Catulo da Paixão Cearense, verdadeiramente inspirado, seria muito maior poeta se tivesse o auxílio da técnica que lhe faltou. Claro está que só a técnica nada consegue: de que adiantará ao cantor o conservatório se lhe faltar a voz? Que benefício trará a técnica ao poeta sem inspiração? Ferreira, Filinto Elyseo, Emílio de Meneses, Félix Pacheco foram produtos da técnica. Quem os lê? A técnica é o elemento auxiliar, ao passo que a essência é a inspiração acompanhada pelo gosto estético. Querer inverter estes dados, passando a técnica a essencial, todo o trabalho artístico estará morto. Quanto menor for a inspiração, quanto menos apurado for o gosto, tanto maior será a ajuda da técnica. Amadeu Amaral é um exemplo comprovante; Catulo da Paixão Cearense, outro. A este pouco auxiliou a técnica e foi grande poeta porque era veemente a sua inspiração. Àquele, os recursos da arte aumentaram e puseram em evidência a pequena centelha interior.

Silveira Bueno, Estilística Brasileira. São Paulo, Saraiva, 1964, p. 12.

domingo, 3 de agosto de 2014

Herta Müller fala sobre Eginald Schlattner


Herta Müller, escritora romena de língua alemã, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura em 2009, concedeu uma entrevista à revista berlinense Literaturen, na qual fala sobre Eginald Schlattner, autor de Luvas Vermelhas, romance recém-publicado no Brasil pela editora É Realizações. A exemplo de Herta Müller, Schlattner também aborda a vida sob o regime comunista em sua literatura. Luvas Vermelhas é um romance autobiográfico no qual o autor descreve as torturas a que foi submetido bem como os recursos de que lançou mão para não sucumbir ao desespero. 

A editora Acantilado, responsável pela edição espanhola da obra, disponibilizou em seu blog o trecho da entrevista que é reproduzida a seguir, em tradução minha. Confiram.




Luvas Vermelhas, de Eginald Schlattner


Depois do fracasso da revolução húngara de 1956, começou também na Romênia a caça aos “contrarrevolucionários”. Entre os prisioneiros, encontra-se um jovem estudante e escritor, do qual se exige informações sobre amigos e colegas – e até mesmo sobre seu próprio irmão. O leitor assistirá atônito a uma duríssima sucessão de interrogatórios em que o prisioneiro acaba cedendo e cometendo a delação. Carente de algo que justifique sua traição, aparecem diante dele, em sua cela na Securitate, os demônios de tempos passados, todos eles entre o abismo cortante do perigo e a nostalgia angustiada do que se perdeu. Segunda parte de uma grande trilogia sobre uma família transilvana iniciada em O Galo Decapitado (1998) e concluída com O Piano na Neblina (2005), Schlattner revela-se a nós um atento questionador da difícil luta pela integridade humana, assim como um minucioso cronista de anos obscuros. 

Eginald Schlattner (Arad, 1933) cresceu em Fogarasch (Transilvânia) e estudou em Klausenburg – até sua expulsão da universidade – Teologia, Matemáticas e Hidrologia. Em 1957 foi preso e em 1959 julgado por deslealdade e alta traição. Depois de libertado, trabalhou como jornalista e, mais tarde, como engenheiro. Em 1973 retomou os estudos de Teologia. Atualmente é pároco prisional e vive em Hermannstadt. 


Entrevista com Herta Müller, Prêmio Nobel de Literatura de 2009


Oferecemos um excerto da entrevista publicada no número 6 da revista berlinense Literaturen (2001), na qual a escritora romena de língua alemã Herta Müller fala sobre o serviço secreto, a destruição da Romênia e a traição de seu melhor amigo. 

Literaturen: Em seu romance autobiográfico Luvas Vermelhas, Eginald Schlattner descreve um processo judicial romeno com fins propagandísticos no final da década de 1950. Por outro lado, teus livros retratam o regime opressor da Romênia nos anos sessenta e setenta. Há alguma diferença? 

Herta Müller: Foram tempos completamente diferentes. Ao contrário de Schlattner, nunca estive na prisão. O serviço secreto sempre me detinha para interrogar-me, num período que se estendeu de 10 a 15 anos, e sempre ameaçava prender-me e levar-me a juízo, mas nunca chegaram a fazê-lo. Os dias dos processos propagandísticos haviam terminado. Mas os métodos persecutórios permaneceram iguais, ainda que as consequências tivessem mudado. 

Literaturen: Qual é a sua opinião sobre o comportamento de Schlattner ou, para sermos mais precisos, sobre a delação de cinco companheiros que seu herói autobiográfico faz no romance, submetido à pressão dos interrogatórios? 

Herta Müller: Não existe uma norma quando se trata de confissões obtidas sob tortura. As lesões corporais são a chantagem máxima. A dor se apodera do corpo e este deixa de estar sob nosso controle. As declarações são válidas somente até certo ponto. Ademais, Schlattner não foi uma testemunha real, foi mais um coadjuvante. São necessários alguns arquétipos para a reconstrução de um julgamento desse tipo. Está o promotor, o advogado e o réu, bem como uma testemunha, que tem um papel secundário. Sabemos de antemão o resultado; é um julgamento já decidido. Em primeiro lugar, é o veredito que conduz o processo, não o contrário. O veredito aparece no princípio, não no final do julgamento. Schlattner tem carregado como ninguém este peso durante várias décadas. E só depois da derrota de Ceauşescu foi possível escrever estes livros. Antes teria sido demasiado perigoso.