terça-feira, 25 de novembro de 2014

Sobre o ensino de literatura



Acho que todos se aproximam da literatura de acordo com seu interesse particular – o médico procura a doença, o ministro procura um sermão, o pobre procura dinheiro, e o rico procura justificação; se encontram o que desejam, ou pelo menos o que podem reconhecer, então julgam a obra de ficção de categoria superior.

***

É próprio da ficção encarnar o mistério por meio dos costumes, e o mistério é um grande estorvo para a mentalidade moderna. Perto do fim do século, Henry James escreveu que a mulher jovem do futuro, embora pudesse ser levada para passear numa máquina voadora, nada saberia sobre mistério e costumes. James não tinha nenhuma razão para restringir a previsão a um dos sexos; por outro lado, ninguém pode discordar dele. O mistério de que ele falava é o mistério de nosso lugar na terra, e os costumes são aquelas convenções que, nas mãos do artista, revelam o mistério central.


***

Não sei se considero os objetivos do professor de literatura elevados demais ou baixos demais quando sugiro que, ao menos em parte, sua missão é mudar a cara da lista dos mais vendidos.

Flannery O’Connor, “The Teaching of Literature”. In: Mystery and Manners (Eis aí a razão do título do livro)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Diário de oração



Quero amar a Deus de todo o coração. Ao mesmo tempo, desejo coisas que parecem contrárias a isso – quero ser uma exímia escritora. Qualquer sucesso tenderá a subir à minha cabeça – mesmo que inconscientemente. Se eu chegar a ser uma exímia escritora, não será porque sou uma escritora excelente, mas porque Deus me deu o crédito pelas poucas coisas que ele gentilmente escreveu através de mim.


Se começar com a alma, talvez os dons temporais que pretendo exercer tenham sua chance; se não tiverem, já terei o melhor em minhas mãos, a única coisa realmente necessária. Deus há de estar em toda a minha obra. Andei lendo Bernanos. É tão maravilhoso. Será que um dia saberei alguma coisa?

Flannery O’Connor, Diário de Oração

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A Igreja e o escritor de ficção


Tradução de “The Church and the Fiction Writer”,
artigo publicado em 30/03/1957 na America Magazine
Nota do editor
Quando “A Igreja e o Escritor de Ficção” veio a público em 30 de março de 1957, nos EUA, a georgiana Flannery O’Connor tinha acabado de completar 32 anos. Na época, seu romanceSangue Sábio(1952) e seus contos, alguns dos quais figuraram na Harper’s Bazaar, na The Kenyon Reviewna The Sewanee Review na Shenandoah (e que acabaram sendo publicados em A Good Man Is Hard to Find and Other Stories [1955]), foram aclamados nacionalmente, embora nem todos os críticos pudessem situar seu gênio com alguma precisão. Granville Hicks, por exemplo, escreveu em The New Leader, a respeito de A Good Man Is Hard to Find: “a Sra. O’Connor considera a vida humana vil e brutal e faz este julgamento desde o ponto de vista da ortodoxia cristã. Mas não é necessário acreditar no pecado original para ser abalado por suas histórias”.
Não surpreende que, depois de um de seus amigos sacerdotes, James McCown, S. J.,tê-la recomendado a Harold C. Gardiner, S. J., o editor literário de America Magazine, O’Connor enviasse um ensaio esclarecendo sua visão acerca da relação entre um escritor de ficção professamente católico e os princípios da Igreja Católica. Sua prosa tensa, sensível tanto ao mistério da presença de Deus no mundo quanto às obrigações de um escritor diante de sua tarefa, afirma que a fé de um escritor não necessariamente o limita, mas confere uma “dimensão acrescentada” a seu trabalho criativo, que deve ser julgado “pela veracidade e integridade dos eventos naturais apresentados”. Em seu ensaio, O’Connor mediu cuidadosamente sua argumentação e seu modo de expressão, e é compreensível que tenha se incomodado com o fato de o Padre Gardiner ter alterado um de seus parágrafos, o qual inserimos no texto abaixo entre colchetes. Publicamos este parágrafo original com nossas tardias desculpas.
Patrick H. Samway

A IGREJA E O ESCRITOR DE FICÇÃO

A pergunta a respeito de que efeito o dogma católico exerce sobre o escritor de ficção que é católico nem sempre pode ser respondida indicando-se a presença de Graham Greene entre nós. Não se deve pensar apenas nos dons que entraram nos trilhos, mas também nos que se desviaram pelo caminho e naqueles que nunca se desenvolveram. Algum tempo atrás, os editores da Four Quarters, uma revista trimestral publicada pelo La Salle College, na Filadélfia, publicaram um encarte especial sobre a morte dos escritores católicos entre os graduados em faculdades católicas. Em resposta, apareceram cartas de escritores e críticos, católicos e não católicos.

Essa correspondência variava desde a afirmação de Philip Wylie, segundo a qual “um católico, se for devoto, isto é, crente na autoridade da Igreja, é também alguém que passou por lavagem cerebral, quer perceba, quer não” (e consequentemente não tem a liberdade necessária para ser um escritor criativo de primeira linha), até à bastante repetida explicação de que o católico neste país padece de uma estética paroquiana e de um isolamento cultural. Uns poucos sustentavam que a situação entre católicos não era pior que entre outros grupos, uma vez que é sempre difícil encontrar mentes criativas; outros tantos sustentavam que nosso tempo é que é o responsável.

O corpo docente de uma universidade há de considerar que esse é um problema educacional; o escritor católico há de considerá-lo um problema pessoal. Quer seja graduado por uma faculdade católica, quer não, se entende a Igreja como esta entende a si mesma, o escritor deve avaliar o que esta lhe exige e se ela restringe sua liberdade. Sendo o material e o método da ficção o que são, o problema pode parecer maior para o escritor de ficção do que para qualquer outro.

Para o escritor de ficção tudo é posto à prova no olho, um órgão que acaba envolvendo a personalidade inteira e tanto do mundo quanto estiver ao seu alcance. O monsenhor Romano Guardini escreveu que as raízes do olho estão no coração. Em todo caso, para o católico, aquelas raízes se estendem até às profundezas do mistério que divide o mundo moderno – uma parte tenta eliminar o mistério, enquanto a outra tenta redescobri-lo em disciplinas pessoalmente menos exigentes que a religião.

O que o Sr. Wylie sustenta é que o escritor católico, porque crê em certo número definido de mistérios, não pode, pela natureza das coisas, enxergar com precisão; e essa afirmação não é, com efeito, muito diferente daquela feita por católicos que declaram que, por mais que o escritor católico veja, há certas coisas que ele não deve ver, nem com precisão nem de jeito nenhum. Estes são os católicos vítimas da estética paroquiana e do isolamento cultural; e é interessante encontrá-los compartilhando, ainda que por uma fração de segundos, a mesma base intelectual do Sr. Wylie.

Geralmente se supõe, e não menos entre católicos, que o católico que escreve ficção tem de usar sua ficção para provar a verdade de sua fé ou, pelo menos, provar a existência do sobrenatural. Ele pode fazê-lo. Ninguém é capaz de saber ao certo seus motivos, exceto na medida em que estes se insinuam na obra terminada; mas quando a obra terminada sugere que as ações pertinentes foram fraudulentamente manipuladas, omitidas ou abrandadas, quaisquer que tenham sido seus propósitos iniciais, eles já terão fracassado. O que o ficcionista descobrirá, se é que descobrirá alguma coisa, é que ele mesmo não pode mudar ou moldar a realidade em nome de uma verdade abstrata. O escritor aprende, talvez mais rapidamente que o leitor, a ser humilde diante daquilo que é. Aquilo que é é tudo o que ele possui; o concreto é o seu meio; e ele perceberá, por fim, que a ficção pode transcender suas limitações somente se submeter-se a elas.



A vida do mistério


Henry James dizia que a moralidade de uma peça de ficção depende da quantidade de “vida sentida” que há nela. O escritor católico, na medida em que tem a mente da Igreja, sentirá a vida desde a perspectiva do mistério cristão central; uma vida pela qual, com todo o seu horror, Deus achou que valia a pena morrer.

Para a mente moderna, como representada pelo Sr. Wylie, essa é uma visão deformada que “tem pouca ou nenhuma relação com a verdade tal como a conhecemos hoje”. O católico que não escreve para um círculo limitado de irmãos católicos levará em conta, muito provavelmente, uma vez que essa é a sua visão, que está escrevendo para um público hostil, e se preocupará, mais do que nunca, com que sua obra se sustente por suas próprias pernas e seja completa, autossuficiente e impecável por seu próprio mérito. Quando as pessoas me disseram que por ser católica não podia ser artista, fui obrigada a responder com pesar, dizendo: justamente porque sou católica é que não posso me dar ao luxo de ser menos que uma artista.

As limitações que qualquer escritor impõe à sua obra crescerão a partir das necessidades que se encontram no próprio material, e essas restrições geralmente serão mais rigorosas do que as que qualquer religião poderia impor. Parte da complexidade do problema para o ficcionista católico será a presença da Graça do modo como esta aparece na natureza; o que importa para ele aqui é que sua fé não se separe de seu senso dramático e de sua visão de como são as coisas. Entretanto, nos dias de hoje, ninguém parece mais ansioso em separar do que aqueles católicos que exigem que o escritor limite, no plano natural, o que ele se permite ver.



Natureza e Graça na ficção


Se se pudesse chegar ao leitor católico médio por meio da inundação de cartas ao editor e outros lugares onde ele às vezes se revela, encontraríamos algo próximo de um maniqueu. Ao separar tanto quanto possível natureza e graça, ele reduz sua concepção do sobrenatural a um clichê piedoso e só é capaz de reconhecer a natureza na literatura de duas formas: a sentimental e a obscena. Parece preferir a primeira, embora tenha mais autoridade na segunda, mas a semelhança entre as duas geralmente lhe escapa. Ele se esquece de que o sentimentalismo é um excesso, uma distorção do sentimento, em geral na direção de uma ênfase exagerada na inocência; e essa inocência, onde quer que seja enfatizada de modo excessivo na condição humana normal, tende, por alguma lei natural, a tornar-se o seu oposto.

Perdemos nossa inocência na Queda de nossos primeiros pais, e nosso retorno a ela se dá por meio da Redenção que nos foi trazida pela morte de Cristo e por nossa lenta participação nela. O sentimentalismo é um salto deste processo em sua realidade concreta e uma chegada precoce a um falso estado de inocência, que vigorosamente sugere seu oposto. A pornografia, por outro lado, é essencialmente sentimental, pois omite a conexão entre o sexo e seus propósitos inerentes, desconecta-o de seu sentido na vida e faz dele simplesmente um fim em si mesmo.

Tem-se feito muitas queixas bem fundamentadas a respeito da literatura religiosa, no sentido de que ela tende a minimizar a importância e a dignidade da vida aqui e agora em favor da vida no outro mundo ou em favor de manifestações miraculosas da graça. Quando é produzida de acordo com sua natureza, a ficção deve reforçar nosso senso do sobrenatural fundamentando-o na realidade concreta observável. Se o escritor usar seus olhos na verdadeira segurança de sua fé, ele será obrigado a usá-los honestamente, e o senso do mistério e a aceitação dele crescerão. Olhar para o pior dos males não será para ele nada mais do que um ato de confiança em Deus; mas o que é uma coisa para o escritor pode ser outra para leitor. Aquilo que leva o escritor à salvação pode levar o leitor ao pecado, e o escritor católico que vê essa possibilidade olha diretamente o rosto da Medusa e vira pedra.

Já alguém que tenha enfrentado o problema está equipado com o conselho de Mauriac: “purifique a fonte”. E, junto com tal conselho, ele toma consciência de que, enquanto tenta fazer isso, tem de continuar escrevendo. Também fica ciente de fontes que, relativamente falando, parecem bastante puras, mas podem dar origem a obras que escandalizam. O escritor pode sentir que é igualmente pecaminoso escandalizar instruídos e ignorantes. No fim, terá de parar de escrever ou limitar-se aos problemas próprios daquilo que está criando. É a pessoa que não pode seguir nenhuma dessas direções que se torna a vítima, não dos dogmas da Igreja, mas de uma falsa concepção das exigências que esta lhe faz.

[A tarefa de proteger as almas da literatura perigosa pertence propriamente à Igreja. Nem toda ficção, mesmo quando atende às exigências da arte, é adequada para o consumo de todos, e se em algum caso a Igreja considera conveniente proibir o fiel de ler uma obra sem permissão, o autor, se for católico, será grato pela disposição da Igreja de prestar-lhe este serviço. Isso quer dizer que ele pode limitar-se às exigências da arte.]

O autor deve, é claro, perceber que é sua função, não menos que da Igreja, proteger as almas da literatura perigosa. Mas no esforço para viver de acordo com as exigências legítimas de sua rotina, ele saberá que nem toda ficção é adequada para o consumo de todos. Se em alguns casos a Igreja julgar conveniente proibir ao fiel a leitura de uma obra sem permissão, o autor católico será grato por ter sido lembrado do senso de responsabilidade.1

O fato é que para muitos escritores parece mais fácil supor uma responsabilidade universal pelas almas do que produzir uma obra de arte; e considera-se melhor salvar o mundo do que salvar a obra. Essa visão provavelmente deve tanto ao romantismo quanto à piedade, mas o escritor não estará propenso a acolhê-la a menos que a tenham inculcado através de uma lastimável educação ou a menos que escrever não seja sua vocação principal. Que se lhe tenham inculcado isso pela atmosfera geral da piedade católica neste país é difícil de negar, e,ainda que não seja a responsável por todos os talentos assassinados ao longo do caminho, essa atmosfera é pelo menos geral o suficiente para dar um ar de credibilidade à concepção que o Sr. Wylie tem a respeito do que a crença num dogma faz com a mente criativa.



A dimensão acrescentada


Uma crença num dogma permanente não pode determinar o que acontece na vida do crente ou cegá-lo para essas coisas. Ela sem dúvida acrescentará à observação do escritor uma dimensão que muitos não podem, conscientemente, reconhecer; mas,enquanto o que puderem reconhecer estiver presente na obra, não podem alegar que qualquer liberdade tenha sido negada ao escritor. Uma coisa é uma dimensão subtraída; outra coisa é uma dimensão acrescentada, e o que o escritor e o leitor católicos devem lembrar é que a realidade da dimensão acrescentada será julgada numa obra de ficção pela veracidade e integridade no nível literal dos eventos naturais apresentados. Se espera revelar mistérios, o escritor católico terá de fazê-lo por meio de uma descrição sincera do que vê a partir de onde ele se encontra. Não se pode exigir dele uma visão puramente afirmativa sem limitar sua liberdade de observar o que o homem fez com as coisas de Deus.

Se pretendemos incentivar ficcionistas católicos, devemos convencer aqueles que seguem a Igreja de que esta não lhes restringe a liberdade de ser artistas, antes a garante (as restrições da arte são outra questão). Convencê-los disso requer, talvez mais que qualquer outra coisa, um corpo de leitores católicos capazes de reconhecer algo na ficção além das passagens que consideram obscenas.



Inteligência necessária


É bastante popular a ideia de que qualquer um que pode ler uma lista telefônica pode ler um conto ou um romance, e é mais do que comum encontrar a seguinte postura entre católicos: uma vez que temos a posse da verdade na Igreja, podemos usar essa verdade diretamente como um instrumento para julgar qualquer disciplina a qualquer momento sem levar em conta a natureza da disciplina propriamente dita. Leitores católicos constantemente ficam ofendidos e escandalizados por romances para cuja leitura, em primeiro lugar, não têm o mínimo preparo indispensável – e frequentemente essas obras estão permeadas por um espírito cristão.

É quando a fé individual é fraca, não quando é forte, que o leitor temerá uma representação ficcional honesta da vida; quando há uma tendência a compartimentalizar o espiritual e a fazê-lo residente apenas em certo tipo de vida, o sentido do sobrenatural está prestes a se perder. A ficção, feita de acordo com suas próprias leis, é um antídoto a tal tendência, pois renova nosso conhecimento de que vivemos no mistério do qual extraímos nossas abstrações. O ficcionista católico, enquanto ficcionista, buscará em primeiro lugar a vontade de Deus nas leis e limitações de sua arte e esperará que, se as obedecer, as demais coisas sejam acrescentadas à sua obra. A mais bem-aventurada dessas (e a única que ele pode esperar) será a satisfação do leitor católico.