domingo, 22 de junho de 2014

Romancista e crente

Por Flannery O'Connor

Kevin Christy, aqui.


Como sou romancista, e não filósofa ou teóloga, tenho de entrar nessa discussão num nível muito mais baixo e seguir por um caminho muito mais estreito do que o que me seria mais desejável. Para os fins deste simpósio, foi sugerido que concebêssemos a religião em sentido lato, como uma expressão da preocupação última do homem, em vez de identificá-la com o judaísmo, com o cristianismo institucional ou com “ir à igreja”.

Vejo a utilidade disso. É uma tentativa de ampliar a noção do que é uma religião e de como o religioso precisa ser exprimível na arte de nosso tempo. Mas sempre há o perigo de, ao tentar ampliar as ideias dos estudantes, acabemos por evaporá-las, e acho que nada neste mundo se presta à rápida evaporação quanto as preocupações religiosas.

Como escritora, a maior parte do meu trabalho é tornar tudo, mesmo uma preocupação crucial, o mais sólido, concreto e específico possível. O escritor começa seu trabalho no ponto em que o conhecimento começa – com os sentidos; ele trabalha com as limitações da matéria e, a menos que esteja escrevendo fantasia, tem de permanecer dentro das possibilidades concretas de sua cultura. Ele está vinculado a seu passado particular e às instituições e tradições que seu passado legou a sua sociedade. No ocidente, fomos formados pela tradição judaico-cristã. Estamos ligados a ela por fios que frequentemente podem ser invisíveis, mas que, ainda assim, estão lá. Essa tradição moldou o nosso secularismo; formou inclusive o molde do ateísmo moderno. De minha parte, devo permanecer bem dentro da tradição judaico-cristã. Tenho de falar, sem meias palavras, da Igreja, mesmo quando a igreja está ausente; de Cristo, mesmo quando ele não é reconhecido.

Quando alguém fala como cientista, creio que seja possível desconsiderar grande parte da personalidade e falar simplesmente como cientista; mas quando alguém fala como romancista, precisa falar da mesma maneira que escreve – com toda a personalidade. Muitos alegam que o trabalho de um romancista é mostrar-nos como o homem sente, e dizem que essa é uma operação em que seus próprios compromissos não interferem de maneira alguma. O romancista, como se diz, está em busca de um símbolo para expressar um sentimento, e se ele for judeu, cristão, budista ou o que quer que seja não faz diferença para a adequação do símbolo. Dor é dor, alegria é alegria, amor é amor, e essas emoções humanas são mais fortes do que qualquer simples crença religiosa; são o que são, e o romancista mostra-os exatamente assim. Isso é verdade até certo ponto, mas não dá conta de um romance. A grande ficção envolve todo o espectro do discernimento humano; não se trata simplesmente da imitação de um sentimento. O bom escritor não apenas encontra um símbolo para o sentimento, ele encontra um símbolo e um modo de fixá-lo que diz ao leitor inteligente se este sentimento é adequado ou inadequado, se é moral ou imoral, se é bom ou mau. E sua teologia, mesmo em seu mais remoto alcance, terá uma influência direta sobre ele.

Faz uma grande diferença para a feição de um romance se seu autor crê que o mundo veio à existência e se sustenta por um ato criativo de Deus, ou se crê que o mundo e nós mesmos somos produtos de um acidente cósmico. Faz uma grande diferença para o romance se seu autor crê que fomos criados à imagem de Deus ou se crê que fomos nós que criamos um Deus com nossas próprias mãos. Faz uma grande diferença se ele crê que nossa vontade é livre ou determinada como a dos outros animais.

Santo Agostinho escreveu que as coisas do mundo emanam de Deus de duas maneiras: intelectualmente, na mente dos anjos, e fisicamente, no mundo das coisas. Para a pessoa que crê nisso – como o mundo ocidental sustentou até poucos séculos atrás –, este mundo físico, sensível, é bom porque provém de uma fonte divina. O artista geralmente sabe disso por instinto; seus sentidos, que são usados para penetrar o concreto, assim o dizem. Quando Conrad disse que seu objetivo como artista era prestar a mais alta justiça possível ao universo visível, ele estava falando com o mais firme instinto de romancista. O artista penetra o mundo concreto a fim de encontrar em suas profundezas a imagem de sua fonte, a imagem da realidade última. Isso de forma alguma atrapalha sua percepção do mal, mas, ao contrário, a torna mais aguda, pois somente quando o mundo natural é visto como bom o mal se torna inteligível como uma força destrutível e uma consequência necessária de nossa liberdade.

Nos últimos séculos, temos vivido em um mundo cada vez mais convencido de que os limites da realidade terminam muito próximo da superfície, que não há uma fonte divina suprema, que as coisas do mundo não provêm de Deus de maneira dupla, nem de maneira nenhuma. Por quase dois séculos, o espírito popular de sucessivas gerações tem se inclinado mais e mais à visão de que os mistérios da vida por fim cairão diante da mente do homem. Muitos escritores modernos têm estado mais preocupados com o processo da consciência do que com o mundo objetivo fora da mente. Na ficção do século XX, cada vez mais, acontece de um mundo absurdo e sem sentido colidir com a consciência sagrada do autor ou da personagem; raramente, agora, autor e personagem saem para explorar e penetrar um mundo em que o sagrado está refletido.

No entanto, o escritor sempre tem de criar um mundo, e este deve ser crível. As virtudes da arte, como as virtudes da fé, são tais que vão além das limitações do intelecto, além de qualquer mera teoria que um escritor pode nutrir. Se está fazendo aquilo que como artista está obrigado a fazer, o romancista inevitavelmente sugerirá aquela imagem da realidade última conforme se pode vislumbrar em algum aspecto da situação humana. Neste sentido, a arte revela, e os teólogos aprenderam a não ignorá-la. Em muitas universidades, você encontrará departamentos de teologia cortejando intensamente os departamentos de inglês. O teólogo está interessado especificamente no romance moderno porque ali ele vê refletido o homem de nosso tempo, o descrente, que está, no entanto, agarrado de uma maneira desesperada e geralmente honesta com problemas intensos do espírito.

Nós vivemos em uma era descrente, mas que é notável e desequilibradamente espiritual. Há um tipo de homem moderno que reconhece o espírito em si mesmo, mas que deixa de reconhecer um ser fora de si a quem possa adorar como Criador e Senhor; consequentemente, ele tem se tornado sua própria preocupação última. Diz com Swinburne “Glória ao homem nas alturas, pois ele é o mestre das coisas”, ou com Steinbeck “No fim era a palavra e a palavra estava com o homem”. Para ele, o homem tem seu natural espírito de coragem, dignidade e orgulho e deve considerá-lo um ponto de honra a ser satisfeito com isso.

Há outro tipo de homem moderno que reconhece um ser divino que não ele mesmo, mas não acredita que este ser pode ser conhecido anagogicamente, definido dogmaticamente ou recebido sacramentalmente. Para ele, Espírito e matéria estão separados. O homem vagueia, preso em uma confusão de culpa que não é capaz de identificar, tentando alcançar um Deus do qual não pode se aproximar, um Deus incapaz de se aproximar dele.

E há um outro tipo de homem moderno que não é capaz de crer nem de conter-se a si mesmo na descrença e que busca desesperadamente, sentindo em tudo a experiência da perda de Deus.

Na melhor das hipóteses, nossa era é uma era de buscadores e descobridores e, na pior, uma era que tem domesticado o desespero e aprendido a conviver felizmente com ele. A ficção que celebra este último estado é a que tem menos chance de transcender suas limitações, pois quando a necessidade religiosa é banida com sucesso, ela geralmente atrofia, mesmo no romancista. O senso do mistério se esvai. Um tipo de evolução reversa se dá, e toda a gama de sentimento é embotado.

Os buscadores são outro assunto. Pascal escreveu em seu caderno: “Seu eu não O tivesse conhecido, não O teria encontrado”. Esses buscadores descrentes têm seu efeito mesmo entre aqueles de nós que acreditam. Começamos a examinar nossas próprias noções religiosas, para ressoá-las de forma genuína, para purificá-las no calor da agonia de nossos vizinhos descrentes. Que escritor cristão poderia ser comparado a Camus? Temos de procurar em muito da ficção de nosso tempo um tipo de sub-religião que expressa sua preocupação última em imagens que ainda não quebraram para mostrar qualquer reconhecimento de um Deus que se revelou. Tão grande quanto muito dessa ficção, tanto quanto ela revela um esforço sincero para encontrar a única verdadeira preocupação crucial, tanto quanto em muitos casos ela representa valores religiosos de uma ordem elevada, eu não acredito que ela possa adequadamente representar na ficção a experiência religiosa central – aquilo que, afinal, diz respeito a uma relação com um ser supremo reconhecido pela fé. É a experiência de um encontro, de um tipo de conhecimento que afeta todas as ações dos crentes. É a experiência de Pascal depois de sua conversão, e não de antes.

O que eu digo aqui estaria muito mais afim ao espírito de nossos tempos se eu pudesse falar para vocês sobre a experiência de escritores como Hemingway, Kafka, Gide e Camus, mas toda a minha própria experiência tem sido a do escritor que crê, de novo nas palavras de Pascal, no “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, não no deus dos filósofos e eruditos”. Este é um Deus ilimitado e que se revela de maneira específica. É aquele que se tornou homem e que levantou dentre os mortos. É um que confunde os sentidos e as sensibilidades, conhecido primeiramente como uma pedra de tropeço. Não há nenhuma maneira de encobrir essa especificação ou fazê-la mais aceitável para o pensamento moderno. Este Deus é o objeto da preocupação suprema e tem um nome.

O problema do romancista que deseja escrever sobre o encontro do homem com este Deus é como ele deve tornar a experiência – que é natural e sobrenatural ao mesmo tempo – inteligível, crível, ao leitor. Em qualquer época isso seria um problema, mas em nossa própria é quase insuportável. No público de hoje, o sentimento religioso se tornou, se não atrofiado, pelo menos nebuloso e piegas. Quando Emerson decidiu, em 1832, que não podia mais celebrar a Santa Ceia a menos que o pão e o vinho fossem removidos, deu-se um passo importante na vaporização da religião nos EUA, e o espírito daquele passo continua apressado. Quando o fato físico é separado da realidade espiritual, a dissolução da fé é, ao final, inevitável.

O romancista não escreve para expressar a si mesmo, não escreve simplesmente para apresentar a visão que ele considera verdadeira; ao contrário, ele apresenta sua visão de tal modo que ela possa ser transferida, o mais completamente possível, a seu leitor. Você pode seguramente ignorar o gosto do leitor, mas não pode ignorar sua natureza, não pode ignorar sua paciência limitada. Seu problema será cada vez mais difícil à medida que suas crenças se afastam das dele.

Quando escrevo um romance em que a ação central é um batismo, estou bastante consciente de que, para a maioria dos meus leitores, o batismo é um rito sem sentido e assim, em meu romance, tenho de conferir se este batismo causa suficiente admiração e mistério para sacudir o leitor em algum tipo de reconhecimento emocional de seu significado. Para este fim, tenho de direcionar o romance todo – sua linguagem, sua estrutura, sua ação. Tenho de fazer o leitor sentir em seus ossos, se em nenhum outro lugar, que algo importante está acontecendo aqui. A distorção, neste caso, é um instrumento; o exagero tem um propósito e toda a estrutura da história ou do romance foi feita de tal forma por causa da crença. Não é este o tipo de distorção que destrói; é o tipo que revela – ou deveria revelar.

Estudantes frequentemente têm a ideia de que os processos em operação aqui são dos que atrapalham a honestidade. Eles pensam que inevitavelmente o escritor, em vez de ver o que é, verá apenas o que crê. É perfeitamente possível, claro, que isso aconteça. Sempre, desde que o romance existe, o mundo foi inundado com uma má ficção pela qual o impulso religioso foi responsável.

O lamentável romance religioso surge quando o escritor supõe que, por causa de sua fé, está de alguma maneira dispensado da obrigação de penetrar na realidade concreta. Ele pensará que os olhos da Igreja, da Bíblia ou de sua teologia particular já terão construído a visão para ele, e que seu trabalho é rearranjar essa visão essencial em padrões satisfatórios, sujando-se o mínino possível no processo. Seu sentimento quanto a isso pode ser mais bem definido por uma daquelas teologias maniqueístas que vê o mundo natural como indigno de penetração. Mas o verdadeiro romancista, aquele com o instinto do que deve fazer, sabe que não pode se aproximar do infinito diretamente, que deve penetrar o mundo natural humano tal como ele é. Quanto mais sacramental a sua teologia, mais incentivo ele terá para fazer isso.

O sobrenatural é um embaraço hoje até para muitas igrejas. O viés naturalista saturou nossa sociedade a tal ponto que o leitor não percebe que ele tem de mudar sua visão ao ler algum tipo de ficção que trate de um encontro com Deus. Permitam-me deixar o romancista de lado por um momento e falar sobre seu leitor.

Este leitor tem, em primeiro lugar, de se livrar de um ponto de vista puramente sociológico. Nos anos 1930, passamos por um período nas letras americanas em que a crítica social e o realismo social eram considerados por muitos como os mais importantes aspectos da ficção. Ainda sofremos com uma ressaca desse período. Criei um personagem, Hazel Motes, cuja principal paixão era libertar-se da convicção de que tinha sido redimido por Jesus. A decadência do sul nunca entrou em minha cabeça, mas Hazel disse “eu viu” e “eu trazi” e ele era do leste do Tenessee; assim, a explicação de um leitor médio era que ele devia representar algum problema social peculiar àquela parte do sul não civilizado.

Dez anos, entretanto, têm feito alguma diferença em nossa atitude diante da ficção. A tendência sociológica se enfraqueceu naquela forma particular, mas sobreviveu em outra igualmente ruim. Esta é a noção de que o escritor de ficção está atrás de tipos. Eu não sei quantas cartas recebi dizendo que o sul não é, de maneira alguma, do jeito que eu o pintei; alguns me dizem que o protestantismo no sul não é como eu o retratei, que o protestante do sul nunca estaria preocupado, como Hazel Motes está, com as práticas penitenciais. É claro, como romancista, eu nunca quis caracterizar o Sul típico ou o protestantismo típico. O sul e a religião ali encontrada são extremamente fluidos e oferecem variedade suficiente para dar ao romancista a mais ampla gama de possibilidades imaginável, pois o romancista está obrigado pelas possibilidades razoáveis, não pelas probabilidades, de sua cultura.

Há um viés ainda pior que esses dois – o viés clínico, o preconceito que vê tudo o que é estranho como um caso de estudo do anormal. Freud trouxe à luz muitas verdades, mas sua psicologia não é um instrumento adequado para compreender o encontro religioso ou a ficção que o descreve. Qualquer determinação psicológica, cultural ou econômica pode ser útil até certo ponto; aliás, tais fatos não podem ser ignorados, mas o romancista estará interessado neles somente à medida que for capaz de passar por eles para dar um sentido de algo além deles. Quanto mais aprendemos sobre nós mesmos, mais fundo no desconhecido empurramos as fronteiras da ficção.

Tenho observado que a maior parte da melhor ficção religiosa de nosso tempo é mais chocante exatamente para aqueles leitores que alegam ter um intenso interesse em encontrar mais “propósito espiritual” – como gostam de dizer – nos romances modernos do que no momento podem detectar neles. O leitor de hoje, se crê na graça, a vê como algo que pode estar separado da natureza e pode ser-lhe servida crua como um êxtase instantâneo. A palavra favorita deste leitor é compaixão. Não quero difamar a palavra. Há um sentido melhor em que ela pode ser usada, embora raramente o seja – o sentido de estar em angústia com e para a criação em sua sujeição à vaidade. Este é um sentido que implica um reconhecimento do pecado; este é um sofrer com, mas que não abranda a rigidez e não faz concessões. Quando infundida nos romances, é geralmente repugnante. Nosso tempo não vai buscá-lo.

Já falei bastante sobre o sentimento religioso de que carece o público moderno, e ao objetar-me, pode-se indicar que há um verdadeiro retorno dos intelectuais de nosso tempo a um interesse em religião e a um respeito por ela. Acredito que isso seja verdade. No futuro saberemos em que este interesse pela religião resultará. Pode, junto com o novo espírito ecumênico que vemos por toda parte ao nosso redor, proclamar uma nova era religiosa, ou pode ser simplesmente que a religião sofra a última degradação e se torne, por algum tempo, um modismo. O que quer que signifique para o futuro, não creio que nossa sociedade atual seja uma em que as crenças básicas sejam religiosas, exceto no Sul. De qualquer maneira, não se pode ter uma alegoria efetiva em tempos em que as pessoas são assoladas de uma forma ou de outra por convicções momentâneas, porque todos a lerão de modo diverso. Não se pode indicar valores morais quando a moralidade muda com o que está sendo feito, pois não há uma base comum de julgamento aceita. E não se pode mostrar a ação da graça quando a graça é extirpada da natureza ou quando toda possibilidade de graça é negada, pois ninguém terá a menor ideia do que você está falando.

O escritor sério sempre toma o vício, na natureza humana, como seu ponto de partida, geralmente o vício numa personagem em outros aspectos admirável. O drama geralmente se baseia no fundamento do pecado original, quer o escritor pense em termos teológicos, quer não. Então, também, supõe-se que qualquer personagem num romance sério detém uma carga de sentido maior do que ele mesmo. O romancista não escreve sobre pessoas no vácuo; escreve sobre pessoas em um mundo em que algo está flagrantemente ausente, em que há o mistério geral da incompletude e a tragédia particular de nossos tempos a ser demonstrada, e o romancista tenta transmitir, em forma de livro, uma experiência total da natureza humana de qualquer tempo. Por essa razão, os maiores dramas naturalmente envolvem a salvação ou a perda da alma. Onde não há fé na alma, há muito pouca carga dramática. O romancista cristão se distingue de seus pares pagãos por reconhecer o pecado como pecado. Conforme a sua herança, ele não o vê como doença ou acidente do ambiente, mas como a escolha responsável da ofensa contra Deus que envolve seu futuro eterno. Ou se leva a sério a salvação ou não. E é bom perceber que a maior medida de seriedade admite a maior medida de comédia. Somente se estivermos seguros de nossas crenças poderemos ver o lado cômico do universo. Uma das razões por que boa parte de nossa ficção contemporânea é mal-humorada é que muitos desses escritores são relativistas e têm de continuamente justificar as ações de suas personagens numa escala móvel de valores.

Nossa salvação é um drama representado com o diabo, um diabo que não é simplesmente o mal generalizado, mas uma inteligência má determinada por sua própria supremacia. Eu acho que, se escritores com uma visão religiosa do mundo se sobressaem nesses dias no retrato do mal, é porque eles têm de tornar sua natureza inconfundível com a de sua audiência particular.


O romancista e o crente, quando não são o mesmo homem, ainda mantêm muitos traços em comum – uma desconfiança do abstrato, um respeito pelos limites, um desejo de penetrar a superfície da realidade e de encontrar em cada coisa o espírito que o faz ser o que é e sustenta o mundo unido. Mas eu não acredito que tenhamos uma grande ficção religiosa até que tenhamos de novo a feliz combinação de um artista crente e uma sociedade crente. Até que chegue esse tempo, o romancista terá de fazer o melhor que puder no trato com o mundo que tem. No fim, ele pode verificar que, em vez de refletir a imagem no coração das coisas, ele apenas refletiu nossa condição decaída e, por meio dela, a face do mal pelo qual estamos todos possuídos. É uma realização modesta, mas talvez necessária.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Sócrates e Jesus Cristo



Seria lógico que a morte do Sócrates-homem tivesse o sinete da desordem, do sangue, da traição e da raiva; mas não, foi o mais possível tranquila e digna. A de Cristo, ao contrário, tem – inteiramente – o sinete da tragédia, do desgosto e do horror. Sócrates morre calmo, cercado de discípulos fiéis e atentos, que lhe sorvem as palavras ao mesmo tempo em que ele – imperturbável e luminoso – sorve o veneno indolor oferecido com muita deferência pelo algoz. Abandonado e traído pelos seus, Cristo se retorce na cruz, angustiado pela sede e coberto de zombarias. Sócrates morre como um senhor. Cristo como um vadio, entre dois ladrões, num lugar descampado, periférico. Sócrates agradece aos deuses por escapar das vicissitudes do mundo material, Cristo exclama: “Por que me abandonaste?”.

A diferença é total entre as duas mortes, e exatamente a divina parece inferior, turva. A verdade é que, sem dúvida, é a mais humana; a de Sócrates, em toda a sua grandeza, parece – em contraste – literária, abstrata, submetida a uma direção teatral e, mais ainda, irrealista. Sócrates – com boa fé e vitorioso em boa parte – se eleva do estado de homem para o de deus; Cristo desce desimpedido pela imundície até as camadas mais baixas da condição humana.


Nicolae Steinhardt, O Diário da Felicidade. Trad. Elpídio Fonseca. São Paulo, É Realizações, 2009, p. 112.