quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O marxismo do século XX


Adolpho Crippa, “O marxismo do século XX”. In: Convivivm: revista de investigação e cultura. São Paulo, maio-junho de 1969, p. 232-35.

Lendo alguns comentários a respeito do recente XIV Congresso Internacional de Filosofia, realizado em Viena, vieram-me à mente algumas reflexões. O marxismo foi o tema predileto de muitas teses, comunicações, discussões e conversas. Muitos participantes concordaram na afirmação de que “o marxismo é o humanismo do século XX”! Superado no plano da realidade humana, ultrapassado no plano da realidade histórica, o marxismo surge como uma extraordinária força de doutrina de salvação. O fato merece atenção e reflexão. A insuficiência prática do marxismo na edificação de uma sociedade humana pacificada, longe de ter abalado, aumentou a fé e o entusiasmo de muitos intelectuais.

O primeiro fato, no entanto, digno de nota é a multiplicidade de teorias e interpretações marxistas. Já não há um “marxismo ortodoxo” como o imposto pela União Soviética das eras leninista e stalinista. Lenin fez da doutrina de Marx o suporte teórico da revolução russa.[1] Outros teóricos buscam realizar a mesma proeza demonstrando que o marxismo é, antes de mais nada, uma visão filosófica do mundo, na qual é preciso crer mais ou menos dogmaticamente e à qual as realidades devem ser forçosamente adequadas. 


Os marxistas dos nossos dias, porém, acostumaram-se a agir com muita liberdade dentro do marxismo, mais preocupados com a “revolução” do que com a fidelidade doutrinária ou com a afirmação do sistema. Esta situação agravou-se a tal ponto nos últimos anos que, ao final das contas, tudo pode ser dito em nome do marxismo. O “livre exame” marxista nos conduz aos caminhos mais contraditórios.


Não basta dizer que, mudadas as circunstâncias, é necessário mudar o marxismo. Não é suficiente dizer que muitos elementos do marxismo devem mudar porque os fatos e a razão demonstraram falsos. No caso marxista não se pode aplicar o princípio “devemos ser marxistas como seria Marx em nossa época”. Exatamente porque em nossa época Marx não seria marxista. É muita vontade de ser marxista dizer que, mudadas as circunstâncias econômicas, sociais, filosóficas e políticas, devem-se suprimir os princípios sistemáticos, para salvar o que permanece válido. Em primeiro lugar, porque o marxismo, sendo uma doutrina historicista, está vitalmente ligado às circunstâncias vistas ou previstas. Em segundo lugar, porque é imprescindível examinar a relação entre o que deve ser abandonado e a totalidade do sistema. Se as teses superadas são a própria essência do marxismo, é difícil imaginar como se possa salvar ou atualizar o marxismo. É claro, para o marxista sempre será essencial o que restar após a depuração da história e da razão! Mas esta atitude já não é marxista, porque o marxismo se apresenta como ciência e não como fé.


Nos últimos anos, os marxistas insistiram na tecla do humanismo. Abandonando as obras da maturidade, releram os escritos da juventude hegeliana de Marx e descobriram os valores do humanismo dialético e materialista. Garaudy, Sartre e muitos outros[2] exaltaram com entusiasmo o humanismo marxista. Hoje todos se encontram em pânico. De um lado, pela insuficiência interna de um humanismo terrenista que não encontra justificação em si mesmo. De outro lado, pelo sucesso do estruturalismo. Garaudy, no seu estudo “Estruturalismo e a morte do homem” luta para salvar o “homem” da ameaça estruturalista, como se o estruturalismo matasse alguém. Dizer que o homem produz o humano, que o homem cria as línguas, os mitos e as religiões, organiza a sociedade e as próprias estruturas, como fez Garaudy, é dizer o óbvio. Mas se o homem é produto do homem alguma “estrutura” deve preceder o próprio homem, alguém deve precedê-lo. Em todo caso, os estruturalistas criarão certamente muitos problemas ao humanismo marxista que não pode buscar uma justificação fora de si mesmo e do sistema.[3]


Muitos marxistas já reconhecem a impossibilidade de salvar o sistema dialético como explicação de todo o real, uma vez que as ciências modernas (física, biologia, psicologia, astrofísica, química) demonstram a cada dia que a realidade é mais complexa do que os três movimentos da dialética hegeliana.[4] E a realidade histórica não é muito mais complexa do que a realidade física? Quem pode negar a interferência do livre-arbítrio no acontecer histórico? Surge então a pergunta: se o materialismo dialético e o materialismo histórico não explicam a realidade mundana e humana, o que resta do marxismo? Outros marxistas vão mais longe. Sem dialética não pode haver luta entre classes; sem a oposição das classes a ideologia não tem sentido; sem a ideologia do proletariado o sonho da revolução mundial cai por terra. Haverá algum marxista que sonhe com o paraíso terreal, ao termo da revolução? Paraíso sem Estado, sem propriedade privada, sem necessidades diferentes? Haverá ainda historiadores que dividam a história humana nos grandes períodos: coletivismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo e comunismo paradisíaco?


Não sei, na verdade, como ficaria o marxismo que se contentasse em ser antirreligioso e naturalista, afirmando os valores do homem e do trabalho em vista de um mundo mais humano. Sem os pressupostos sistemáticos, acima referidos, tudo isso deixa de ser marxismo. O sonho de Prometeu é muito anterior a Marx e perturba as noites de todos os homens. Querer fazer do marxismo um mero “prometeísmo” é, mais uma vez, muita vontade ser marxista.


Estas reflexões levaram-me a reler o Epílogo que Marcuse escreveu em 1954 ao livro “Reason and Revolution”. Marcuse reconhece que a tentativa de Marx teve a mesma sorte que a de Hegel. A Razão, quer como Espírito quer como Revolução, acabou colaborando na construção da sociedade repressiva. Escreve Marcuse: “Marx acreditava que a sociedade industrial havia criado as condições prévias para a realização da Razão e da Liberdade, e que apenas a organização capitalística desta sociedade impedia a realização das mesmas. A plena maturidade das forças produtivas, o domínio sobre a natureza, a grande riqueza material – suficiente para satisfazer, pelo menos, as necessidades básicas de todos os membros da sociedade, ao nível cultural atingido – todos esses eram os requisitos prévios do socialismo; e estes estavam criados. Entretanto, a despeito deste laço substancial entre a produtividade capitalista e a liberdade socialista, Marx pensava que só uma revolução e só uma classe revolucionária poderiam levar a termo a transição”.[5] Toda revolução, porém, tem um antes e um depois. Continua Marcuse: “A importância decisiva dada à relação entre o proletariado pré-revolucionário e pós-revolucionário só ficou demonstrada depois da morte de Marx, quando da transformação do capitalismo livre em capitalismo dirigido. Foi este desenvolvimento que transformou o Marxismo em Leninismo e que determinou o destino da sociedade soviética: seu progresso sob uma nova forma de produtividade repressiva. A concepção de Marx do proletariado ‘livre’ como negação absoluta da ordem social estabelecida liga-se ao modelo do capitalismo ‘livre’; ao modelo de uma sociedade em que a livre ação das leis e relações econômicas básicas fariam aumentar as contradições e tornar o proletariado industrial a vítima principal e, ao mesmo tempo, o agente autoconsciente de uma solução revolucionária”.[6] A força revolucionária acabou absorvida pelo próprio sistema da produtividade ou da sociedade em crescimento. Nos países industriais avançados “as contradições internas foram sendo dominadas por uma organização progressivamente eficiente, e a força negativa do proletariado foi sendo progressivamente reduzida”. Não somente uma pequena “aristocracia operária”, mas a maior parte das classes trabalhadoras tornou-se parte positiva da sociedade estabelecida”.[7] Marx também foi vencido pela Razão. A produtividade e a tecnologia resolveram os problemas que garantiam a Revolução. Supusera-se que não apenas o empobrecimento, mas o empobrecimento em face da produtividade social crescente faria do proletariado uma força revolucionária. O conceito marxista de empobrecimento implica a consciência das potencialidades bloqueadas dos homens, e da possibilidade de sua realização – a consciência, portanto, da alienação e da desumanização. Mas, por essa época, o desenvolvimento da produtividade capitalista freou o desenvolvimento da consciência revolucionária. O progresso tecnológico multiplicou as necessidades e as satisfações e a utilização deste progresso tornou as necessidades, e também a satisfação das mesmas, repressivas: estas é que garantem a submissão e o domínio”.[8] Marcuse tem todo o direito de acreditar numa “forma diferente de Razão e Liberdade, sonhada tanto pelo idealismo dialético como pelo materialismo”,[9] assim como os demais marxistas têm todo o direito de acreditar nas forças da Matéria, da História, do Proletariado, da Revolução. Mas a esta altura já estamos fora do domínio da ciência e da própria razão.


[1] G. Wetter insistiu no Congresso de Viena na distinção entre Marxismo e comunismo histórico.
[2] Alguns não marxistas, como Lacroix e Mondolfo, também se entusiasmaram com os escritos do jovem Marx.
[3] E a todos os humanismos terrenistas ou apenas humanos.
[4] G. Wetter examina as dificuldades das cientistas soviéticos em adaptar seus estudos e descobertas às exigências do materialismo histórico no livro Filosofia y Ciencia em la Union Sovietica, Mardird, 1968.
[5] Herbert Marcuse, Razão e Revolução. Trad. M. Barroso. Ed. Saga, 1969, p. 400-01.
[6] Ididem, p. 401-02.
[7] Ididem, p. 402.
[8] Ididem, p. 402-03.
[9] Ididem, p. 405.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Cardeal Newman, na Revista Terminal

Só de olhar o conteúdo da revista, já começo a temer não conseguir me manter à altura dela. Vida longa à Revista Terminal. Nesta edição, traduzo um "Fragmento sobre o ceticismo", do Cardeal John Henry Newman. Reproduzo abaixo um trecho e o link do pdf:


A tendência de uma era de pensamento, vista como divorciada da influência da religião, é cair num estado de ceticismo, assim como a tendência de uma era de ignorância [...] é cair na superstição. De fato, e mesmo do ponto de vista histórico, tanto a estagnação quanto a atividade do pensamento têm sido hostis à verdade divina; não decerto por algo que lhes é intrínseco – pois a religião realmente é favorecida pela livre investigação, embora possa prescindir dela –, mas porque há em operação princípios mais profundos e mais sutis de nossa natureza, os quais, no estado de guerra contra a religião que lhe é peculiar, fazem uso da livre investigação ou da obstinação irracional como seus instrumentos. Orgulho, sensualidade, egoísmo, mundanismo, desconfiança de Deus e semelhantes maus princípios são os verdadeiros inimigos da religião; e, como estes são o espírito dominante de todas as eras do mundo, a forma que sua hostilidade assume contra ela, numa era de ignorância, é a superstição; numa era de investigação, é o ceticismo.