quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Mendo Henriques e a filosofia da Consciência

Não é que eu esteja fazendo propaganda gratuita para os outros; tampouco estou divulgando o evento com vistas à autopromoção só porque, enfim, trabalhei nos três volumes da História das Ideias Políticas de Voegelin. Mas o fato é que o evento tem tudo para ser uma oportunidade ímpar para a divulgação das ideias de Eric Voegelin. Mais do que isso: pode ser uma oportunidade de esclarecer dúvidas que se acumulam, uma vez que já há brasileiros que estudam a obra de Voegelin e que talvez sintam falta de informações adicionais ou de uma visão de conjunto de toda a obra voegeliniana. O professor Mendo Henriques pode ser um auxílio e tanto para esses esclarecimentos.

Pois bem, no primeiro dia, o tema é a História das Ideias Políticas. No segundo dia, o escopo da palestra é mais abrangente e tratará da filosofia da consciência, passando por autores como Bernard Lonergan, René Girard, Paul Ricoeur e Kierkegaard.

Por fim, no terceiro dia, a proposta é um pouco mais amena. Mendo Henriques e Nazaré Barros escreveram uma introdução à filosofia com a proposta de ser, digamos, pouco traumática. E o professor Mendo falará da obra. Fica o convite. Para mais informações, clique aqui.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Mais Pleșu no Brasil

FLORIN CIUBOTARU

Por Andrei Pleșu

Biografia

Nasceu em Focșani em 1939, Romênia. Estudou no Instituto de Arts Plastiques "Nicolae e Grigorescu", Bucareste, e pintura e marketing, em 1963.


Florin Ciubotaru pode passar sem vitórias, mas gosta muito de partir para batalhas. Ambicionar píncaros de glória é ser complacentemente burguês; para ele, o valor real está em participar do alvoroço prazeroso dos ataques, ou tramar alguma perigosa emboscada contra fortificações invencíveis. Consequentemente, suas exposições não são de maneira alguma conclusivas e finais, mas tentativas para deixar energias autossuficientes se desenvolverem através de um processo cuja etapa decisiva é difícil prever antecipadamente. Convoca agora um exército de obras para sitiar o cume da tradicionalmente chamada arte do retrato. Embora retratos apareçam copiosamente em todos os estilos, os “experts” geralmente concordam que a genuína arte do retratista apenas raramente prosperou, enquanto que em nossos dias tem sido evidentemente negligenciada. Logo de início, os retratos concentravam-se menos sobre os indivíduos e mais em certas categorias (Faraós do antigo Egito, por exemplo). Além disso, durante o século passado, transformou-se lentamente – em pretexto para aplicação formal. Tivemos períodos interessantes dessa arte. Refiro-me à idade áurea do Império Romano, à Renascença, o século XVII da pintura holandesa e flamenga e algumas décadas do século XIX. Entretanto, por mais auspiciosos que tenham sido esses períodos, a pintura de retratos viu ainda seu prestígio diminuído pelas funções mundanas, em que o pintor ilustrava vidas particulares ou satisfazia as vaidades de famílias abastadas.

Nos tempos modernos, grandes pintores reassumiram a prática dos retratos, revertendo aquela ênfase dada à necessidade de imitação em favor das exigências de interpretação, as quais reavaliaram o tratamento profissional do tema. Mario Prassions vê fisionomias em todos os lugares, “no bolor das paredes, no cascalho das alamedas, no contraste de tons das folhagens, nas lajes de mármore dos edifícios ...” Em outras palavras, o retrato transforma-se de imagem mimética em imagem analógica. Evidencia ainda algo parecido com um rosto, mas insinuando uma semelhança indefinida.

Os “retratos” de Florin Ciubotaru são esses rostos destituídos de qualquer semelhança. A abordagem que faz parece-me mais audaciosa e mais sutil, onde a semelhança não é perdida, mas virtual. Em seus trabalhos, as feições parecem contorcer-se para readquirirem a forma humana. Os artistas modernos dão a impressão de serem incapazes de notar as pessoas ao seu redor. Surpreendentemente, Ciubotaru nada vê, exceto seres humanos. Um Arcimboldo revivido, ele encontra novas maneiras de identificar todos os traços humanos possíveis em toda parte de nosso universo. Seus retratos preparam a futura ascensão da fisionomia humana sob a aparência de montanha, flor, rostos celulares, geológicos, galácticos, feições na forma de um jardim ou carta, figuras aquosas ou aéreas, algumas em erupção como um vulcão, outras com sulcos e saliências como um precipício, cabeças-paisagem com gigantescas órbitas como nos trabalhos de Koninck, rostos minerais e geométricos, natureza morta. A cabeça humana reduzida a eixos principais e seu contorno circular podem facilmente tornar-se a própria configuração do mundo e também o manual mais prático da arte de pintar. Tudo no mundo é um rosto, Ciubotaru parece dizer. De qualquer forma, tudo o que existe anseia por corporificação, da mesma maneira que o losango em algumas composições anseia pela redondez do círculo. Baseada numa simetria fundamental, a face legitimamente representa a máscara orgânica de um código inflexível, quase imperceptível. O homem é apenas a pulsação de uma partícula geométrica: um rigor em florescência, um delicado cristal colorido – o halo de uma lei.


 Na exposição de Florin Ciubotaru não percebemos nenhuma devoção “humanitária” inferior e nenhum antropomorfismo vulgar. Sua visão apela para as antigas fontes, onde o homem age como um espelho miniaturizado do mundo, ao passo que o mundo é apenas uma analogia ampliada do homem. De acordo com esta visão, o universo é um homem gigante, uma grande face (Arikh Anpin da Kabala) do homem terrestre. Cada anatomia é uma cosmologia e, reciprocamente, cada evento cósmico é fisiológico, isto é, pertence à história do homem. Intuitivamente sintonizado com esta tradição, não mais insiste na “expressividade”, “restauração do indivíduo”, “fidelidade” ao modelo ou símiles líricas. Porém, mais apropriadamente, recupera a humanidade do stratum primitivo da realidade, onde objeto e sujeito, e “espírito objetivo” ainda não foram divididos. Há humanidade mais além do homem, diz o artista.

Este amplo escopo foi indubitavelmente alcançado gradativamente. É hábito de Ciubotaru adotar para suas exposições uma disposição honesta e descontraída de todos os estágios, trabalhos terminados juntamente com esboços e modelos de pura premonição. O mesmo acontece aqui: os trabalhos mais recentes estão colocados ao lado das tentativas iniciais, esboços simples e um tanto quanto incertos, mais obviamente resultantes do retrato clássico. Se a exposição em sua totalidade é autêntica e atraente, deve-se isto também à oportunidade dada aos espectadores de compreender o longo caminho percorrido e a gradual depuração conseguida na busca. Mais interessante fica à medida que a mão do pintor aparece segura e ágil mesmo quando a ideia é ainda hesitante. Certamente, o artista é um profissional completo a julgar somente pela rica substância de cores parecendo fibras, pelas tensões das estruturas, campos alternadamente espessos e transparentes e os redemoinhos levemente assimétricos em torno da simetria usualmente bem estável de suas composições. Não estamos certos ainda quanto à escolha de qual fortaleza ele está assediando. Mas o ardor empregado, por si só, já é uma conquista compensadora.

O livro, veneno e antídoto



Discurso de abertura da Feira do Livro de Leipzig, que teve a Romênia como tema principal, em 1998.

No país de onde eu venho, nos anos 1980, quem tivesse uma máquina de escrever era tratado como um criminoso – em potencial. Todo ano era obrigado a copiar uma página do texto de um discurso de Ceauşescu sobre os prazeres da vida sob o regime comunista. O possuidor da máquina devia comparecer diante de uma repartição policial com esta página datilografada, que servia para a imediata identificação dos tipos, e com a própria máquina, para obter a permissão de uso, válida por um ano. Se você não tivesse essa permissão, que lhe conferia o direito de usar a sua própria máquina de escrever, era passível de sanções penais. Esta é uma das muitas possíveis explicações para a inexistência de uma literatura de samisdats [clandestina] na Romênia.

A ironia, a amarga ironia encerrada nesta situação, consistia em que tal absurdo só foi possível devido à autoridade conquistada na Europa por um texto altamente explosivo, um livro extremamente subversivo: O Manifesto do Partido Comunista. O ódio diante de todo e qualquer texto foi incentivado pela idolatria de um determinado texto. O texto ao qual estou me referindo começa com a famosa frase: “Um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo...” Ora, graças ao êxito retumbante deste texto, no mundo comunista tudo se tornou sombrio, fantasmagórico – tudo, menos o próprio fantasma. A cultura tornou-se uma quimera, a propriedade também. O materialismo levou ao desaparecimento da matéria; a ideologia levou à repressão das ideias; o culto à liberdade revolucionária levou à supressão de todas as liberdades. Um punhado de livros de Marx e Engels, Lênin e Stálin, pôs finalmente em questão todo o universo do livro. Dizem que uma mulher de verdade, por sua mera atitude, pela sua presença, neutraliza todas as outras. Mas quando se trata de livros, a situação é, na minha opinião, exatamente a oposta. Um livro legítimo, um livro de verdade, abre o caminho de todos os outros livros. Mas se, pelo contrário, um livro assume o objetivo de se tornar o livro único, o único habitante das bibliotecas e das almas, então este é um livro perigoso. Um livro que contradiz a própria essência do livro.

A partir desse ponto de vista, o comunismo pode ser considerado como o motivo de uma guerra gigantesca e invisível, a guerra do livro de livre escolha contra o livro imposto. Dito de outra forma, sob o comunismo, nós todos fomos testemunhas dos esforços desesperados dos livros para readquirir o seu rosto, para fazer justiça a sua essência. O livro-veneno, o livro envenenador, era obrigado a se apresentar com sinal invertido à sua imagem espelhada, ao livro-salvação, ao livro-salvador.

A nossa presença aqui, nesta renomada Feira do Livro de Leipzig, é justamente a consequência desta disputa, é a história da nossa resistência contra o livro ditatorial, através do livro amistoso, libertador, salvador. Combater o livro com o livro, vencer o livro com o livro... Essa foi a nossa salvação, a nossa ressurreição. O livro bom contra o livro mau. O livro conseguido e lido clandestinamente contra o livro imposto, arbitrariamente prescrito, detestado. O comunismo – como, aliás, toda ditadura – é uma espécie de esquizofrenia do livro. A própria nomenclatura tem uma peculiar relação de amor e ódio para com o livro.

Aquele que mal domina a escrita torna-se chefe – do Partido ou do Estado – e quer aniquilar o intelectual. Antes, porém, ele tenta seduzir os intelectuais, trazê-los para o seu lado, imitá-los. Ele, que quase não sabe ler, quer virar autor, quer ver o seu nome nas lombadas da longuíssima série de volumes de uma Obra Completa.

Os quadros da nomenclatura esforçam-se constantemente em provar a si mesmos e aos outros que podem medir-se com as elites intelectuais. Têm um pavor quase que supersticioso diante da palavra escrita. E, como o livro de propaganda pode exercer influência, fica mais do que claro que também o livro de protesto é eficiente. É por isso que precisa ser introduzida a censura. A censura é, paradoxalmente, um sinal do respeito do ditador diante da palavra e do livro em geral.

A vida cultural sob o domínio das ditaduras caracteriza-se por um significativo encadeamento de atitudes equívocas. Quase ninguém lê os livros obrigatórios. Depois da guerra, os clássicos do marxismo-leninismo foram lidos mais intensamente no Oeste do que no Leste. Pelo contrário, a leitura dos livros proibidos é o prazer arriscado e plenamente degustado de todos, inclusive dos quadros do Partido, que podem se permitir o privilégio de ter acesso a estes livros. Por seu lado, os escritores aperfeiçoam a arte de espreitar a censura – ou de barganhar com ela. Aos censores resta a recôndita satisfação de passar por cima de algumas licenças políticas... e assim, sentem-se no papel de dissidentes.

Também a relação entre proibição e reabilitação caracteriza-se por um dinamismo dificilmente previsível. Autores que ontem eram indefensáveis amanhã serão astros ideológicos – e vice-versa. Mesmo o discurso anti-russo que Ceauşescu pronunciou em 1968 foi incluído em fins da década de 1970 – devido à diligência do aparato – na categoria dos textos “não acessíveis” (textos que ficaram protegidos num fundo secreto). Mas, em fins da década de 1980, Heidegger tornou-se “acessível”. Ninguém menos do que a Editora Política publicou a tradução, com uma tiragem de perto de 40.000 exemplares!

Falei dos livros-veneno e dos livros-salvação. Do jeito como um país, ou uma região inteira do mundo, podem ser assassinados por um livro, e do jeito como a ressurreição é possível através de outros livros. Às vezes, porém, um mesmo livro foi tanto veneno quanto antídoto, tanto perdição quanto salvação. Um livro bom, lido e emprestado de boa fé para outros, podia se transformar em passagem para o inferno para todos os seus leitores. No fim da década de 1950, um comentário manuscrito da Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie dês Geistes), ou uma carta de E. M. Cioran, lida em voz alta a um grupo de amigos, eram elevados à categoria de complô contra a segurança nacional. Os culpados eram presos e condenados rapidamente a longas penas de prisão. A mais inocente das leituras podia, portanto, ter as mais sangrentas consequências.

Na prisão, contudo, a salvação vinha também através dos livros. Através daqueles livros que cada prisioneiro contava sussurrando aos seus companheiros de cela, quando eles não estavam sendo interrogados ou executando trabalhos forçados.

Cabe acrescentar que, na prisão, o livro também podia servir de castigo. Pouco antes de sua soltura, concedia-se aos intelectuais o direito à leitura, com a finalidade de sua “reeducação”. Claro que não era um direito a ler qualquer coisa, mas apenas Marx e Lênin. Após longos anos de abstinência, é claro que tudo era devorado com avidez. Para um filósofo, mesmo que fosse um idealista, a oportunidade de compulsar O Capital prometia ser uma benção. Afinal, tratava-se de um especialista.

Às vezes, porém, este tipo de castigo também dava errado. Um teólogo, ao qual foi ministrado semanalmente um volume das obras completas de Lênin, sofreu um colapso nervoso. Preferiu um prolongamento da pena a mais um volume de Lênin. “É uma loucura”, ele me disse mais tarde, depois que foi solto, “usar milhares e milhares de páginas para dizer uma coisa só...”

Agora, as coisas estão se encaminhando para a normalidade. Não sem a ajuda dos livros. O espírito cidadão – como outrora, durante a Revolução Francesa – é um produto colateral da leitura. É verdade: lemos menos do que antigamente. Surgiram novas tentações, a Internet, por exemplo, e desapareceu a volúpia da leitura às escondidas e da escrita ambígua, que poderia enganar a censura. Além disso, o livro ficou caro. Alguns escritores viraram parlamentares; outros, editores; outro, Ministro das Relações Exteriores.

Mas estamos felizes de esquecer por um instante as nossas dignidades passageiras, assim como as dificuldades deste tempo de transição, as crises, os aumentos de preços e os conluios políticos. Estamos felizes de podermos encontrar os nossos colegas de tudo quanto é lugar aqui, em Leipzig, numa cidade que tem uma posição chave no mercado livreiro europeu desde há três séculos. Em maior medida do que em Estrasburgo, Bruxelas ou Maastricht, em Leipzig a unidade europeia não se apresenta apenas como projeto, como processo, como ambição. Aqui, a unidade europeia é um fato consumado. Os livros sempre estão na dianteira dos homens.

Na proximidade dos livros, nós, que viemos do Leste, nunca chegamos à ideia de que temos de “nos integrar”, de que a Europa deveria estar em algum lugar diferente do que nas nossas bibliotecas, no nosso sangue e no nosso espírito. Agora nos está sendo dito que a realidade não seria exatamente assim. Que haveria uma distância entre nós e a Europa, um pequeno deserto, que temos de atravessar. Nós vamos atravessá-lo, provavelmente por sobre uma ponte de livros.

Antes de encerrar, permitam-me chamar a sua atenção para o fato de que nos estandes da Romênia desta notável feira não há apenas livros propriamente ditos. Também estão os livros invisíveis, os livros não escritos de todos aqueles cujo destino foi, de uma ou outra forma, abolido pela história. Todos aqueles que, como não podiam publicar, perderam a coragem de escrever. Todos aqueles que tiveram que cuidar de sua subsistência executando trabalhos modestos e extenuantes e que não tiveram mais tempo nem forças para as atividades criativas, assim como todos aqueles cujos textos foram confiscados e destruídos. Assim como todos os livros não escritos daqueles que morreram nas prisões antes de poderem dar o que lhes era dado dar.

Permitam-me que dedique a participação romena nesta feira – na qual perambulam sombras impressionantes por entre os livros – a todos aqueles destinos que não se cumpriram e aos seus livros ausentes.



Andrei Pleșu foi o primeiro ministro da Cultura da Romênia pós-comunista, até 1992, ocupando depois o cargo de ministro do Exterior.

O livro, veneno e antídoto. Trad. George Sperber. Revista Humboldt, 1998. Original: André Plesu, Das Buch als Gift und Heilmittel. Inter Nationes, Bonn, 1998. Encontrei este texto num post de 2010, neste blog.