terça-feira, 29 de abril de 2014

Carta de Voegelin sobre Louis Lavelle e René Le Senne



Dr. Alvin Johnson, Diretor
The New School for Social Research
66 West Twelfth Street
New York, New York

Prezado Dr. Johnson,

Recebi tua carta de 19 de setembro, na qual me pedes um parecer sobre a obra de Louis Lavelle e  de René Le Senne.

Permite-me, em primeiro lugar, dizer quanto os conheço. Não tive contato pessoal com nenhum dos dois, nem mesmo por correspondência. Tudo que sei sobre eles o sei pela leitura de alguns de seus livros, anos atrás. Estou prestes a me mudar e minha biblioteca está inacessível, então tudo o que tenho para dizer digo-o de memória. Com essas reservas, posso dizer o seguinte:

A obra desses dois filósofos me é de especial interesse porque ambos representam, do lado francês, aquela tendência à reinterpretação da natureza do homem em que o pensamento alemão contemporâneo é representado por Jaspers e Heidegger, e que é tecnicamente caracterizado como filosofia existencial (ou filosofia da existência humana). Pode-se remontar essa tendência ao início do século XIX, na obra de Kierkegaard, e parece-me de considerável importância porque é um movimento alheio à abordagem puramente metodológica, antirreligiosa ou antimetafísica dos problemas da filosofia que dominou o período até a [I] Guerra Mundial. Isso significa uma nova consciência das questões básicas da natureza humana, e uma tentativa de esquadrinhá-las sem atar-se ao dogmatismo de igrejas estabelecidas. Neste sentido, considero as obras de Lavelle e Le Senne como um dos sintomas mais auspiciosos na evolução da filosofia na França; parece-me um indicador da vivacidade e da independência desses dois filósofos; e representam, para mim – com a devida vênia pela limitação do meu conhecimento –, a mais auspiciosa e promissora expressão da vida filosófica francesa no momento.

Não sou capaz de indicar outros estudiosos neste país que estejam familiarizados com a obra de Lavelle e Le Senne, como me pedes. Mas suponho que alguém como Mortimer Adler saiba algo sobre a contribuição deles. Julgo altamente provável que Waldemar Gurian, da Universidade de Notre Dame, conheça bem a obra destes autores.

Asseguro-te que para mim é sempre um prazer, e sempre será, repassar tais informações quando as tiver, e sobretudo se estas contribuírem, por pouco que seja, para por relevo a situação de homens distintos como Lavelle e Le Senne que, a partir das implicações de sua carta, não parecem ser promissores só agora.

Atenciosamente,



Eric Voegelin

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Da importância do outro


Trecho de entrevista concedida pelo professor Mendo Castro Henriques* a Carolina Matos e publicada pelo Portuguese American Journal. A tradução é minha. (Publicada com autorização) 


ENTREVISTADOR: Ao longo de toda a sua carreira, o senhor tem explorado e escrito sobre uma ampla gama de assuntos, de filosofia política e ética a história e religião. Recentemente o senhor e Nazaré Barros escreveram juntos Olá, Consciência!, um livro dedicado à filosofia da consciência como um valor individual e social. Por que escrever este livro agora?


MENDO: O livro surgiu como um alerta à necessidade de uma mudança de paradigma – de uma sociedade centrada no “eu” para uma sociedade cujo foco está no “nós”. A mudança começa com a percepção de que a “consciência” não deve ser compreendida como o “eu” da psicologia ou como um epifenômeno resultante de processos neurológicos, mas, antes, como um a relação entre o “eu” e o “outro”. Como disse certa vez Viktor Frankl, “em última instância, o homem não deve perguntar qual é o sentido de sua vida; deve reconhecer que é a vida mesma que lhe está perguntando”, uma fórmula que ecoa a fala do Presidente Kennedy. Temos de começar não por ouvir nossos projetos, mas pelos planos que a vida tem para nós por meio do encontro com o outro. Esse choque de paradigmas pode ser desconcertante. Creio que o livro, num primeiro momento, causa algum desconforto ao leitor, ao menos para aqueles que estão acostumados a aceitar opiniões e estilos de vida sem “consciência” do que estão fazendo ou pensando. Devo dizer que “Olá, Consciência!”, assim como Sócrates e as moscas que perturbam o sono de todos, pretende por em xeque muitos clichês e mitos urbanos, forçando o leitor a deixar a zona de conforto, na qual com muita frequência são os preconceitos que definem tudo.



ENTREVISTADOR: A filosofia tem a fama de ser especialmente hostil às mulheres. O senhor acaba de ser coautor com uma filósofa. Pode comentar essa experiência?



MENDO: A filosofia nasceu como uma forma de diálogo – das perguntas que fazemos e das respostas que conseguimos. Podemos dialogar conosco mesmos ou com o outro. Neste caso, o diálogo foi entre duas pessoas. Para ser mais preciso, a ideia original do livro só se desenvolveu quando Nazaré começou a dialogar comigo. Foi assim que o processo começou e é assim que “Olá, Consciência!” justifica seu título – que é, obviamente, uma saudação que simboliza este encontro. Os 10 primeiros capítulos tratam da descoberta das ferramentas intelectuais e emocionais que constituem a base de nossos modelos de pensamento e de busca da “verdade”. Os capítulos 11 a 21 expandem o debate para a ação humana na história, a política, a religião, a economia e a arte, procurando refletir sobre o que é valioso e “bom”. Escrevê-lo foi ainda mais prazeroso porque Nazaré e eu, como muitos leitores apontaram, conseguimos alcançar uma síntese perfeita – como tocar piano a quatro mãos.



ENTREVISTADOR: Qual o papel do filósofo e da filosofia no mundo atual?


MENDO: A filosofia sempre tentou ser a síntese de ideias que sustentam o que fazemos e o que pensamos. Essas ideias estão nas obras de arte, na ciência, no direito, na política, na ética e em tudo o mais que vive. No passado, os filósofos apresentavam esta síntese como um todo a ser aceito ou rejeitado. O conceito mudou desde então. De uma perspectiva mais conservadora, estamos vivendo naquilo que sobrou de nossas tradições, as quais, conforme escreveu Alasdair McIntyre, se tornaram a “terra desolada” que T. S. Eliot descreveu. Aqui, Platão e Aristóteles, e mesmo Descartes ou Hegel, são vistos como referências exóticas para a cultura de massa. Esse afastamento de nossas raízes intelectuais tem sido culpado pela chamada “crise de valores”. Todavia, sem esta “travessia do deserto”, nossas ideias não teriam alcançado autenticidade. Portanto, não creio que estamos enfrentando uma “falta de valores”, mas uma abundância de valores na ausência da ética. A ética tradicional já não é suficiente para enfrentar o futuro incerto que, como nos advertiu Hans Jonas, está cheio de riscos. O papel da filosofia hoje é reconstruir a ponte com as nossas raízes intelectuais, o que só pode ser conseguido por meio do reconhecimento do outro.



ENTREVISTADOR: Em sua opinião, quais são os maiores problemas filosóficos de nosso tempo?


MENDO: No século XX, a filosofia – e em particular o conhecimento do “eu” – deixou de ser uma preocupação de poucos estudiosos e, como observou Bernard Lonergan, passou a ser uma questão social. Portanto, devemos começar por dizer “não” ao pensamento centrado no “eu”. A questão é: como podemos, de fato, conectar-nos ao outro? Filósofos como Martin Buber, Franz Rosenzweig, Viktor Frankl, Emmanuel Levinas, Hans Jonas, Giusepe Zanghi, Charles Taylor e Gabriel Marcel demonstraram que o diálogo é de suma importância para a existência humana. Creio que, enfim, nossas preocupações podem resumir-se numa única sentença: “Queremos ser ouvidos”. O mundo não quer mais ser explicado – quer ser ouvido. O povo não quer mais ser tão somente representado – quer compartilhar. No núcleo da realidade, há uma voz que clama: “Queremos ser reconhecidos”.



ENTREVISTADOR: Se o senhor pudesse escolher uma única coisa para mudar no mundo, o que seria?

MENDO: Em vários sentidos, o século XX foi o século do “eu” que gerou o ego de grandes ditadores, como Hitler, Stálin e Mao Zedong, que impuseram sua vontade sobre os outros por meios bárbaros e violentos. Ele também gerou o egoísmo individual comum a produtores e consumidores. Creio que o século XXI será o século do “nós”, no qual nenhum ato coletivo substituirá jamais o ato singular de encontrar o “outro” e no qual reconheceremos o sentido que resulta de nosso encontro com a singularidade do outro. Ao ignorar o outro, abriremos passagem para atos de corrupção e violência e para a imoralidade pessoal e social. Pensadores dialógicos agora respondem ao barbarismo do século XX demonstrando de que maneira a razão egoísta nos levou ao malogro. Precisaremos aprender que ser ético é ser capaz de enfrentar não apenas os fatos históricos e sociais mais importantes, mas também os acontecimentos mais corriqueiros que podem incorporar atos violentos e desumanos contra o outro, e que, porque estão situados em arcabouços históricos e sociais, podem ser considerados “normais”. Ser violento é negligenciar o outro, e a filosofia deve evitar isso.


* Mendo Henriques - Nasceu em Lisboa (1953) tem quatro filhos e vive em Lisboa, onde é professor. É licenciado e mestre em Filosofia pela Universidade de Lisboa e doutorado em Filosofia Política pela UCP (1992). Tem 12 títulos publicados em Portugal, Brasil e França sobre Fernando Pessoa, Eric Voegelin, Bernard Lonergan, e temas de filosofia da consciência e obras em conjunto sobre temas de cidadania e história. Ocupou cargos de assessor e dirigente entre 1994 e 2007 no Ministério da Defesa Nacional. Tem proferido numerosas conferências no país e no estrangeiro sobre temas da especialidade.

 

terça-feira, 8 de abril de 2014

A força de um testemunho



Quando os demônios sobrevoam as casas e com poderes asmodeicos levantam os telhados, o que se vê? Avistam-se longas filas de corredores onde, voltando do trabalho, as donas de casa soviéticas cozinham num fogareiro Primus o jantar.

Este é o comunismo! Este, e não outro: o camarada do bairro, o espaço locativo (escritório estatal para designação de moradias), o certificado de origem social, a delação obrigatória, as filas, o fogareiro Primus.[1] Enquanto um bilhão e meio de imbecis, no ocidente, suspiram, participam de manifestações, raptam, urram, escrevem, despojam-se, deixam crescer a barba, fazem amor em público, jogam coquetéis molotov para realizar um ideal: o fogareiro, a maquininha com gás dos pobres.

As donas de casa, estas, não têm o que fazer. Mas aquele um bilhão e meio, quem nele para para pensar é tomado pela loucura.

Outro comunismo? Se tivesse sido realizado em outro lugar, teria sido diferente? Quando nós o fizermos, será outra coisa.

Ilusões, tolices. No entanto, com os mesmos elementos constitutivos ides trabalhar. Ides chegar ao mesmo lugar. Ao mesmo racismo social, o marxista não menos do que o leninista (embora seja, talvez, um homem correto, apesar de a burguesia ter tido um papel progressista, não temos o que lhe fazer: sois como sois, e de outro modo não podeis ser, assim deveis ser condenado).

É este, não outro. Vingador. Pequeno. Podre. Grosseiro. Invejoso. Crente na trindade: ódio, suspeita, inveja. Com boca de regateira e ódio de serviçal. A sociedade do bem-estar, onde a cozinha é um fogareiro Primus no corredor.

Sabem eles, os demônios, como se encarnar, não é por acaso.

N. Steinhardt, O Diário da Felicidade. Trad. Elpídio Fonseca. São Paulo, É Realizações, 2009, p. 217-18.





[1] Uma marca de fogareiro a gás, que, na época, era objeto de desejo de muitos. (N. T.)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Introdução ao Diário de Amiel

Por Liev Tolstói
[Também publicado na Revista Digital Terminal]

Cerca de 18 meses atrás, tive a oportunidade de ler pela primeira vez o livro de Amiel, Fragmentos de um Diário Íntimo. Fiquei comovido pela importância e profundidade de seu conteúdo, pela beleza de sua apresentação e, acima de tudo, pela sinceridade deste livro. 

Durante a leitura, marcava as passagens que me tocavam de modo especial. Minha filha incumbiu-se de traduzir essas passagens e, assim, esses excertos de Fragmentos de um Diário Íntimo tomaram forma: ou melhor, trata-se de excertos do diário que Amiel escreveu todos os dias durante trinta anos – cuja íntegra ocupa vários volumes, em grande parte nunca publicados.[1]

Henri Amiel nasceu em Genebra, em 1821, e ficou órfão ainda jovem. Tendo completado o curso superior em Genebra, Amiel foi para o exterior e passou alguns anos nas universidades de Heildelberg e de Berlim. Ao voltar em 1849 a sua terra natal, ele, um jovem de 28 anos, obteve a cátedra da Academia de Genebra, primeiramente de Estética e, depois, de Filosofia, a qual ocupou até sua morte. 

Amiel passou toda a vida em Genebra, onde morreu em 1881, sem em nada distinguir-se do grande número de professores comuns que mecanicamente preparavam suas preleções a partir dos últimos livros de sua área de especialidade e as transmitiam a seus ouvintes de maneira igualmente mecânica, e do número ainda maior de versejadores carentes de substância, que oferecem essas mercadorias ainda vendidas às dezenas de milhares em periódicos que são publicados – embora ninguém precise delas. 

Amiel não teve o menor sucesso nem acadêmico nem literário. Quando já se aproximava da velhice, escreveu de si mesmo o seguinte: 

Que é que eu soube tirar dos meus dons, das minhas circunstâncias particulares, do meu meio século de existência? Que é que eu fiz a minha terra produzir? Será que toda a minha papelada reunida, a minha infinita correspondência, as minhas treze mil páginas íntimas, os meus cursos, meus artigos, minhas rimas, minhas notas diversas, outra coisa são do que folhas secas? Para quem e para que terei sido útil? Será que o meu nome vai durar um dia a mais do que eu, e para alguém alguma coisa significará? Vida nula.[2]

Dois escritores franceses bem conhecidos escreveram sobre Amiel e seu diário desde a sua morte – seu amigo e famoso crítico E[dmond] Scherer e o filósofo [Edme María] Caro. É interessante notar o tom simpático mas condescendente com que esses escritores se referem a Amiel, lamentando a ausência das qualidades necessárias para a produção de obras verdadeiras. Contudo, as obras verdadeiras desses dois escritores – as obras críticas de Scherer e as obras filosóficas de Caro – dificilmente sobreviverão a seus autores, ao passo que a obra acidental e quimérica de Amiel, seu Diário, permanecerá sempre viva e necessária aos homens e os atingirá de modo frutuoso. 

Pois um escritor é precioso e necessário para nós somente na medida em que nos revela o exercício interior de sua alma – supondo, é claro, que sua obra seja nova e inédita. O que quer que tenha sido escrito – uma peça, uma obra de erudição, uma narrativa, um tratado filosófico, versos líricos, uma crítica, uma sátira –, o que é precioso para nós na obra de um autor é tão-somente aquele esforço interior de sua alma, não a estrutura arquitetônica em que normalmente – e eu acho que sempre –, distorcendo-a, ele embrulha seus pensamentos e sentimentos. 

Tudo o que Amiel publicou e a que deu acabamento final – palestras, ensaios, poemas – está morto; mas seu diário, onde, sem pensar na forma, falava apenas a si mesmo, está cheio de vida, sabedoria, instrução, consolo, e continuará entre os melhores livros que já nos foram legados, acidentalmente, por homens como Marco Aurélio, Pascal e Epicteto. 

Diz Pascal: 

Há somente três tipos de pessoas: aquelas que, tendo conhecido a Deus, O servem; aquelas que, não O conhecendo, estão empenhadas em encontrá-lo; e aquelas que, embora não O tenham conhecido, não O procuram. Os primeiros são sensíveis e felizes; os últimos são insensíveis e infelizes; os segundos são infelizes, mas sensíveis. 

Acho que o contraste que Pascal faz entre o primeiro e o segundo grupo – entre aqueles que, como diz alhures, tendo encontrado a Deus, O servem de todo o coração, e aqueles que, não O tendo encontrado, O buscam de todo o coração – não só não é tão grande quanto ele pensou, mas nem sequer existe. Considero que aqueles que de todo o coração e com sofrimento (en gémissant, como diz Pascal) buscam a Deus, já O estão servindo. Estão servindo-O porque, pelo sofrimento que suportam em sua busca, estão abrindo o caminho até Deus e revelando-o aos outros, como o próprio Pascal fez em seus Pensamentos, e como Amiel fez em toda a sua vida retratada neste Diário

Toda a vida de Amiel, como nos é apresentada neste Diário, está repleta desta busca sofredora e sincera de Deus. E a contemplação dessa busca é ainda mais instrutiva porque nunca deixa de ser busca, nunca se torna fixa, nunca assume a forma de uma consciência de ter-se alcançado a verdade ou de ter-se chegado a uma doutrina. Amiel não está dizendo a si mesmo ou aos outros “Eu sei a verdade, ouçam-me!”. Pelo contrário, parece-lhe, como é natural a quem quer que busque sinceramente a verdade, que quanto mais ele sabe, mais precisa saber, e está, portanto, constantemente ciente de sua ignorância. Está continuamente especulando sobre o que deve ser o cristianismo e a condição de um cristão, sem hesitar nem por um segundo em pensar que o cristianismo é aquilo que ele professa e que ele mesmo está realizando a condição de um cristão. E, contudo, todo o Diário está cheio de expressões do mais profundo entendimento e sentimento cristãos. E essas expressões agem sobre o leitor com uma força especial exatamente por sua inconsciência e sinceridade. Ele está falando a si mesmo, não pensando que é ouvido de esguelha, nem tentando parecer convicto de algo de que não está convicto, nem escondendo seus sofrimentos e sua busca. 

É como se alguém estivesse presente, sem o conhecimento do homem, ao mais secreto, profundo e apaixonado exercício interior de sua alma – aquele que normalmente fica oculto a um observador externo. 

E, portanto, embora se possam encontrar muitas expressões de sentimento religioso mais elegantes e mais bem elaboradas que as de Amiel, é difícil encontrar busca mais íntima ou mais sincera. Pouco antes de sua morte, sabendo que poderia morrer de asfixia a qualquer momento, escreveu: 

Se não se sonha ter vida para um lustro, um ano ou um mês; se não se contam as horas senão por dúzias, e se a próxima noite já é a ameaça e o desconhecido, é evidente que se renuncia à arte, à ciência, à política, e que se contenta, a gente, em dialogar consigo mesmo, o que é possível até o fim. O solilóquio interior é todo o recurso do condenado à morte cuja execução se retarda. Ele se congrega em seu foro íntimo. Já não irradia mais, faz psicologia. Não atua mais, contempla. [...] Como a lebre, ele volta para morrer em seu abrigo, e esse abrigo é a sua consciência, o seu pensamento. O seu anteabrigo é o seu diário íntimo. Enquanto pode sustentar a pena e enquanto lhe deixam um momento de soledade, recolhe-se diante desse eco de si mesmo, e conversa com Deus. Não é isso, contudo, um exame moral, um ato de contrição, um apelo. Não é mais do que um amém de submissão. [...] “Meu filho, dá-me o teu coração.”
A renúncia e o consentimento são, para mim, menos difíceis do que a outros, porque eu não quero nada. Eu desejaria somente não sofrer, mas Jesus em Getsêmani acreditou que pudesse fazer a mesma prece; ajuntemo-lhe estas palavras: “Que todavia seja feita a tua vontade, e não a minha”, e esperemos.[3]

Assim se encontrava ele na véspera de sua morte. Não estava nem um pouco menos franco e solene que em todo o seu diário, não obstante sua beleza e o refinamento de sua linguagem, mostradas em diversas passagens e criadas para serem comuns a ele. Durante os trinta anos de diário, ele sente aquilo que tentemos a esquecer – que estamos todos condenados à morte e que nossa execução é apenas adiada. E é isso que faz deste livro tão franco, sério e útil. 


Fonte: Leo Tolstói, “Introduction to Amiel’s Journal”. In: Aylmer Maude (org.), Tolstoy on Art. London, Oxford University Press, 1924, p. 38-43. Disponível aqui.  

_____________________________________________

[1] Isso era válido na época em que Tolstói escreveu esta apresentação. Hoje, há uma edição do diário completo em 12 volumes. Henri-Frédéric Amiel, Journal Intime. 12 vols. Lausanne, L’âge d’homme, 1976-1994.
[2] Henri-Frédéric Amiel, Diário Íntimo. Trad. Mário Ferreira dos Santos. São Paulo, É Realizações, 2013, p. 403-04.
[3] Ibidem, p. 573-74.