terça-feira, 8 de abril de 2014

A força de um testemunho



Quando os demônios sobrevoam as casas e com poderes asmodeicos levantam os telhados, o que se vê? Avistam-se longas filas de corredores onde, voltando do trabalho, as donas de casa soviéticas cozinham num fogareiro Primus o jantar.

Este é o comunismo! Este, e não outro: o camarada do bairro, o espaço locativo (escritório estatal para designação de moradias), o certificado de origem social, a delação obrigatória, as filas, o fogareiro Primus.[1] Enquanto um bilhão e meio de imbecis, no ocidente, suspiram, participam de manifestações, raptam, urram, escrevem, despojam-se, deixam crescer a barba, fazem amor em público, jogam coquetéis molotov para realizar um ideal: o fogareiro, a maquininha com gás dos pobres.

As donas de casa, estas, não têm o que fazer. Mas aquele um bilhão e meio, quem nele para para pensar é tomado pela loucura.

Outro comunismo? Se tivesse sido realizado em outro lugar, teria sido diferente? Quando nós o fizermos, será outra coisa.

Ilusões, tolices. No entanto, com os mesmos elementos constitutivos ides trabalhar. Ides chegar ao mesmo lugar. Ao mesmo racismo social, o marxista não menos do que o leninista (embora seja, talvez, um homem correto, apesar de a burguesia ter tido um papel progressista, não temos o que lhe fazer: sois como sois, e de outro modo não podeis ser, assim deveis ser condenado).

É este, não outro. Vingador. Pequeno. Podre. Grosseiro. Invejoso. Crente na trindade: ódio, suspeita, inveja. Com boca de regateira e ódio de serviçal. A sociedade do bem-estar, onde a cozinha é um fogareiro Primus no corredor.

Sabem eles, os demônios, como se encarnar, não é por acaso.

N. Steinhardt, O Diário da Felicidade. Trad. Elpídio Fonseca. São Paulo, É Realizações, 2009, p. 217-18.





[1] Uma marca de fogareiro a gás, que, na época, era objeto de desejo de muitos. (N. T.)

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