quarta-feira, 2 de abril de 2014

Introdução ao Diário de Amiel

Por Liev Tolstói
[Também publicado na Revista Digital Terminal]

Cerca de 18 meses atrás, tive a oportunidade de ler pela primeira vez o livro de Amiel, Fragmentos de um Diário Íntimo. Fiquei comovido pela importância e profundidade de seu conteúdo, pela beleza de sua apresentação e, acima de tudo, pela sinceridade deste livro. 

Durante a leitura, marcava as passagens que me tocavam de modo especial. Minha filha incumbiu-se de traduzir essas passagens e, assim, esses excertos de Fragmentos de um Diário Íntimo tomaram forma: ou melhor, trata-se de excertos do diário que Amiel escreveu todos os dias durante trinta anos – cuja íntegra ocupa vários volumes, em grande parte nunca publicados.[1]

Henri Amiel nasceu em Genebra, em 1821, e ficou órfão ainda jovem. Tendo completado o curso superior em Genebra, Amiel foi para o exterior e passou alguns anos nas universidades de Heildelberg e de Berlim. Ao voltar em 1849 a sua terra natal, ele, um jovem de 28 anos, obteve a cátedra da Academia de Genebra, primeiramente de Estética e, depois, de Filosofia, a qual ocupou até sua morte. 

Amiel passou toda a vida em Genebra, onde morreu em 1881, sem em nada distinguir-se do grande número de professores comuns que mecanicamente preparavam suas preleções a partir dos últimos livros de sua área de especialidade e as transmitiam a seus ouvintes de maneira igualmente mecânica, e do número ainda maior de versejadores carentes de substância, que oferecem essas mercadorias ainda vendidas às dezenas de milhares em periódicos que são publicados – embora ninguém precise delas. 

Amiel não teve o menor sucesso nem acadêmico nem literário. Quando já se aproximava da velhice, escreveu de si mesmo o seguinte: 

Que é que eu soube tirar dos meus dons, das minhas circunstâncias particulares, do meu meio século de existência? Que é que eu fiz a minha terra produzir? Será que toda a minha papelada reunida, a minha infinita correspondência, as minhas treze mil páginas íntimas, os meus cursos, meus artigos, minhas rimas, minhas notas diversas, outra coisa são do que folhas secas? Para quem e para que terei sido útil? Será que o meu nome vai durar um dia a mais do que eu, e para alguém alguma coisa significará? Vida nula.[2]

Dois escritores franceses bem conhecidos escreveram sobre Amiel e seu diário desde a sua morte – seu amigo e famoso crítico E[dmond] Scherer e o filósofo [Edme María] Caro. É interessante notar o tom simpático mas condescendente com que esses escritores se referem a Amiel, lamentando a ausência das qualidades necessárias para a produção de obras verdadeiras. Contudo, as obras verdadeiras desses dois escritores – as obras críticas de Scherer e as obras filosóficas de Caro – dificilmente sobreviverão a seus autores, ao passo que a obra acidental e quimérica de Amiel, seu Diário, permanecerá sempre viva e necessária aos homens e os atingirá de modo frutuoso. 

Pois um escritor é precioso e necessário para nós somente na medida em que nos revela o exercício interior de sua alma – supondo, é claro, que sua obra seja nova e inédita. O que quer que tenha sido escrito – uma peça, uma obra de erudição, uma narrativa, um tratado filosófico, versos líricos, uma crítica, uma sátira –, o que é precioso para nós na obra de um autor é tão-somente aquele esforço interior de sua alma, não a estrutura arquitetônica em que normalmente – e eu acho que sempre –, distorcendo-a, ele embrulha seus pensamentos e sentimentos. 

Tudo o que Amiel publicou e a que deu acabamento final – palestras, ensaios, poemas – está morto; mas seu diário, onde, sem pensar na forma, falava apenas a si mesmo, está cheio de vida, sabedoria, instrução, consolo, e continuará entre os melhores livros que já nos foram legados, acidentalmente, por homens como Marco Aurélio, Pascal e Epicteto. 

Diz Pascal: 

Há somente três tipos de pessoas: aquelas que, tendo conhecido a Deus, O servem; aquelas que, não O conhecendo, estão empenhadas em encontrá-lo; e aquelas que, embora não O tenham conhecido, não O procuram. Os primeiros são sensíveis e felizes; os últimos são insensíveis e infelizes; os segundos são infelizes, mas sensíveis. 

Acho que o contraste que Pascal faz entre o primeiro e o segundo grupo – entre aqueles que, como diz alhures, tendo encontrado a Deus, O servem de todo o coração, e aqueles que, não O tendo encontrado, O buscam de todo o coração – não só não é tão grande quanto ele pensou, mas nem sequer existe. Considero que aqueles que de todo o coração e com sofrimento (en gémissant, como diz Pascal) buscam a Deus, já O estão servindo. Estão servindo-O porque, pelo sofrimento que suportam em sua busca, estão abrindo o caminho até Deus e revelando-o aos outros, como o próprio Pascal fez em seus Pensamentos, e como Amiel fez em toda a sua vida retratada neste Diário

Toda a vida de Amiel, como nos é apresentada neste Diário, está repleta desta busca sofredora e sincera de Deus. E a contemplação dessa busca é ainda mais instrutiva porque nunca deixa de ser busca, nunca se torna fixa, nunca assume a forma de uma consciência de ter-se alcançado a verdade ou de ter-se chegado a uma doutrina. Amiel não está dizendo a si mesmo ou aos outros “Eu sei a verdade, ouçam-me!”. Pelo contrário, parece-lhe, como é natural a quem quer que busque sinceramente a verdade, que quanto mais ele sabe, mais precisa saber, e está, portanto, constantemente ciente de sua ignorância. Está continuamente especulando sobre o que deve ser o cristianismo e a condição de um cristão, sem hesitar nem por um segundo em pensar que o cristianismo é aquilo que ele professa e que ele mesmo está realizando a condição de um cristão. E, contudo, todo o Diário está cheio de expressões do mais profundo entendimento e sentimento cristãos. E essas expressões agem sobre o leitor com uma força especial exatamente por sua inconsciência e sinceridade. Ele está falando a si mesmo, não pensando que é ouvido de esguelha, nem tentando parecer convicto de algo de que não está convicto, nem escondendo seus sofrimentos e sua busca. 

É como se alguém estivesse presente, sem o conhecimento do homem, ao mais secreto, profundo e apaixonado exercício interior de sua alma – aquele que normalmente fica oculto a um observador externo. 

E, portanto, embora se possam encontrar muitas expressões de sentimento religioso mais elegantes e mais bem elaboradas que as de Amiel, é difícil encontrar busca mais íntima ou mais sincera. Pouco antes de sua morte, sabendo que poderia morrer de asfixia a qualquer momento, escreveu: 

Se não se sonha ter vida para um lustro, um ano ou um mês; se não se contam as horas senão por dúzias, e se a próxima noite já é a ameaça e o desconhecido, é evidente que se renuncia à arte, à ciência, à política, e que se contenta, a gente, em dialogar consigo mesmo, o que é possível até o fim. O solilóquio interior é todo o recurso do condenado à morte cuja execução se retarda. Ele se congrega em seu foro íntimo. Já não irradia mais, faz psicologia. Não atua mais, contempla. [...] Como a lebre, ele volta para morrer em seu abrigo, e esse abrigo é a sua consciência, o seu pensamento. O seu anteabrigo é o seu diário íntimo. Enquanto pode sustentar a pena e enquanto lhe deixam um momento de soledade, recolhe-se diante desse eco de si mesmo, e conversa com Deus. Não é isso, contudo, um exame moral, um ato de contrição, um apelo. Não é mais do que um amém de submissão. [...] “Meu filho, dá-me o teu coração.”
A renúncia e o consentimento são, para mim, menos difíceis do que a outros, porque eu não quero nada. Eu desejaria somente não sofrer, mas Jesus em Getsêmani acreditou que pudesse fazer a mesma prece; ajuntemo-lhe estas palavras: “Que todavia seja feita a tua vontade, e não a minha”, e esperemos.[3]

Assim se encontrava ele na véspera de sua morte. Não estava nem um pouco menos franco e solene que em todo o seu diário, não obstante sua beleza e o refinamento de sua linguagem, mostradas em diversas passagens e criadas para serem comuns a ele. Durante os trinta anos de diário, ele sente aquilo que tentemos a esquecer – que estamos todos condenados à morte e que nossa execução é apenas adiada. E é isso que faz deste livro tão franco, sério e útil. 


Fonte: Leo Tolstói, “Introduction to Amiel’s Journal”. In: Aylmer Maude (org.), Tolstoy on Art. London, Oxford University Press, 1924, p. 38-43. Disponível aqui.  

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[1] Isso era válido na época em que Tolstói escreveu esta apresentação. Hoje, há uma edição do diário completo em 12 volumes. Henri-Frédéric Amiel, Journal Intime. 12 vols. Lausanne, L’âge d’homme, 1976-1994.
[2] Henri-Frédéric Amiel, Diário Íntimo. Trad. Mário Ferreira dos Santos. São Paulo, É Realizações, 2013, p. 403-04.
[3] Ibidem, p. 573-74.

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