segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A vida entre escombros



Todos conhecem o tipo de vida de uma pessoa que quer fazer o que bem entende: sexo barato e frequente, mas sem nenhum amor; vida emocional e mental detonada; busca frenética por felicidade, sem satisfação; deuses que não passam de peças decorativas; religião de espetáculo; solidão paranoica; competição selvagem; consumismo insaciável; temperamento descontrolado; incapacidade de amar e de ser amado; lares divididos; coração egoísta e insatisfação constante; costume de desprezar o próximo, vendo todos como rivais; vícios incontroláveis; tristes paródias de vida em comunidade. E, se eu fosse continuar, a lista seria enorme. Essa não é a primeira vez que venho advertir vocês: se usarem a liberdade desse modo, não herdarão o Reino de Deus. (Gálatas 5:19-21 – A MENSAGEM) 
Hamlet, na versão que caiu no gosto popular, diz que “existem mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. As almas que se quebram no chão (Editora É), de Karleno Bocarro, nos revela algumas delas, chegando a apresentar-nos, inclusive, algumas das que estão debaixo da terra. Debaixo, aqui, tem pelo menos três sentidos diferentes.
1) Geográfico: Uma boa parte da trama se passa num bar no subsolo de um prédio abandonado, numa área de Berlim devastada pela guerra. Os escombros de um bairro inteiro são o cenário em que circulam as pessoas cuja vida se encontra no mesmo estado da paisagem em torno.
2) Existencial: São essas vidas em escombros que constituem aquilo que costumamos chamar de submundo, um mundo que hoje, em linguagem descolada, chamamos de underground. Um ambiente em que há abundância de drogas, sexo, euforia e vazio.
3) Metafísico: Há também a presença do próprio Mal, que, embora aterrorizante quando se mostra ao incorporar numa alma atormentada, não se ausenta de nenhuma das páginas do livro.
Dito desse modo, pode parecer tratar-se de um livro moralista, que pretende fazer censuras a comportamentos, etc., coisa que não é nem de longe. O narrador tem tanta história para contar que não pode deixar-se perder em psicologismos nem em longas exposições teóricas. Tudo o que há para ser dito o é a partir das desventuras de um grupo de amigos brasileiros numa Alemanha recém unificada, mas à qual pouco se adaptaram. Há um efeito moralizador, sim, porque nos mostra para onde segue uma vida sem sentido. Trata-se da experiência de uma descida aos infernos com uma lanterna em punho.
Todo o vigor da trama se deve a personagens marcantes como Marco Dilthey, um brasileiro pouco dotado de talento que vai estudar em Berlim enviado pelo Partido Comunista; Barad, o mais pretensioso dos brasileiros, um sujeito que se apega a sua aspiração artística como tábua de salvação; e Bocas, um camarada que de tão perverso nos faz duvidar da presença de algum resquício de imagem divina no homem.
Chamar Marco de pouco dotado de talento é um eufemismo. Marco é um sujeito que quase. É incapaz de qualquer realização. Quase conquista mulheres, quase se dá bem na vida, quase, quase, quase... É um fraco: incapaz de assumir suas responsabilidades, inapto para as irresponsabilidades. Não deixa de ser um retrato daqueles que insistem em acreditar numa “lavação da égua”, mesmo que não se disponham a tomar o balde, o sabão e a escova.
É sempre um risco ser ousado na pretensão e modesto nos resultados. E não basta disciplina para que as coisas aconteçam. É o que nos mostra Barad. Mesmo com toda a sua obsessão pelos estudos e sua disposição para os maiores sacrifícios em nome de sua vocação, a “sorte moral” (Bernard Willians) não o acompanha.
Se a disciplina de Barad não lhe serve de garantia de nada, o completo desregramento de Bocas parece ser uma boa escolha. Mas só parece. Mário Bocas, uma das personagens mais inconsequentes e perversas de que tenho notícia, supostamente uma encarnação da liberdade libertina, é um sujeito escravizado, seja por seus vícios, seja por seus fornecedores de “vitaminas mentais”.
O único personagem que ainda exerce alguma liberdade é Gruba, o fiel escudeiro do maligno Bocas. Quando se põe a falar, surpreende por sua lucidez embriagada. Sabe bem a posição que ocupa e, por pior que possa parecer, vive a vida que escolheu.
Luisa, a namorada de Marco que ficara no Brasil, parece uma incógnita. Tudo indica que ela também entraria no ciclo e seria mais uma a deixar-se levar pela vida. Isso não acontece, para surpresa e frustração de Marco. Sua presença ali, discreta, às vezes parecendo dispensável, é na verdade um resquício de uma vida legítima. A Luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Luisa parece ter entendido que quem vive ao estilo “deixa a vida me levar” acaba não chegando a lugar algum. Como Marco...
Apesar do contexto em que os episódios ocorrem – a queda do muro de Berlim e a Alemanha recém-unificada –, uma das maiores virtudes do texto é evitar academicismos, psicologismos e sociologismos. O autor não defende uma tese pela boca de seus personagens. Antes, nos conta uma história. E que história!