quinta-feira, 10 de julho de 2008

Surpreendido por C. S. Lewis


Numa oficina literária de que participei, Antonio Fernando Borges repetidas vezes disse que a vida real não rende boa literatura. Ou melhor, para que a banalidade da vida cotidiana renda boa literatura, é necessário que a pena esteja sob o jugo de um grande escritor. A epígrafe da apostila utilizada, uma citação de Stevenson, já nos exortava:
A vida é monstruosa, infinita, ilógica, abrupta e lancinante. Uma obra de arte, em comparação, é uma coisa bem-feita, finita, contida em si própria, racional, fluida e transfigurada. A vida se impõe pela sua energia bruta, inarticulada como a de um trovão. A arte seduz o nosso ouvido, por entre os ruídos mais altos de nossa experiência diária, como os sons produzidos por um músico discreto...

...O romance, que é uma obra de arte, justifica sua existência não por sua semelhança com a vida, que é forçada e meramente material (assim como um sapato se assemelha ao couro de uma vaca), mas por sua incalculável diferença de natureza em relação à vida, uma diferença que é deliberada e significativa – e que constitui tanto o método quanto o significado da obra.

Outra citação recorrente em aula era de Schopenhauer. Este dizia que havia dois tipos de escritores: os que escrevem por escrever e aqueles que escrevem por ter algo a dizer. Ainda na oficina, falou-se muito a respeito daqueles que, de tanto lerem, acabaram por se tornar escritores. Este o caso do próprio Fernando.

***

No lançamento da edição brasileira das obras de Eric Voegelin, Olavo de Carvalho recomendava entusiasticamente a leitura de biografias dos grandes homens de espírito, para que estes sirvam de inspiração e de exemplo para os brasileiros, que já ignoram de que se constitui uma vida intelectual efetiva. Olavo fazia referência às Reflexões Autobiográficas, de Voegelin. Mas creio que o mesmo vale para Surpreendido pela Alegria, de C. S. Lewis. Guardadas as devidas proporções, claro.

***

O livro não tem a pretensão de ser uma biografia compreensiva. É, na verdade, a história da conversão de seu autor. Mas, para chegar ao ponto culminante, no qual, enfim, se rende, ele nos brinda com seu relacionamento com os livros, fala sobre as escolas por onde passou, sobre seu relacionamento familiar e insistentemente sobre a Alegria. Como ele mesmo faz questão de frizar, a Alegria não deve ser compreendida em seu sentido comum, que se presta à confusão com um prazer vulgar. Lewis define a Alegria como aquele desejo não satisfeito que é mais desejável que qualquer satisfação. É uma experiência que quem quer que a tenha vivenciado vai querer senti-la novamente. Mas, apesar disso, é uma espécie de infelicidade, uma espécie de pesar. Diria eu, uma lacuna, um vislumbre.
Dentre os escritores mais determinantes para sua conversão, se encontram George Macdonald e G. K. Chesterton. Xeque-mate, o penúltimo capítulo do livro, é a mais bela passagem de C. S. Lewis que já li. Menciono apenas de esguelha porque desejo mesmo é que o leiam.

***
Passo a fazer um relato subjetivo das reverberações que o livro suscitou em mim, sem muita preocupação em fazer uma crítica do livro. O fato é que há tempos não lia algo que mexesse tanto comigo. À medida que Lewis narrava sua própria história, eu era convidado a olhar para minha própria experiência. Não apenas porque eu mesmo tenha uma certa inclinação para assuntos religiosos, mas porque, em alguma media, eu mesmo experimentei a Alegria e a ausência dela.

Não posso dizer que tive uma infância envolta por livros — aliás, minha iniciação foi bastante tardia; não posso dizer que minha infância fosse algo muito estimulante intelectualmente; não posso dizer que o ambiente em torno, a paisagem que se me apresentava, fomentasse grandes experiências imaginativas; não posso dizer que cheguei a ter uma relação bastante próxima com meus irmãos. Fomos amigos, sim, embora distantes da cumplicidade que havia entre os irmãos Lewis. Não creio que minha vida seja assim tão interessante para merecer ser relatada aqui. Comento, assim, de sobressalto, apenas algumas “bobagens”. As aspas se justificam. É que certos fatos, por mais significativos que sejam para aquele que os experimenta, não passam de tolice para um observador externo. Isso vale para o amor, mas vale para uma porção de outras situações.

Não creio ser necessário dizer que o turbilhão de coisas em que nos envolvemos, muitas vezes, tem como efeito o distanciamento de nós mesmos. Assim, distante como estava, lia e ouvia repetidamente: lembre-se de quem você é, lembre-se de quem você é. Pronto, o chamado à introspecção estava feito. E essa introspecção me fez voltar às minhas aulas na escola dominical. Algo que exerceu uma influência bastante marcante, da qual jamais me esqueci, e que me valeu durante o período de rebeldia na adolescência, foi o estudo do livro do profeta Daniel. Nada que fosse assim uma exegese rigorosa do livro, com direito a interpretação escatológica e tudo o mais. O que essas aulas me ensinaram foi a firmeza de caráter. Então Daniel resolveu firmemente não se contaminar com as finas iguarias do rei... Tais palavras se tornaram para mim, durante muito tempo, um norte ético.

Digo desde logo: toda a minha adolescência foi marcada por intensa atividade na igreja. Aos 12 anos de idade, lembro-me até de já pregar. Hoje acho que a Graça corroborava com a complacência dedicada a um menino de 12 anos que se presta a falar sobre as coisas de Deus. Seja como for, se sou o que sou hoje, devo isso, sim, à minha formação na igreja e à obra de três professores. Para não cometer injustiças, tive alguns outros marcantes, mas em menor medida. (Falo sobre eles outra hora.)

Volto à escola dominical. Um cântico que sempre me impressionou muito dizia:
Tu és soberano sobre a Terra,
Sobre os céus tu és Senhor absoluto.
Tudo o que existe e acontece, tu o sabes muito bem.
Tu és tremendo.

E apesar desta Glória que tens,
Tu te importas comigo também.
E este amor tão grande eleva-me, amarra-me a ti.
Tu és tremendo.
O que há de mais belo no cristianismo é que o próprio Deus se dirige ao homem. Aí o C. S. Lewis ilustra isso de um modo sublime. Diz ele:
Se Shakespeare e Hamlet pudessem um dia se encontrar, seria sem dúvida um ato de Shakespeare. A Hamlet não cabia nenhuma iniciativa.

Shakespeare poderia, teoricamente, fazer que ele mesmo aparecesse como Autor dentro da peça, escrevendo um diálogo em que ele mesmo conversasse com Hamlet. O "Shakespeare" inserido na peça seria, é claro, ao mesmo tempo Shakespeare e uma das criaturas de Shakespeare. Traria em si alguma analogia com a Encarnação.
Enfim, é isso. As orelhas do livro falam sobre duas rosas que brotaram da vida de Lewis. “A primeira delas abriu metade de suas pétalas em livros de profunda sabedoria e reflexão apologética, e a outra metade trouxe esplendor de um mundo de fantasia, sonhos e aventura a todas as crianças que vêm experimentando a felicidade de conhecer os seus livros infanto-juvenis. A segunda dessas rosas é a Alegria.”

Quanto a mim, digo apenas que a rosa azul que ilustra este post é uma terceira rosa — que brotou em mim como esse convite à introspecção, essa volta às origens, esse lembrete de que por ora vemos como espelho, mas veremos face a face; agora conhecemos em parte, mas conheceremos como também somos conhecidos. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.

2 comentários:

Lelê Carabina disse...

Gosto bastante de C. S. Lewis, mas este ainda não li.

Silas disse...

Olá,

parabéns, muito bom o texto. Lewis sempre surpreende...

abs