segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Senso do mistério e senso da realidade




O tipo de mente capaz de compreender a boa ficção não é necessariamente a mente educada, mas é sempre a mente disposta a ter seu senso de mistério aprofundado pelo contato com a realidade, e seu senso de realidade aprofundado pelo contato com o mistério. A ficção pode ser sóbria e misteriosa ao mesmo tempo. Em boa parte da crítica popular, vigora a ideia de que toda ficção deve ser a respeito do Homem Médio e tem de retratar a vida cotidiana ordinária, que todo escritor de ficção deve produzir o que se costuma chamar “uma parcela da vida”. Mas se a vida, neste sentido, nos satisfizesse, não haveria sentido em produzir literatura nenhuma.


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Não sei o que é pior: ter tido um professor ruim ou não ter tido professor nenhum. Em todo caso, acredito que o trabalho do professor deve ser em larga medida negativo. Ele não pode conferir-lhe o dom, mas, se o encontra, pode tentar guardá-lo de seguir numa direção flagrantemente equivocada. Podemos aprender como não escrever, mas esta é uma disciplina que não diz respeito apenas à escrita propriamente dita, mas a toda a vida intelectual. Uma mente livre de emoções falsas, de sentimentos falsos e de egocentrismo terá ao menos esses obstáculos removidos de seu caminho. Se o pensamento não é vulgar, ao menos não haverá vulgaridade em sua escrita, ainda que você não seja capaz de escrever bem. O professor pode tentar eliminar o que é positivamente ruim, e este deve ser o propósito de toda instituição de ensino. Todas as disciplinas podem ajudá-lo a escrever: lógica, matemática, teologia e, claro, desenho. Qualquer coisa que o ajude a ver, qualquer coisa que o faça olhar com atenção. O escritor jamais deve se envergonhar de ser um observador. Não há nada que não exija sua atenção. 

Flannery O’Connor, "The Nature and Aim of Fiction". In: Mystery and Manners: Occasional Prose. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1970.

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