quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A verdadeira contracultura



Por Daniel Piza



A verdadeira contracultura é a assim chamada alta cultura. Repito, porque não disse que a verdadeira cultura é a alta cultura. Disse que a verdadeira contracultura é a – assim chamada – alta cultura.

É na chamada alta cultura que os conceitos e preconceitos do senso comum são mais desafiados. É nela que se vencem as barreiras de tempo, lugar, classe e hábito. É nela, sobretudo, que as distinções entre baixa, média e alta cultura se dissolvem, incorporando de forma consistente qualquer recurso estético, venha de onde vier, por onde vier. E o que costumam chamar de alta cultura, por falta de expressão melhor, é justamente todo produto que tenha esse poder.

Há uma vasta, parcialmente voluntária e cada vez mais forte, conspiração middlebrow contra a alta cultura. Sob expressões como multiculturalismo e correção política, ocultam-se rejeições subliminares a qualquer coisa que seja complexa e/ou sutil, que não seja um proselitismo a respeito das “condições” e “minorias” que encarnam gêneros, estereótipos e panfletos, em modalidades compartimentadas e discursivas, populistas e confessionais. É da natureza do middlebrow mimetizar a alta cultura, lançando tentáculos a todos os repertórios para misturá-los no mesmo metabolismo. Mas a intenção e o resultado são bem distintos. A intenção é se apropriar das manifestações estabelecidas e envernizá-las para consumo em grande escala. O resultado é, na maioria das vezes, uma massa gelatinosa de apelo emotivo.

A tal alta cultura se caracteriza exatamente por um olhar livre sobre todas as formas culturais. Foi nela que Homero deu vida eterna às lendas orais da Grécia Antiga. Foi com ela que William Shakespeare se tornou um empreendedor teatral de sucesso. Foi para ela que Pablo Picasso incorporou as máscaras africanas e os recortes de jornal, e deu uma forma inédita à composição pós-impressionista. Uma enciclopédia de exemplos poderia ser citada, ou então você pode comprar o catálogo da exposição “High & Low”, organizada por Adam Gopnik e Kirk Varnedoe no MoMA há alguns anos, e verificar que o grande artista sempre rompe os padrões, mesmo que suas teorias e ideologias estejam obsoletas. A grande arte sempre subverte os esquemas. Que ainda nos deleitemos com um longo poema medieval toscano como a Comédia de Dante é uma prova de sua irredutibilidade a categorias sociais, sexuais e étnicas.

Há, claro, middlebrow em todo mundo. Ezra Pound, por exemplo, era fã de Bambi, de Walt Disney. Eu sempre gostei de ver TV, de futebol, de quadrinhos, de música popular. Mas estou falando de contracultura, de uma cultura que vá contra o fluxo médio, natural, das coisas. A autointitulada “contracultura” dos anos 1960-1970 cometeu o erro básico de pôr a ênfase excessiva no comportamento e, corolário, terminou alimentando o consumismo, endossando a comodidade da classe média e ampliando esse cada vez maior cartel (eu quase ia escrevendo “quartel”) do entretenimento.

Pouca gente nota que o pop, a cultura midiática que tem marcado este século, tem suas raízes em gêneros menores do século passado, misturando opereta, melodrama, circo, banda etc. Em versão industrial (cinema, TV, gravadoras), esses gêneros adquiriram uma presença cultural muito maior, enriquecendo o reino da mediocridade. Por outro lado, os diluidores da alta cultura insistiram em chamá-la dessa forma, em criar classificações fixas (“popular” e “erudito”, “moderno” e “careta”) que negavam a própria diversidade daquele repertório. Geralmente, são acadêmicos parasitas e jornalistas deslumbrados, num conluio entre elitismo e populismo, que se encarregam de banalizar aquilo que é chique mas não é fácil de gostar. No fundo, eles têm inveja do que não conseguem entender ou repetir. Logo, maquiavelicamente, tentam assimilá-lo: é mais fácil derrotar o inimigo fingindo-se estar a seu lado. Muitas dessas adaptações literárias em cinema e TV não passam disso, de um desejo de simplificar o complexo, resultante da covardia intelectual da maioria. Mas a alta cultura precisa da liberdade e do dinheiro para sobreviver, como toda cultura, e é muito mais fácil para um artista encontrar um mercado hoje, ainda que no antigo regime se pudesse viver à tripa forra trabalhando para as cortes, caso se fosse um “eleito”. E ela precisa dos outros repertórios, dos quais se nutre para criar algo mais ambicioso. É de sua essência prescindir de hierarquias rígidas.

Na tal alta cultura, mesmo uma obra que tenha apelo universal imediato – o Juízo Final de Michelangelo, a Júpiter de Mozart – não deixará de ter sido uma novidade, por revelar à humanidade uma sensação que ela possuía mas desconhecia. Nas mãos de um Ibsen, por exemplo, o melodrama ganhou uma força de articulação mental que superou seus limites populistas. E Liszt, digamos, já fizera o que depois a mídia moderna batizou de cross-over: partira de danças folclóricas para criar um híbrido acessível a mais classes (não importa quais) – só que o fizera de forma tão refinada, que as internacionalizara e eternizara. Este é o grande desafio.

É por tudo isso que o que chamam preconceituosamente de alta cultura é a verdadeira contracultura. É ela que desestabiliza o senso comum de forma coerente e durável, preservando a importância das ideias e dos talentos, únicas manifestações capazes de atravessar fronteiras no tempo e no espaço. Outras podem nos divertir e até mesmo ensinar, mas só ela pode nos despertar do banal.

Daniel Piza, “A Verdadeira Contracultura”. In: Questão de Gosto: Ensaios e Resenhas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 24-27.

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