segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Dois tipos de felicidade



Mircea Cărtărescu – professor, romancista, jornalista, poeta e ensaísta – é atualmente um dos mais premiados escritores da Romênia e forte candidato ao Nobel de Literatura. Trata-se de um fenômeno curioso: é, ao mesmo tempo, um best-seller e um grande escritor. Sua obra continua inédita no Brasil.

Ainda tomado do entusiasmo de alguém que acabou de voltar de um curso de língua romena em Brașov, cometo a temeridade de tornar público um exercício de tradução – a rigor, trata-se antes de um exercício de compreensão que propriamente de tradução. Seja como for, torno públicas as palavras de um dos artigos que compõem o volume “Por que amamos as mulheres”, de Cărtărescu. 

Espero que gostem!

Dois tipos de felicidade

Mircea Cărtărescu


Aquilo que para o corpo físico é o orgasmo é a felicidade para nosso corpo espiritual. É uma sensação breve e esmagadora, é aquela iluminação que buscam místicos e poetas. Não podes ser feliz um ano inteiro ou um dia inteiro. Nem mesmo por algumas horas seguidas. Dostoievski descreve-a como um prelúdio da epilepsia. Rilke fala sobre o seu terrível: ela é a beleza no limite do suportável, além do qual começa a dor. Talvez Goethe tenha intuído melhor o critério da felicidade: és verdadeiramente feliz quando queres parar o tempo, conservar aquele momento por toda a eternidade. De alguma forma, tua vida teve sentido se, na sucessão infinita de momentos banais, cinzas, tristes, vergonhosos, desafortunados, miseráveis, tediosos, de que a vida se compõe, acende-se, algumas vezes ou uma única vez, a faísca espantosa da felicidade. “Vivi como os deuses, e é quanto basta”, escreve sobre ela Holderlin. Esta é a verdadeira felicidade, a qual muitos homens não buscam nem cobiçam, porque ela pode destruí-los. Viver como deuses, ainda que apenas por um momento, é uma hybris que se paga.

Claro, não é essa a felicidade da Declaração dos direitos do homem. Se aqui se diz que os homens buscam a felicidade como sendo o bem supremo da vida, tem-se em vista um sentido totalmente diferente da palavra, muito mais “sociológico”, diante do místico, estético e religioso da primeira acepção. A felicidade que os homens procuram habitualmente não tem nada que ver com experiências extáticas. Ao contrário, é a famosa aurea mediocritas da antiguidade, de cultivar o próprio jardim, de paz e tranquilidade de uma vida sábia, adequada ao homem, livre de inquietação e de excessos. Neste sentido, os filósofos invejam a vida simples e satisfeita dos pastores, a realização daqueles que não têm grandes ambições, mas satisfazem-se com aquilo que lhes traz o momento. Se a felicidade orgástica de que falei no início pudesse ser chamada transcendente, de outro lado temos de lidar aqui com uma felicidade terrestre, imanente. No atual mundo consumista e globalizado, parece que já não conhecemos outro sentido de felicidade se não o seguinte: medíocre, utilitário, carente de toda aspiração que ultrapasse os padrões materialistas: uma casa confortável, um posto de trabalho bem-remunerado, férias no Caribe (ou ao menos em Sinaia...), uma família financeiramente estável. Um amor morno (já não te esforças para perceber se ao menos amas verdadeiramente ou não o parceiro), um trabalho não muito criativo, objetos (sugeridos pela televisão) com os quais preenche todo o espaço livre... Os homens esqueceram completamente que lhe entregaram uma dádiva esmagadora: a de existir na maravilha do mundo, de estar vivo, de ser consciente de si. Não se perguntam jamais: afinal, quem sou eu? Que papel tenho no mundo? Será que me foi dada a maravilha que posso ver e ouvir apenas para ser motorista de ônibus ou fazer propaganda? Será que tenho de morrer sem fazer nada neste mundo?


Condenar este tipo de felicidade é, no entanto, em grande medida injusto, na minha opinião, como condenar totalmente o modo de vida ocidental, porque significa, de fato, uma reação elitista diante de uma felicidade “popular”. Acredito que precisamos de ambos os tipos de felicidade, que cada parte é pobre e extremamente carente da outra. Creio, por outro lado, que são muito raros tanto poetas puros e extáticos quanto consumistas completos imbecilizados pela cerveja e pela televisão. Somos com os demais, de fato, uma combinação entre os dois casos, e o ideal humano poderia ser, em consequência, uma vida realizada e materialmente decente permeada de quando em quando por fulgurações loucas da grande e verdadeira felicidade.

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