sábado, 14 de junho de 2008

Uma latência na alma

Uma cena que muito me impressionou, desde a primeira vez em que a li, foi a prisão de Fabiano, em Vidas Secas. Dada a injustiça das circunstâncias, o pobre sequer consegue proferir palavra em sua defesa e limita-se a desejar ser o Seu Tomás da Bolandeira. No mesmo livro, noutra cena igualmente impressionante, dado o deslumbramento dos meninos — o mais novo e o mais velho— quando chegam à cidade e vêem as luzes todas, a igreja, a festa enfim, atônitos, perguntam entre si: Será que essas coisas todas têm nomes?
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Assim Olavo de Carvalho começa o seu artigo "O abandono dos ideais":
Quando as palavras saem da moda, as coisas que elas designam ficam boiando no abismo dos mistérios sem nome; e como tudo o que é misterioso e inexprimível oprime e atemoriza o coração humano com uma sensação de cerceamento e impotência, é natural que a atenção acabe por se desviar desses tópicos nebulosos e constrangedores. Pois o que desaparece do vocabulário logo acaba por desaparecer da consciência: o que não tem nome não é pensável, o que não é pensável não existe — tal é a metafísica dos avestruzes.
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Em 1984, de George Orwell, já clássico por abordar a manipulação da linguagem como instrumento de poder, cria-se a novilíngua. "É lindo destruir palavras. Imagine, por exemplo, como reivindicariam liberdade se simplesmente não existisse a palavra liberdade."
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Há bem pouco, li o livrinho de Paulo Rónai Como aprendi português. Nele, um artigo em especial chamou minha atenção: Uma geração sem palavras. Rónai, grande tradutor que era e, segundo ele mesmo, professor por vocação, trata da escassez de vocabulário dos jovens... da década de 1950!!! (para aqueles que se incomodam com exclamações repetidas, essas são perfeitamente justificáveis. É de fato um espanto saber que já na década de 1950 Rónai trazia à tona tal problema. De lá pra cá, a situação só piorou.)
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Dia após dia, tenho observado a escassez de vocabulário das novas gerações. A limitação é tal que mal se pode esperar que compreendam uma piada que não seja óbvia. Os adjetivos se reduzem a "osso" e "suave"; entre os substantivos, basta o universal "baguio"; há o vocativo igualmente abrangente "mano", que se alterna com "truta"; como elemento coesivo, temos o "tipo assim" e o "daí né"; os elementos fáticos "tá ligado" ou "ce tá entendendo?"; uma ou outra interjeição, e só! Assim, se nada for feito, bastarão mais duas gerações para que todos admirem a eloqüência de Fabiano, da mulher, do menino mais novo, do menino mais velho...
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Liberdade? Que é liberdade? Lá vem você com essas palavras esquisitas que ninguém nem usa mais!

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